É assim no final?

O amor se gasta, lentamente, no tempo arbitrário da vida

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9 de julho de 2012, 12h35

— É só isso?

— Só isso sim, Aline. Se vocês quiserem esperar um pouco, podem aguardar no corredor para levar o documento de averbação do divórcio.

Mas Aline não levantava. André também parecia não ter pressa para deixar a sala.

— Surpresa com a rapidez? – perguntei, tentando esvaziar o espaço para a pauta que começara há pouco.

Ela não estava surpresa. Não conseguia encontrar a palavra que definisse o que sentia naquele instante. Na impossibilidade de sintetizar com um substantivo abstrato, precisava de longas orações coordenadas, subordinadas às lembranças que brotavam sem ordem cronológica compreensível.

— É isso, então, o que acontece no final? – ela repetia, olhando para André, como se ele tivesse a resposta.

Aline e André não tinham uma história dramática para contar. Nem sequer precisavam de um acerto de contas. Não se olhavam com ressentimento, tampouco deixavam transparecer que ainda nutriam alguma expectativa para retomar a vida a dois.

Viveram juntos 22 anos. Conheceram-se do outro lado do oceano. Ela, num curso de especialização, ele, de mochila nas costas em uma viagem ferroviária sem rota ou destino.

As coincidências e as afinidades eram a certeza de que um nasceu para viver ao lado do outro. Ele ancorou naquele porto seguro e decidiu esperar o fim do curso da moça. Não perderia o trem de volta ao seu lado.

Podia ser apenas mais um romance definitivo, daqueles que começam nas férias e terminam tão logo aterrissam na vida real. Mas não foi assim, na história de Aline e André.

Agora, ali na sala de audiências, Aline estava visivelmente abalada. Eu não queria deixá-la se expor, sem necessidade, naquele ambiente. Interrompi:

— Aline, vocês já terminaram. Não preciso saber dos motivos da separação, nem acho legal você ficar revolvendo suas lembranças…

Antes que eu concluísse a frase, ouvi a voz de André:

— Lembra do sufoco, Aline, quando seu namorado apareceu lá, de surpresa?

Comovidos e emocionados, os dois não só queriam como precisavam contar a profunda experiência de amor que vivenciaram durante mais de duas décadas.

Os filhos, o trabalho, as divergências familiares, as muitas viagens, os livros, os filmes. Em pouco tempo, montaram a colcha de retalhos costurada pela estrada.

Choravam de mãos dadas. O casamento acabou. O amor, provavelmente, também. A tristeza com que experimentavam o luto se espalhava pela sala. Parecia desrespeitoso interrompê-los.

Se o ritual do nascimento do amor fazia todo sentido, o mesmo não se podia dizer do seu fim.

Pode ser que os amores sejam todos iguais: começam com o coração aos pulos, migram para a banalidade do cotidiano, se dispersam no tempo e, um dia, chegam ao fim. As exceções estão ai para confirmar a regra.

No entanto, Aline, André e tantos outros que passaram por aquela sala acreditavam que, com eles, a história seria outra.

O herói romântico tinha um destino trágico, como todos os heróis.

Nas tragédias, o fim estava traçado. Não tinha jeito de mudar rota ou rumo. No entanto, os heróis dedicavam a vida a lutar contra o destino inexorável.

No amor, contrariando todas as estatísticas, experiências, pesquisas científicas, cada casal tinha a pretensão de reverter o peso do cotidiano e aprisionar aquele estado inicial de encantamento e paixão na gaiola da eternidade.

Quando não conseguiam, como qualquer herói, enfrentavam a tragédia do fim.

Também no caso de Aline e André, o distanciamento foi lento. O amor não acabou de uma hora para outra. Não houve um fato, um desencontro, uma falha de comunicação que pudesse ser apontado como a causa.

Aline e André não brigavam. O ninho vazio dos filhos que ficaram adultos e foram viver suas vidas era a explicação para o afastamento. Algumas vezes, percebiam o incômodo ou a insatisfação do outro, como naquela vez em que ele, chegando tarde de um jantar com os amigos, encontrou a mulher chorando na sala escura.

Abraçaram-se, carinhosamente, para aplacar a sensação de abandono que não era verbalizada, mas experimentada, em silêncio, pelos dois.

O amor nunca acaba de uma hora para outra. Vai gastando, lentamente, no tempo arbitrário da vida.

Se o começo de tudo tinha uma história, uma hora, um roteiro e um ritual; se era garantido aos amantes uma festa, promessas, flores, música e todo um cenário para sacramentar a sorte e a coincidência do encontro, nada mais justo que o fim do amor também pudesse ser vivido com a cerimônia necessária.

Não era o caso de uma celebração. Também não podia ser tão simples quanto duas assinaturas numa sala gelada de um tribunal e mais nada.

Aline tinha razão: 22 anos de vida não podiam terminar em cinco minutos.

Ouvi as histórias que quiseram contar. Não me preocupei com o atraso das demais audiências.

Aline e André precisavam combinar a melhor maneira dele retirar as suas coisas da casa. Ainda precisavam acertar a divisão das pequenas lembranças e dos objetos grávidos de significado.

Nada disso era tratado no processo. Mas decidiram que a solução seria encontrada sob meu olhar.

Não era culpa de ninguém. A frustração era dos dois. A tristeza do luto era de todos nós que assistimos à expressão concreta do fim de um ciclo.

Não adiantava falar que eles tiveram uma vida linda. Não adiantava falar que era raro um relacionamento acabar de mãos dadas. Não adiantava mostrar que o que eles plantaram no caminho era definitivo.

Mesmo acostumada a observar e decidir dezenas de separações diárias, com o distanciamento profissional possível, me vi, naquele momento, envolvida pela tristeza profunda experimentada pelo casal.

Não conseguia enxergar aquele destino como um fenômeno banal e cotidiano. A individualização da dor, estampada nas faces de Aline e André, fazia com que eu compreendesse cada processo como uma tragédia única.

Desejei boa sorte aos dois. Eles saíram de mãos dadas. Olhei para a cena como se estivesse observando um milagre da transformação do amor para outra de suas muitas formas.

Acostumada com os finais felizes das obras de ficção, antevi a possibilidade da retomada daquela relação.

Mas não era assim na vida real. Não era, também, o fim do mundo. A vida tem múltiplos caminhos e diversas possibilidades. O ritual do luto era necessário para seguir adiante.

*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.

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