Justiça Tributária

Fisco quer autuar com base em presunções

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

16 de julho de 2012, 13h46

Spacca
Caricatura: Raul Haidar - Colunista [Spacca]A fiscalização estadual vem desenvolvendo diligências supostamente destinadas a coibir sonegação. Até aí, tudo bem. Mas agentes fiscais pretendem considerar como indício de sonegação um “IVA” (índice de valor adicionado) que, supostamente, estaria abaixo da média encontrada no setor. Caso o IVA do contribuinte esteja abaixo daquela “média” — ou seja, grosso modo, se o seu lucro bruto estiver abaixo daquela média do mercado —, haveria indício de sonegação. Esse expediente, em síntese, implica arbitrar o valor da operação por não ser confiável o valor fixado pelo contribuinte.

Fraude não se presume, mas tem que ser provada e tal prova cabe ao fisco produzir. O artigo 148 do CTN diz, textualmente, que:

Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.

Assim, não tem qualquer fundamento uma autuação baseada em presunções de sonegação porque a “margem” do tal IVA estaria abaixo da média. O fisco não tem o monopólio da verdade. Aliás, muitos agentes do fisco ignoram as normas que os obrigam a exercer suas funções de forma verídica, transparente e leal. Na ânsia de inventar autos, acabam mesmo cometendo crimes.

A tal “média de mercado”, mesmo que apurada pelo fisco com rigor — o que não ocorre — não dá a ninguém o direito de exigir ICMS sobre valor arbitrado sem que haja uma avaliação contraditória, administrativa ou judicial, como exige o CTN. O fato gerador do tributo é a circulação econômica da mercadoria e a base de cálculo é o valor da operação. Qualquer lançamento que se afaste disso deve ser contestado e, se for o caso, levado ao conhecimento do MP para apuração do crime de excesso de exação.

A jurisprudência administrativa e mesmo a judicial não aceitam presunção como forma de autuação. Vejam-se as seguintes decisões:

"Indício ou presunção não podem por si só caracterizar o crédito tributário." (2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, acórdão 51.841, in "Revista Fiscal" de 1970 , decisão 69);

"Para efeitos legais não se admite como débito fiscal o apurado por simples dedução." (idem, acórdão 50.527, Diário Oficial da União de 11.7.69, secção IV);

"Provas somente indiciárias não são base suficiente para a tributação…" (Primeiro Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Acórdão 68.574);

"Processo Fiscal – Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida." (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança 65.941, in "Resenha Tributária" 8);

"Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição é nulo, pois não se pode presumir a fraude que, necessariamente, deverá ser demonstrada" (Tribunal Federal de Recursos, Apelação Civil 24.955 em Diário da Justiça da União de 9 de maio de 1969);

“Não merece acolhimento o sistema de levantamento fiscal com ânimo em elementos aprioristicamente fixados pela fiscalização.” (Tribunal de Alçada Civil de S. Paulo, Apelação Civil 57.146, in Revista dos Tribunais, 357/394);

Assim, é indevida qualquer presunção de sonegação. Isso depende de provas, que não cabem ao contribuinte. Não existe a obrigação do contribuinte de fazer prova negativa, prova de que não sonegou. Cabe só ao fisco provar a sonegação que alega.

Fraude ou sonegação não se presumem, mas dependem de provas a cargo exclusivo do fisco. Qualquer argumentação do fisco sobre possível sonegação só tem valor se houver prova por ele produzida. Não existe, legalmente, qualquer presunção de “fé pública” para agentes do fisco.

O prof. Hugo de Brito Machado, em sua obra Mandado de Segurança em Matéria Tributária (Ed. Dialética, S.Paulo, 2003) dá-nos preciosa lição:

O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que mesmo no processo administrativo existe o contraditório, com direito a produção de provas. Vejamos trecho do voto do relator, ministro Celso de Mello, na Medida Cautelar em Mandado de Segurança 26.358-0-DF:

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o “due process of law”, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.

Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process of law” (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova.

Abrangência da cláusula constitucional do “due process of law”.

Mesmo em decisão administrativa o fisco já reconheceu que a insuficiência de prova obriga à nulidade ou improcedência do auto de infração. Exatamente por isso não se pode negligenciar na defesa administrativa, nela produzindo provas adequadas à demonstração da inexistência de fraude.

Ainda que só o fisco é obrigado a produzir prova, o contribuinte pode e deve promover diligências para defender-se. Uma ferramenta de grande relevância é a contratação de perícia extra-judicial, a ser produzida por um contador que seja especializado em perícias. Claro está que a perícia vale tanto quanto a credibilidade do perito. Em todo o país há peritos competentes e sérios que podem ser encontrados com a ajuda das associações de classe desses profissionais.

Vale aqui uma lembrança importante: perícia contábil é ato privativo do contador, bacharel em Ciências Contábeis. Não pode esse profissional ser substituído pelos de outras áreas, ainda que tenham alguma afinidade com o trabalho.

Alguns juízes nomeiam economistas para esse trabalho. Em caso recente, tivemos a oportunidade de demonstrar o equívoco na interpretação, com as seguintes considerações:

“A Sra. Perita confirma que não é Contadora, mas Economista. Sustenta, contudo, que estaria habilitada à realização da perícia contábil, estribada em ‘interpretações’ do Conselho Regional de Economia. A interpretação de texto legal não cabe àquela autarquia, mas ao Poder Judiciário."

Resta evidente que perícia contábil feita por economistas é nula de pleno direito, ante as normas legais em vigor.

Nos termos do artigo 25 letra “c” do Decreto-Lei 9.295, de 27 de maio de 1946, a realização de perícia contábil é atividade privativa de contador. Já o Decreto 31.794 de 17 de novembro de 1952, que regulamenta a profissão de economista, em seu artigo 3º, menciona que tal profissional pode realizar “perícias”, porém apenas “sobre os assuntos compreendidos no seu campo profissional”, esse delimitado pelo artigo 2º do mesmo decreto, onde em nenhum momento se faz referência a perícias contábeis, estranhas, portanto, à atividade profissional do economista.

Diz o artigo 2º do Decreto 31.794/1952, ao especificar o “campo profissional” em que o economista pode atuar:

Art. 2º – A profissão de economista, observadas as condições previstas neste regulamento, se exerce na órbita pública e órbita privada:

a) nas entidades que se ocupem das questões atinentes à economia nacional e às economias regionais, ou a quaisquer de seus setores específicos, e dos meios de orientá-las ou resolvê-las através de políticas monetárias, fiscal, comercial e social;

b) nas unidades econômicas públicas, privadas ou mistas, cujas atividades não se relacionem com as questões de que trata a alínea anterior, mas envolvam matéria de economia profissional sob aspectos de organização e racionalização do trabalho.

A única menção à palavra "perícias", contida no aludido texto legal, está no artigo 3º, com a seguinte redação:

Art. 3º – A atividade profissional privativa do economista exercita-se, liberalmente ou não, por estudos, pesquisas, análises, relatórios, pareceres, perícias, arbitragens, laudos, esquemas ou certificados sobre os assuntos compreendidos no seu campo profissional, inclusive por meio de planejamento, implantação, orientação, supervisão ou assistência dos trabalhos relativos às atividades econômicas ou financeiras, em empreendimentos públicos, privados ou mistos, ou por quaisquer outros meios que objetivarem, técnica ou cientificamente, o aumento ou a conservação do rendimento econômico.”

O Decreto-lei 9.295/1946 regulou a profissão de contabilista, então constituída de duas categorias: os contadores (com formação de nível superior) os ténicos em contabilidade (nível médio). Em seus artigos 25 e 26 tal regulamento define quais são as atribuições profissionais dessas duas categorias de contabilistas, da seguinte forma:

Art. 25 – São considerados trabalhos técnicos de contabilidade:

a) organização e execução de serviços de contabilidade em geral;

b) escrituração dos livros de contabilidade obrigatórios, bem como de todos os necessários no conjunto da organização contábil e levantamento dos respectivos balanços e demonstrações;

c) perícias judiciais ou extra-judiciais, revisão de balanços e de custo em geral; verificação de haveres, revisão permanente ou periódica de escritas, regulações judiciais ou extra-judiciais de avarias grossas ou comuns, assistência aos Conselhos fiscais das sociedades anônimas e quaisquer outras atribuições de natureza técnica conferidas por lei aos profissionais de contabilidade.

Art. 26 – Salvo direitos adquiridos ex-vi do disposto no art. 2º do Decreto nº 21.033 de 8 de fevereiro de 1932, as atribuições definidas na alínea “c” do artigo anterior são privativas dos contadores diplomados.”

A legislação é, portanto, absolutamente clara: só contadores podem realizar perícias judiciais de natureza contábil. Aos economistas são permitidas as perícias relacionadas com seu “campo de atuação profissional” que, como acima demonstrado, em nada se relaciona com aspectos da escrituração contábil.

Se uma autuação com base em presunções não pode ser aceita, ela pode ser auxiliada por uma perícia contábil bem feita, que demonstre, de forma clara, a inexistência da fraude presumida. Em matéria tributária não existe problema sem solução. Existem apenas pessoas que não encontram a solução do problema.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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