Modulação e consequencialismo

STF não deve atuar como "segunda instância" do governo

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

22 de julho de 2012, 8h00

O fundamento jurídico que explica a possibilidade de modulação dos efeitos de uma decisão judicial pode ser extraído diretamente da Constituição da República. No passado tínhamos uma regra dogmática de indiscutível rigidez que assegurava à declaração de inconstitucionalidade o efeito retroativo (ex tunc). Atualmente, temos o princípio da nulidade do ato inconstitucional passível de flexibilização.

Isto decorre da riqueza dos fatos da vida, que necessariamente impõem soluções criativas ao Direito nos casos difíceis (hard cases). De fato, em complexa técnica de ponderação dos interesses e valores em jogo, o princípio da nulidade do ato inconstitucional (com o tradicional efeito ex tunc) cede espaço no tocante aos seus efeitos à sua aplicação irretroativa (ex nunc) ou até mesmo a partir de certo momento no futuro (pro futuro) ou qualquer outro que venha a ser estipulado (ex tunc mitigado).

Em outras palavras, temos então os seguintes efeitos: ex tunc (regra geral), ex tunc mitigado (exceção, que se situa entre a data do nascimento da lei — exclusive — e a data da decisão judicial), ex nunc (exceção, que se situa precisamente no dia da decisão judicial, valendo dali pra frente) e, por fim, pro futuro (exceção, a partir do dia da decisão judicial, exclusive).

A modulação dos efeitos de uma decisão judicial que versa sobre o juízo de inconstitucionalidade de certa lei ou ato normativo justifica-se em situações da realidade que são extremadas e excepcionalmente não contempladas pelo acervo de institutos jurídicos disponíveis. É como se houvesse um hiato entre alguma situação da realidade e a sua necessidade de regulação adequada pelo Direito.

Isto ocorre, por exemplo, com a lei que cria um município que, no plano fático, simplesmente passa a existir. Como decorrência disso, toda a enorme gama de atos da vida civil praticados no território deste município recém-criado, todos os atos legislativos e regulamentares municipais, a eleição de seus governantes e a nomeação de seus servidores passam a integrar a realidade daqueles munícipes. Temos um município em pleno funcionamento, no exemplo dado.

Sucede que a lei que criou o referido município estava eivada do insanável vício da inconstitucionalidade, pouco importando para este ensaio por qual tipo. A prevalecer o raciocínio tradicional sobre a teoria geral do controle de constitucionalidade, teríamos algumas opções possíveis. Uma possibilidade seria a declaração de tal inconstitucionalidade com a aplicação do tradicional efeito ex tunc (retroativo). Imagine o leitor a enorme quantidade de problemas que daí surgiria. Outra opção seria o reconhecimento da constitucionalidade, justamente com a sensibilização da Corte a respeito da enorme quantidade de problemas que certamente surgiriam com a eventual declaração de inconstitucionalidade.

Uma terceira alternativa, no entanto, que pretende colocar-se como meio-termo entre o tradicional efeito retroativo (ex tunc) e o radical reconhecimento da constitucionalidade (por falta de opção), é a aplicação da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Uma vez declarada a inconstitucionalidade de certa lei ou ato normativo, ela tem seus efeitos (e não a declaração) modulados para acomodar da melhor forma possível aquela realidade subjacente à situação submetida a análise.

Ocorre que extrair da própria Constituição o fundamento para tal possibilidade implica na elaboração de um delineamento claro que seja capaz de traçar-lhe os principais aspectos. A palavra de ordem, para o caso, é precisamente o princípio da segurança jurídica que, a um só tempo, deflui da noção do Estado Democrático de Direito de um lado e sustenta a proteção da confiança legítima e a boa-fé dos cidadãos de outro. Por isso, o princípio da segurança jurídica deve ser observado como o necessário resultado do sopesamento entre os valores e interesses em jogo. A balança que proporcionará tal sopesamento é a técnica da ponderação.

A possível aplicação da modulação dos efeitos de sua decisão deve ser observada pela Suprema Corte como uma oportunidade concreta de, em aparente paradoxo, aproximar-se da chamada “vontade constitucional” pela tolerância temporária de vigência da lei ou ato normativo declarado inconstitucional. Com efeito, o paradoxo esvazia-se quando verificamos que, naquela situação submetida ao exame da Corte, a vigência temporária da lei declarada inconstitucional atendeu aos interesses e valores com maior carga axiológica no texto constitucional. Nestas situações, pode-se dizer que foi feita a vontade constitucional.

Ao contrário, quando ao invés de aproximar-se da vontade constitucional, o Supremo Tribunal Federal dela se afasta ainda mais aí o paradoxo persiste e aumenta. É o que ocorre, por exemplo, quando a Corte pretende se comprometer com a governabilidade, atuar como espécie de “segunda instância” do governo ou até mesmo funcionar como curador de um Estado que se tem por incapaz sucumbindo ao argumento consequencialista de cunho econômico que atende as necessidades momentâneas e passageiras do governo. Isso geralmente ocorre em detrimento da maior estabilidade, segurança jurídica e perenidade da Constituição da República.

De fato, cabe observar que o argumento consequencialista de cunho econômico socorre aos dois lados da contenda. Ao governo pelo alardeado rombo nas contas públicas que o julgamento pode ocasionar. Aos contribuintes porque neste cenário de crise mundial e com a crescente necessidade de incrementar a concorrência e otimizar o desempenho das correspondentes atividades empresariais, algumas derrotas no Poder Judiciário impactam diretamente na política estratégica da empresa de expansão e investimento.

Ora, além de se prestar a defender qualquer um dos dois lados antagônicos, como vimos acima, o consequencialismo não deve ser levado em consideração de modo exclusivo ou prevalecente nas decisões judiciais. Com efeito, quando considerado no caldeirão de informações, dados, impressões e ilações que levam aos fundamentos da livre convicção do magistrado, jamais deve ser considerado como argumento por si só. Ao contrário, poderá ser usado como argumento periférico se e quando reconduzido aos argumentos jurídicos que centralizam o debate sobre o tema. Além disso, tais argumentos jurídicos devem ser de estatura constitucional, não bastando que sejam apenas legais e/ou regulamentares.

Situação diversa ocorre com a tomada de decisão eminentemente política, onde pode prevalecer, em variadas situações, razões de conveniência e oportunidade, com grande dose de discricionariedade quanto ao momento adequado para transformar a ideia em ação. Aí sim, nessas circunstâncias, o argumento consequencialista, inclusive aquele de cunho econômico, pode — e em algumas situações deve — reinar sobejamente. De fato, considerações quanto ao impacto econômico, social, cultural e à tensão política entre governo e oposição, por exemplo, podem (e assistimos isso com relativa frequência na rotina política brasileira) levar certo projeto de lei a ter o seu trâmite engavetado ou apressado, a depender dos arranjos articulados no âmbito do Congresso Nacional, geralmente legítimos e que fazem parte do jogo democrático.

A tomada de decisão judicial, contudo, é diferente. Não funciona na base da conveniência e da oportunidade e tampouco se presta a ser discricionária. Ao revés, tanto a Constituição da República como também os códigos processuais estabelecem a obrigação de que a decisão judicial seja devida e explicitamente motivada, com o permanente respeito aos preceitos constitucionais que servem, ao mesmo tempo, de baliza e parâmetro na tomada de decisão judicial.

Diante disso, é necessária atenção dos ministros da Suprema Corte em última instância, e do Poder Judiciário em geral, para que não se vejam (im)pressionados por argumentos ad terrorem que, na realidade, buscam fazer com que o Tribunal atue como curador de um Estado que se tem por incapaz em prejuízo de sua vocação histórica e institucional de protetor dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, cabendo-lhe assinalar os limites do Estado ao poder de tributar (e destruir, já se disse) à luz da Lei Maior.

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