Senso incomum

O Supremo, o contramajoritarismo e o “Pomo de ouro”

Autor

12 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Pequena introdução
Leio que o presidente da CUT ameaça ir às ruas em defesa de réus do mensalão. Segundo matéria de capa da Folha de São Paulo, a CUT vocifera que o julgamento não deve ser político. Parece ser uma reinvindicação justa. Em uma República, espera-se que nenhum julgamento a ser feito pela Suprema Corte deva ser político. Mas o que é isto, “um julgamento político”? Esta coluna tentará destrinchar esse imbróglio. A CUT deve saber bem do que se trata. Historicamente, quando lhe interessou, sempre esperou “julgamentos políticos” por parte do STF. Ela e tantos outros movimentos sociais. A questão é saber se é possível “isolar” os diversos momentos históricos que atravessa(ra)m o país nos últimos 20 anos. É disso que procurarei tratar.

O estado d’arte: do Império aos nossos dias. O presidencialismo de coalisão. A relação com o judicial review
Como sabemos, o nosso sistema de controle de constitucionalidade foi copiado dos Estados Unidos e introduzido pela Constituição de 1891, após a proclamação da República. Não precisamos falar dos problemas decorrentes da introdução de um sistema de controle de constitucionalidade atravessado pela carga genética da tradição do common law (em que há o stare decisis) por um sistema de tradição romano-canônico que recém havia saído de um regime de mais de 70 anos (Império) sem controle jurisdicional, já que na Constituição de 1824 — outorgada pelo imperador D. Pedro I — o Brasil havia se aproximando principalmente do constitucionalismo forjado nas lutas políticas da Europa continental, que, nos séculos XVIII e XIX, buscava a limitação do poder discricionário dos monarcas por meio da volonté générale formada no Parlamento. No entanto, diferentemente dos europeus, o constitucionalismo em terrae brasilis começou apenas pro forma, com um imperador governando de maneira extremamente arbitrária, um Poder Judiciário subserviente e um Parlamento enfraquecido frente as investidas autoritárias do Poder Central. Desse modo, durante o Império, as deficiências do Parlamento e a ausência de um controle jurisdicional de constitucionalidade acabaram favorecendo a consolidação de um regime político autoritário, controlado pelo estamento burocrático (Faoro) e comandado ao invés de ser governado constitucionalmente pelo imperador.

Com a proclamação da República em 1889 poucas coisas foram modificadas em terrae brasilis. O imperador saiu de cena e em seu lugar surgiu o regime presidencialista, numa imitação mal feita do sistema construído pelos Estados Unidos no século XVIII. Ao mesmo tempo, dando continuidade a maneira incoerente de incorporar as inovações do constitucionalismo estadunidense, o Brasil criou o Supremo Tribunal Federal (STF) e o controle difuso de constitucionalidade, colocando os velhos ministros do ancien régime, membros do antigo Supremo Tribunal de Justiça, para operar as inovações constitucionais que desconheciam completamente. E foi assim que o estamento deu início a nossa trágica jurisdição constitucional, deixando-a sempre enfraquecida diante das pressões exercidas pelos donos do poder (Faoro).

Mas, o que tem a ver o nosso sistema de controle de constitucionalidade com o nosso sistema de governo presidencialista? Tudo, porque o original americano foi forjado a partir da ideia de a Supreme Court ser um Tribunal da federação, circunstância que levou Rui Barbosa a pensar em uma democracia juridicista no Brasil. Ou seja, ao menos nos EUA, o judicial review tem essa relação com o sistema de governo. Aliás, não estou sozinho nisso. O sofisticado constitucionalista norte-americano Bruce Ackerman tem um livro, que se chama The failure of the fouding fathers: Jefferson, Marshall and the rise of presidential democracy (Harvard, 2005), em que ele defende a tese de que o surgimento do Judicial Review, nos EUA, está intimamente ligado ao Presidencialismo plebiscitário, à bagunça do bipartidarismo e do processo eleitoral estadunidense. Bingo! Imagine-se o Brasil…

Mais. Não tenho receio em afirmar que o sistema de governo presidencialista é responsável pelo tipo de partidos e estilo de “acordos” para a governabilidade que reina (no duplo sentido da palavra) no Brasil desde a República Velha. Aqui, uma parada para dizer que, se no Brasil tivemos a doutrina do Habeas Corpus, tivemos a política dos governadores e os partidos locais e regionais. É difícil dizer até que ponto o STF desempenhou bem ou pôde desempenhar bem a tarefa de tribunal da federação. Sim e não. Basta pensar nos julgador sobre o Estado de Sítio (entretanto, os julgamentos mais importantes são exatamente antes do acordo Campos Sales e da Política dos Governadores). Interessante e intrigante, pois não? Não se pode olvidar que os juízes (Conselheiros) remanescentes do Império somente deixaram de “pegar no pé” dos presidentes em face da Política dos Governadores e, fundamentalmente, na ausência de um efetivo controle de constitucionalidade sobre as intervenções federais.

Sigo. Andante. A recente redemocratização e a ampliação do número de partidos políticos colocaram, talvez, um pouco mais de complexidade nessa situação. Com efeito, ainda em 1987, o cientista político Sérgio Abranches, no momento em que o debate constituinte tinha como pauta o problema do pluralismo partidário, cunhou o termo que hoje faz moda nas discussões envolvendo a relação interinstitucional entre o Legislativo e o Executivo: o presidencialismo de coalisão. Sim, nosso presidencialismo é de coalisão. E nesse aspecto não importa a ideologia, pois tanto a direita como a esquerda são iguais em terrae brasilis. Fazem política de maneira pragmática, sempre instrumentalizando a Constituição e desrespeitando a República. Assim, a cada nova votação, um novo acordo. E um bando de gente do Parlamento extorquindo o governo, leia-se, Poder Executivo quase-imperial (aliás, inspirado nos Estados Unidos). Seguidamente se lê notícias do tipo “deputados pressionam para liberação de emendas”; “somente em maio e junho foram liberados mais de R$ 300 milhões em emendas”; “nos primeiros cinco dias de julho, mais de 400 milhões em emendas para a base aliada”; “Presidente da Casa ameaça colocar em votação projetos que oneram os cofres públicos e Presidente da República se irrita…”; “Presidente da Câmara ameaça colocar em votação a PEC 300, que quebrará as finanças dos Estados”!

Qual é a relação entre as coalisões do presidencialismo e as respostas do STF às demandas que vem das “coalisões sociais”?
Vejamos a relação do presidencialismo e do parlamentarismo com o “problema da jurisdição constitucional”. Nos regimes parlamentares houve a magnífica invenção dos Tribunais Constitucionais. Como, regra geral, o governo é formado por maioria parlamentar, não há tensão entre a “vontade do presidente” e a “vontade do Parlamento”. Ao contrário do presidencialismo brasileiro, não há “duas vontades gerais em conflito” no parlamentarismo. Consequência: no parlamentarismo, as tensões sobre Direito, especialmente a questão central — a constitucionalidade das leis — são resolvidas por um tribunal que está fora do âmbito dos três poderes tradicionais. O Tribunal Constitucional é um tribunal ad hoc. Ele é composto e engendrado pelo Parlamento. O Poder Judiciário não assume protagonismo, porque o Tribunal Constitucional não é do Poder Judiciário. Como isso funciona? Vejam as democracias da Alemanha, Espanha, Portugal, etc.

E, no Brasil? Aqui, o presidente é eleito com 50% mais um; o Parlamento tem “vontade geral” que, para apoiar o governo, negocia para formar a maioria. E negocia “bem”. E muito. Sempre exigindo mais do patrimônio público (e há quem entenda mais adequado substituir o verbo “exigir” por “extorquir”). E, mesmo assim, há tensões. Constantes. Legislativo versus Executivo. Para onde vai esse tensionamento? Para o Poder Judiciário, mais especificamente, o Supremo Tribunal Federal. Assim, mais tensões, mais demandas ao STF; mais forte este fica. Inércia do Executivo? Demandas que vão ao Judiciário lato sensu, que, assim, fica mais forte. Inércia do Legislativo? Idem. E o Judiciário se fortalece dia a dia. Não há Judiciário mais poderoso no mundo do que o do Brasil.

Aqui, outra parada para lembrar que os presidentes latino-americanos e os brasileiros em especial sempre dispuseram de maiores poderes legislativos e normativos que os norte-americanos. Decretos-leis e Medidas Provisórias são institutos parlamentaristas sem a contrapartida da possibilidade de censura pelo Congresso, havendo apenas a medida extrema do impeachment.

Prossigo. Despacio. A solução? Bem. Talvez a ideia de um Tribunal Constitucional não seja má (embora isso calha melhor em um sistema parlamentarista…) Aliás, com certeza, funcionaria melhor, com mandatos fixos de 8 anos, renováveis por uma vez. E delimitação de competências constitucionais. Não dá para o STF julgar questões de processos criminais que dizem respeito a furtos de sabonetes. Ou seja, um Judiciário que não resolve essas questões nas instâncias inferiores de forma satisfatória, é porque não conseguiu construir uma identidade para lidar com direitos fundamentais.

Sendo mais claro: como é possível que tenhamos que ir ao STF para libertar um cidadão preso porque não devolveu DVD em locadora? Mas as instâncias inferiores não sabem julgar? Não sabem o que é uma “questão constitucional”? Ora, Sir Edward Coke fazia controle de constitucionalidade em 1610, no seu pequeno Tribunal chamado Common Pleas, sem Constituição e sem vitaliciedade. Leiam quando Marshall cita Coke no seu voto em 1803 (Marbury v. Madison); não é por nada que Rui Barbosa cita Marshall, em 1890.

No fundo, quando o STF assume a tarefa de julgar milhares de Habeas Corpus , alçando esse writ à categoria de “super ou meta recurso” — na medida em que os advogados mais inteligentes sabem que é mais difícil fazer “subir” um recurso extraordinário do que manejar um Habeas Corpus diretamente — ele está atendendo a pleitos ou demandas. Justas. É verdade. Mas ele “tem de julgar-apreciar” esses milhares de writs porque o “sistema” não consegue dar conta. Esses casos chegam ao STF porque os tribunais da Federação não dão conta. Os TRFs não dão conta. O próprio STJ não dá conta de discutir e preservar as liberdades. Aliás, o STJ pouco faz controle difuso de constitucionalidade. Talvez por tudo isso o STF tenha tomado posições tão inovadoras — e por vezes revolucionárias — mormente a partir da Presidência do ministro Gilmar, no plano das garantias processuais penais.

Vejamos os encargos do STF. Os números são contundentes: na data de 2 de julho de 2012, estavam nos gabinetes dos ministros mais de 2.000 HCs. É desumana a carga de trabalho dos ministros do STF. Em 2011, ministros como Marco Aurélio e Gilmar Mendes julgaram, cada um, mais de 6.000 feitos.

E por que isso? Por várias razões. Mas uma delas decorre do problema que já referi. O STF assume tarefas que dizem respeito a demandas e/ou reivindicações. Parcela considerável delas não deveria chegar até ele, STF. Alguma coisa está mal: se o caminho normal para reclamar de uma inconstitucionalidade, seja de que tipo for, no plano do processo penal é o REX, porque esse absurdo número de HCs? Somente no ano de 2011, o STF julgou 5.779 Habeas Corpus. Mas eles chegam lá. Por falha sistêmica ou, por que não, por incompetência, entendida esta no sentido da não incorporação do que seja “jurisdição constitucional difusa” ou uma jurisdição que examine a fundo essa questão das liberdades, desonerando a Suprema Corte de resolver isso via concessão de Habeas Corpus ou Mandados de Segurança.

Atender demandas (de acordo com as reinvindicações) acarreta custos de legitimidade
Onde quero chegar? Quero demonstrar que, do mesmo modo como o Presidencialismo brasileiro é de coalisão, enredado em atendimentos de pleitos políticos ad hoc, circunstância que causa enormes problemas para a assim denominada “governabilidade” (por que precisa de um ministro da Pesca que nem sabe pescar?), também o Supremo Tribunal Federal acaba ingressando perigosamente nesse terreno de (atendimento a) demandas de grupos. E também — e isso precisa ser dito — demandas provenientes da falta de resolução dos problemas das liberdades públicas no plano dos demais tribunais do país. Eles falham e tudo acaba no STF. Ele cresce. Mas sofre. E sangra na legitimidade.

Vou tentar explicar isso melhor: assim como a Presidência da República tem que atender aos pleitos dos partidos, o STF, durante esses mais de 20 anos, acabou por engendrar uma espécie de “julgamentos políticos”. Entendam-me bem: julgamentos políticos no sentido de que os resultados dos julgamentos por vezes atenderam reivindicações dos mais diversos setores da sociedade. Assim, o “partido” das nações indígenas foi até o STF e teve suas demandas atendidas; o “partido” das cotas queria legitimar as cotas, e deu certo; o “partido” das uniões homoafetivas” queria que o STF dissesse que união estável era equiparável a casamento, e obteve êxito; o “partido” das causas feministas, entre outras coisas, buscou retirar da mulher vitimada por maus tratos a titularidade da representação, e igualmente se saiu bem; o “partido” das questões ligadas aos embriões e células tronco, idem; o “partido” dos governadores (questões envolvendo guerra fiscal, etc.) bateu às portas do STF uma infinidade de vezes; o “partido” das reivindicações de prestação de saúde via judicialização também alcançou seu desiderato; o “partido” da moralização das eleições (ficha limpa) foi pressionar para que o STF considerasse constitucional a Lei da Ficha Suja (ou Limpa); até mesmo o “partido” do parlamento saiu-se bem, pois, mesmo sem obedecer à Constituição, conseguiu validar quase 500 medidas provisórias graças a uma modulação de efeitos concedida pelo STF… E assim por diante. As decisões estiveram teleologicamente corretas? Principiologicamente incorretas (algumas)? Aí é que está o problema. Julgamentos não devem ser teleológicos. Explico, na sequencia, o porquê disso.

Com efeito. Em boa parcela desses pleitos, julgados por intermédio de ADIs, ADPFs e HCs, a resposta do STF foi invasiva, por vezes ingressando nas competências dos demais poderes (não importa, aqui, se esses “demais poderes” “mereceram” essa invasão ou não, em face de suas inércias). Aliás, isso pode não ser de todo um mal. Talvez o grande problema esteja na distinção entre judicialização e ativismo. Explico: a primeira acontece porque decorre de (in)competências de poderes e instituições, abrindo caminho-espaço para demandas das mais variadas junto ao Judiciário; a segunda é, digamos assim, behavorista, dependendo da visão individual de cada julgador. A judicialização pode ser inexorável; o ativismo não. O ativismo não faz bem à democracia, como já escrevi nesta ConJur: “Ativismo judicial não é bom para a democracia” (clique aqui para ler).

Mas também em boa parcela das respostas do STF pode se ver nitidamente julgamentos “de acordo com as reivindicações”, a ponto de um dos ministros, Luiz Fux, dizer em entrevista dada ao jornal Valor Econômico, em 5 de setembro de 2011, quando perguntado se ficou incomodado em decidir contra a maioria derrubando a aplicação da Ficha Limpa às eleições de 2010, disse: “Eu achei que era uma posição muito sustentada. Seria uma demonstração de fraqueza não seguir a regra constitucional para agradar a opinião pública. Isso me descaracterizaria como homem público. Fui promotor. Fiz concurso para juiz. Eu não aceito a ideia de que o STF seja contra-majoritário, pois, na verdade, o STF sufraga a opinião pública, a vontade do povo que está na Constituição. Ali está a vontade fundante de um novo Estado”. No aludido voto, o ministro chega a dizer que “não cabe a este Tribunal desconsiderar a existência de um descompasso entre a sua jurisprudência e a hoje fortíssima opinião popular a respeito do tema “ficha limpa”…”. Sem precisar entrar no mérito e repristinar o debate sobre aquele julgamento — e nem seria o caso — a questão que fica é: como se afere a opinião pública? Deveríamos plebiscitar os julgamentos da Suprema Corte? Mas se o STF deve julgar conforme o desejo da maioria do povo, por que razão necessita(ria)mos de um tribunal com essa função? E, uma questão: isso vale para os julgamentos criminais? No caso do mensalão, que trato na sequencia, como saber o que a maioria do povo quer? Como já mostrei, a CUT — um lado da moeda — já está se manifestando…

El sendero de los caminhos que se bifurcan: julgar por políticas ou por princípios?
Num conto de Borges, ele fala de uma obra na qual todos os desenlaces acontecem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. De vez em quando, as veredas desse labirinto convergem. Num dos passados possíveis, o senhor é meu amigo; noutro, meu inimigo… Pois é. Ao atender reivindicações ou demandas populo-sociais, por vezes a Suprema Corte deixa de julgar por princípios e passa a julgar por políticas. E isso me parece problemático.

Assim:
a) A diferença entre esses dois tipos de julgamentos é a seguinte: quando decide conforme princípios o Judiciário reconhece a existência de um direito que as partes possuem e que está inscrito no contexto mais amplo da moralidade da comunidade política;
b) Já quando decide por políticas o Judiciário assenta sua decisão, não no reconhecimento de um direito preexistente, mas, sim, em algum tipo de argumento que anuncia uma avaliação de resultados que podem trazer maior benefício para o bem-estar social.

Dai que:
a) Julgamentos por política, no fundo, representam aquilo que hoje vem sendo chamado de consequencialismo: nele o Judiciário não leva os direitos a sério no sentido de seriously right como fala Dworkin; ao contrário, por vezes nega direitos a pretexto de que a sua efetiva concretização traria maior prejuízo econômico, ou não contribuiria para o bem-estar geral etc. Num sentido mais prosaico, seriam também políticas as decisões tomadas com base em uma pseudo vontade da maioria, clamor popular ou até mesmo — e no limite — interesse partidário. Claro que, aqui, é necessário um certo cuidado, porque na discussão com Richard Posner, Dworkin até afirma ser consequencialista. Mas haveria uma contradição, aqui? Na verdade, ele é “consequencialista” não no sentido de Posner (análise econômica do direito). Mas o é no sentido de que o juiz é responsável politicamente pelo que faz com os princípios que constituem internamente uma comunidade democrática. Aqui, por exemplo, cabe bem dizer que minha crítica ao pan-principiologismo é um argumento “consequencialista”.

b) É evidente que — e espero que isso fique bem esclarecido — em, um sentido mais geral, o direito possui uma justificação política. Em Dworkin isso aparece na construção do que ele nomeia de “responsabilidade política dos juízes”. Segundo o jusfilósofo estadunidense, a responsabilidade política dos juízes implica decisões assentada em argumentos de princípios.

c) Ou seja, a responsabilidade política dos juízes é decidir de modo a reconhecer direitos, e não a criá-los a partir de argumentos subjetivos ou políticos no sentido retratado acima (o tipo de decisão que articula, concomitantemente, argumentos de princípio e argumentos de política, são as decisões legislativas).

d) Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais, etc. Só que estas, depois que o direito está posto — nesta nova perspectiva (paradigma do EDD) — não podem vir a corrigi-lo.

e) É verdade que o direito presta legitimidade à política, compreendida como poder administrativo, sendo que a política lhe garante coercitividade. Concebendo a política como comunidade (Polity), o direito faz parte dela. Compreendida como exercício da política (politics), há uma coimplicação entre eles na constituição do político. Como ponto de vista partidário, o direito tem o papel de limitar a política em prol dos direitos das minorias, definindo o limite das decisões contramajoritárias. O direito é essencialmente político se o considerarmos como um empreendimento público. Daí política ou político, no sentido daquilo que é da polis, é sinônimo de público, de res publica.

O resultado ou a consequência desse estado d’arte é que, chegando próximo a julgamentos tensionantes — como é o caso do mensalão — a nossa Suprema Corte fica sendo pressionada por vários grupos, como se também em julgamentos criminais pudessem ou devessem existir “julgamentos políticos”. Não! Aí é que está. Nem em processos criminais e nem em quaisquer outros. Hoje o Supremo Tribunal Federal pode estar pagando o preço por julgar a partir de uma “jurisdição de coalisão”. É claro que, chegando a causa ao STF, ele deve julgar. A Corte não atua de ofício. Mas, é bem verdade que muitas delas são questões que a sociedade deve resolver. O mesmo acontece com o STJ, por exemplo, com o julgamento que recentemente “judicializou o amor” (quantos milhares de ações ingressarão nos foros do país?). Não era o caso de dizer “não”, julgando por princípios e não por políticas? Qual é o argumento jurídico da “judicialização do amor”?

Numa palavra
Mesmo que o STF venha a decidir, e tenho certeza que o fará, casos como o mensalão, que é o case mais importante das últimas décadas, julgando por princípios (dworkinianamente falando), ainda assim milhões de pessoas, descontentes, de um lado ou de outro, dirão: foi político (atentem para a manchete da Folha de São Paulo que reproduzi na abertura da coluna: CUT ameaça ir às ruas em defesa de réus do mensalão). Como Zeus na “escolha” em torno do “pomo de ouro”,[1] o risco de ser acusado de parcialidade (leia-se, ter julgado politicamente o case) é muito grande. Claro. E, por quê? Porque olhando para o passado, qualquer dos lados pode ter razão. Afinal, quantas vezes o STF, ao invés de julgar “por princípio”, julgou “por política” (sempre alertando para o sentido dessa palavra a partir de Dworkin — é disso que estou falando!)? A conta pode vir pesada. Vejam as mobilizações a favor dos réus do mensalão; e logo, por certo, haverá manifestações contra os réus do mensalão… Parece inexorável isso. Afora a comunidade jurídica: haverá os que serão a favor; e haverá os que serão contra. Por vezes, a questão, nesse contexto, no plano da opinião pública (ou publicada), assumirá contornos meramente ideológicos.

Por isso, minha opção é, por assim dizer, “ortodoxa” e/ou conservadora (como conservador que sou): julgamentos nunca devem ser por “políticas”, ou, melhor dizendo, julgamentos não devem ser políticos jamais; devem ser, sim, por princípios. Neste caso, nada como um bom liberal como Ronald Dworkin para ajudar a compreender esse fenômeno da aplicação da Constituição (se alguém tem dúvida, leia o que ele diz sobre as cotas no Brasil).

Numa palavra final: falando sobre essa temática com meu Amigo Marcelo Cattoni, brilhante constitucionalista da UFMG, ele me lembrou de Kelsen e da defesa que este fazia da forma de nomeação dos tribunais constitucionais. Não se pode deixar de referir — e nem de longe isso quer dizer “reserva de mercado para o Direito Constitucional” — que Kelsen defendia que a inevitável influência política dos partidos na nomeação dos juízes do Tribunal Constitucional (da Áustria) deveria ser contrabalanceada pela possibilidade apenas de nomeação de especialistas em Direito Constitucional. Claro que ele se referia ao Verfassungsgerichtshof Österreich, que é uma Corte Constitucional na acepção do termo, ao contrário do STF, que não é um Tribunal ad hoc. Mas…ach (expressão de desdém em alemão, que é dita fazendo um movimento de braço, de cima para baixo), esse Kelsen também não tinha o que fazer…


[1] Trata-se da estória do “pomo de ouro”, disputado por Hera, Atena e Afrodite. Dessa disputa se origina o sequestro de Helena, resultando na Guerra de Troia. Eris, a deusa da discórdia, não foi convidada. Mas em compensação, fez um estrago bárbaro.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!