JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Precisamos de uma nova revolução, desta vez tributária!

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

9 de julho de 2012, 9h37

Spacca
O estado de São Paulo comemora, nesta segunda-feira (9/7), o 80º aniversário da revolução que exigia uma constituição que pudesse garantir o exercício dos direitos de cidadania e alguma prática democrática. Por mais que nós paulistas possamos nos orgulhar disso, a verdade é que o movimento de 32 fez muito barulho, mas o resultado não foi aquele que o país merecia.

Tanto assim, que na maior parte desses 80 anos vivemos em meio à prática diária de atos ilegais por parte de autoridades de todos os escalões e mesmo a Justiça muitas vezes não passa de um sonho.

Por outro lado, representantes das mais atrasadas oligarquias, pessoas e instituições que ainda vivem na idade média, além de grupos econômicos poderosos que prosperam à custa do esforço alheio e mesmo de práticas criminosas, continuam detendo parte relevante do poder na sociedade brasileira. Isso precisa mudar.

Refletindo sobre tudo isso, nós que almejamos Justiça Tributária somos obrigados a repetir com frequência os princípios que compõem o preâmbulo da nossa constituição, onde todos pretendemos viver em

“um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…”

Infelizmente, ainda estamos longe de alcançar esses objetivos, já que somos vítimas de uma estrutura tributária injusta, ineficaz e insegura, que inibe o crescimento do país, favorece a sonegação e a corrupção e impede o nosso bem estar, a nossa felicidade.

Parece-nos chegado o momento de questionarmos todas as nossas instituições, exigindo de nossos legisladores uma reforma constitucional que afaste aqueles problemas, dos ocupantes de cargos no executivo que cumpram suas obrigações com eficiência e de nosso Judiciário que nos entregue a Justiça a que fazemos jus, sem que se sintam por isso sentados no trono de algum deus, mas apenas porque esse é o seu trabalho.

Na questão tributária, que é o foco desta coluna, temos que lutar contra os 3 grandes problemas que nos afligem: a) carga tributária excessiva, que a todos onera além do justo e razoável; b) burocracia estúpida que a todos inferniza e enlouquece; e c) insegurança de um sistema legislativo mal feito, onde se permite que até o passado seja imprevisível.

Parece-nos que já comentamos razoavelmente sobre essas 3 dificuldades. Por isso, entendemos útil trazer ao debate outras questões que daquelas decorrem, indispensáveis a uma visão mais ampla do problema, na esperança de divulgarmos aspectos que não podem passar ao largo dessas considerações.

Ora, se a carga tributária é exagerada, devemos reduzi-la. Mas isso só se viabiliza se houver uma firme vontade política no sentido de adequar as despesas às possíveis receitas. Ou seja: o governo (no sentido mais amplo) só pode gastar o que arrecadar, mas não pode tentar arrecadar além da capacidade contributiva do cidadão.

O conceito de capacidade contributiva parece elástico, mas não é. O artigo 145 § da CF afirma que

“ – Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

Ora, se é a capacidade econômica do contribuinte fator determinante para a cobrança de impostos e se o artigo 150, IV da CF não permite utilizar tributo com efeito de confisco, resulta evidente que só é possível cobrar tributo que permita ao contribuinte honrá-lo, porém sem deixar de exercer os direitos anunciados no preâmbulo : “… direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento….”

Dentre esses direitos, incluem-se a educação, o lazer, a cultura, etc.- Se para pagar impostos o contribuinte tiver que abrir mão de algum desses direitos, estará sofrendo confisco ou pagando além da sua capacidade contributiva.

Quando o rendimento é do trabalho apenas, fica mais evidente o exagero. Robert Nozick , citado por Michael J. Sandel em seu livro “Justiça – O que é fazer a coisa certa” afirma que “A taxação dos rendimentos do trabalho é o mesmo que trabalho forçado”. Isso não parece exagero no Brasil.

No que tange à carga tributária, não basta que ela seja razoável, não confiscatória e proporcional à capacidade contributiva. O mais importante é que o seu produto (da arrecadação) seja utilizado com critério e exclusivamente a serviço do povo.

Assim, devem ser banidos todos os mecanismos que permitam o mau uso do dinheiro arrecadado com os tributos. Não é justo o pagamento de aposentadorias apenas por tempo de serviço, por exemplo. Aposentadorias só se justificam em caso de idade avançada ou invalidez permanente. Quando se permite que o aposentado que recebe dos cofres públicos venha a exercer outro cargo no mesmo serviço público, o absurdo é maior. Criam-se privilégios para poucos, em detrimento de muitos. Isso, evidentemente, viola os princípios de igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”.

Também não faz mais sentido, em pleno século 21, a construção de edifícios desnecessariamente suntuosos, autênticos palácios, para abrigar serviços públicos, quase sempre recheados de móveis luxuosos e cercados de carros oficiais. Pior ainda a existência de prédios públicos abandonados, sem uso ou função. São nossos bens sendo destruídos. Todo aquele exibicionismo e este descaso chegam a ser criminosos, quando absorvem recursos do povo, enquanto encontramos hospitais e escolas sem as mínimas condições de atendimento.

Tais considerações certamente merecerão críticas, por se aproximarem de pregação política e afastarem-se dos aspectos técnicos da tributação. Mas na verdade não há como se resolver a questão tributária se não houver uma revisão da prática política.

Talvez não seja necessária uma nova constituição, bastando que a atual seja reformada. Mas uma coisa é certa: se a carga tributária não for reduzida para permitir que todos paguem impostos legalmente e consigam manter uma vida decente, com o pleno exercício de seus direitos fundamentais, mais cedo ou mais tarde o caos reinará.

Precisamos também reduzir a burocracia, em todos os setores, em todos os sentidos. Qualquer pessoa hoje que vai comprar ou vender um imóvel, por exemplo, perde-se no cipoal burocrático e vê-se obrigada a gastar dinheiro com o pagamento de despachantes ou auxiliares que consigam resolver tal encrenca. Se o imóvel for comercial ou industrial, quase sempre o negócio é invadido por picaretas de todos os matizes, tornando quase obrigatório o uso da corrupção como ferramenta de conclusão da obra. Isso não pode continuar.

Já comentamos neste espaço (10/10/2011) que está em andamento no Congresso o projeto de lei complementar 194/2001 que cria o Código de Defesa do Contribuinte. Essa discussão desenvolve-se há mais de 15 anos, tendo sido apresentadas várias propostas, todas já consolidadas. Ainda que apresente algumas omissões, o projeto precisa ser aperfeiçoado e aprovado, para que dê ao contribuinte brasileiro um mínimo de garantia no seu relacionamento com o fisco.

Não se pode, por exemplo, admitir abusos fiscais que se tornam rotineiros, como as fiscalizações que não terminam nunca, quando o CTN determina que deve ser fixado prazo para a conclusão. Não se pode também admitir que o contribuinte seja transformado em estafeta do fiscal, obrigando-se a levar documentos à repartição, quando tal obrigação é do servidor público. Em síntese: o contribuinte deve ser respeitado como a pessoa que paga o salário do servidor público e não como se fosse um subordinado daquele que recebe.

Os servidores federais, por exemplo, devem observar o decreto 1.171 de 27 de junho de 1994, que lhes impõe um Código de Ética, que considera “deveres fundamentais do servidor público”, dentre outros:

“ser probo, reto, leal e justo, demonstrando toda a integridade do seu caráter, escolhendo sempre, quando estiver diante de duas opções, a melhor e a mais vantajosa para o bem comum;

“ser cortês, ter urbanidade, disponibilidade e atenção, respeitando a capacidade e as limitações individuais de todos os usuários do serviço público, sem qualquer espécie de preconceito ou distinção de raça, sexo, nacionalidade, cor, idade, religião, cunho político e posição social, abstendo-se, dessa forma, de causar-lhes dano moral;

Os demais servidores devem seguir os mesmos princípios, até porque em muitos estatutos estaduais há normas semelhantes.

Também é indispensável que se inclua na reforma constitucional um limite claro para as multas administrativas, de forma que não possam representar valores absurdos. Multas confiscatórias servem apenas para alimentar a corrupção ou condenar empresas à morte.

O STF na ADI-MC 1075/DF decidiu que não é possível multa com efeito confiscatório. Em seu voto o Relator, Min. Celso de Mello afirmou:

“É inquestionável, Senhores Ministros, considerando-se a realidade normativa emergente do ordenamento constitucional brasileiro, que nenhum tributo – e, por extensão, nenhuma penalidade pecuniária oriunda do descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias – poderá revestir-se de efeito confiscatório. Mais do que simples proposição doutrinária, essa asserção encontra fundamento em nosso sistema de direito constitucional positivo, que consagra, de modo explícito,a absoluta interdição de quaisquer práticas estatais de caráter confiscatório, com ressalva de situações especiais taxativamente definidas no próprio texto da Carta Política (art. 243 e seu parágrafo único).”

Claro que existem inúmeras outras questões a serem discutidas. Estamos num momento importante da nossa história, pois o panorama internacional pode nos favorecer com uma nova ordem econômica, capaz de viabilizar todos os nossos projetos de bem estar. Todavia, não se alcança esses objetivos se não corrigir a nossa legislação falha, incompleta, equivocada, a partir da norma maior, a constituição. Não precisamos de um ajuste, algumas medidas, alguns decretos ou alguns favores aqui outros ali. Precisamos de mais. Neste 9 de julho, sabemos que precisamos de uma nova revolução, desta vez tributária! 

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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