Embargos Culturais

O realismo jurídico norte-americano é intrigante

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

15 de julho de 2012, 8h00

O realismo jurídico norte-americano levou ao limite a premissa de que juízes primeiramente decidem e depois engendram modelos de dedução lógica. Porque o pensamento seria instrumento para ajuste das condições de vida, a reflexão jurídica seria mecanismo para resolução de problemas concretos.

Os realistas abandonaram a metafísica e os construídos românticos de direito natural, em favor do pragmatismo, da utilidade prática, da atuação fática. O realismo jurídico norte-americano relaciona-se com o pragmatismo, bem como com alguns núcleos expressivos do pensamento jurídico contemporâneo, a exemplo do movimento law and economics (Direito e Economia) e do critical legal studies (teoria crítica do Direito).

Pouco conhecido no Brasil, porque confundido com tradição jurídica supostamente refratária à nossa, o realismo jurídico norte-americano não é assunto que tem preocupado a indagação jusfilosófica brasileira, que já foi vítima de monoglossia crônica e patológica, centrada em traduções de textos europeus.

Somos ainda reféns da filosofia analítica, da metafísica alemã, do fundacionalismo francês e de um incipiente constitucionalismo português. É lugar comum à associação do entorno cultural dos Estados Unidos com o imperialismo que matiza o capitalismo daquele país e com produtos midiáticos de consumo. Por isso, o descaso para com um pensamento substancialmente muito denso, que precisamos de certa forma estudar.

O pensamento jurídico brasileiro atual — salvo exceções — patina na transição de formalismo de feição positivista para um neoformalismo pretensamente crítico, incapaz de transcender à neodogmática de teorias sistêmicas, neocontratualistas e aliciadoras de suposta razão comunicativa, pilares de discurso vazio, agente de neokantismo que não se tem coragem de abandonar.

Os realistas norte-americanos atacaram o formalismo, a educação jurídica baseada em modelo que pretendia que o direito fosse ciência, a distinção entre público e privado. Porque fatos determinariam decisões, os realistas norte-americanos criticavam a apropriação que o direito pretende fazer da lógica; o Direito não é lógica, é experiência, sentença de Oliver Wendell Holmes Jr., o mote dos realistas.

As relações do realismo jurídico com o pragmatismo substancializam os aspectos conceituais do movimento. O pragmatismo é tido como a filosofia nacional norte-americana, como a única colaboração genuína daquele país à tradição filosófica ocidental. Centrado na percepção de que o que as pessoas acreditam ser verdade é apenas o que acham que é bom acreditar sê-la, o pragmatismo reviveu o utilitarismo da tradição inglesa, promovendo ajuste entre concepções relativistas de verdade e intenções ortodoxas de utilidade.

O realismo jurídico norte-americano desenvolveu-se a partir de professores que lecionavam em Johns Hopkins, Columbia e Yale. Surgiu na academia, revolucionando tribunais e bancas de advocacia. Potencializou-se no período entre-guerras, captou material conceitual no intervencionismo do governo Franklyn Delano Roosevelt, matizando o plano governamental, o New Deal, perdendo fôlego durante os anos mais problemáticos da luta contra o perigo vermelho, na década de 1950. Karl Llewellyn, Thurman Arnold e Felix Cohen estavam entre esses professores revolucionários.

Das salas de aula combatia-se o colapso do movimento progressista, que se enfraqueceu com a primeira guerra mundial. Demonstrava-se mal estar com as decisões da Suprema Corte norte-americana que invalidavam regulamentação estadual e federal em matéria econômica, e que enfatizavam a substancialidade do processo e os direitos adquiridos, em matéria contratual. O fim da primeira guerra anunciava uma guinada da jurisprudência norte-americana para o conservadorismo de direita.

O realismo jurídico norte-americano aproxima-se de conjunto de transformações que marcavam a primeira parte do século XX. É contemporâneo do pragmatismo na filosofia, da geometria não-euclidiana, da teoria da relatividade de Albert Einstein, de novos métodos e abordagens na psicologia, como o freudismo e a psicanálise. O momento era de dúvida em relação a sistemas de axiomas e de teoremas, bem como do valor de raciocínios indutivos e dedutivos e da possibilidade de que regras formais pudessem organizar as relações humanas.

Percebe-se nos textos dos realistas que o formalismo convencional, baseado na concepção de resultado lógico a partir da natureza de dada categoria, migrou para justificativa do direito a partir do conhecimento das condições sociais junto às quais se aplica a lei, na busca de política social supostamente aceita como resultado desejado.

Nesse sentido, os realistas falavam a linguagem dos burocratas de Washington e prestaram favor inestimável ao governo norte-americano, nas administrações que mediaram as guerras mundiais, especialmente no interregno que foi balançado pela grande crise que o capitalismo viveu em 1929. O realismo jurídico é timbre da administração Franklyn Delano Roosevelt, período ascensional do partido democrata, marcado pela integração entre burocracia e política.

O realismo jurídico é movimento que ganhou dimensão nos Estados Unidos, nas décadas de 1920 e de 1930. Certo olhar cético problematizava como os juízes decidem os casos e o que as cortes de Justiça verdadeiramente fazem. Para o realismo, magistrados decidem de acordo com o que os fatos provocam em seus ideários, e não em função de regras gerais que levariam a resultados particulares. Assim, juízes responderiam muito mais aos fatos (fact-responsives) do que às leis (rule-responsives). Intrigante.

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