Caminho sem volta

Anotações sobre o processo eletrônico no Brasil e nos EUA

Autor

  • Bruno Leonardo Câmara Carrá

    é juiz federal; doutor em direito civil (USP); professor nos cursos de graduação e pós-graduação em sentido estrito (mestrado acadêmico) da UNI-7; foi pesquisador visitante nas Universidade de Bolonha Paris V e Oxford.

6 de julho de 2012, 13h14

A informatização é um caminho sem volta na cultura humana. Logo, no Direito também. Não há mais quem duvide de seus efeitos benéficos, hoje, na verdade, imprescindíveis para a manutenção da vida em sociedade. O Poder Judiciário, que terá de dar contenção à litigiosidade da cibercultura,precisará estar munido de cibercultura para realizar sua função institucional: pena de insucesso.[1]

A exemplo de sua pioneira experiência de utilização da informática no processo no âmbito do Direito Eleitoral, o Brasil, uma vez mais, brinda o mundo outra inovação com potencialidade para redefinir mesmo certos conceitos ou noções processuais que se podem denominar de clássicos, qual seja, a criação do processo judicial eletrônico (PJe).

O PJe redefine, na prática, a própria noção de processo, mexendo com a imagem arquetípica que associa, na forma de metonímia, autos (o suporte físico) e processo (o instituto jurídico). Não é sem razão que, como anota Peter Gilles, vivemos ao lumiar de um Direito e-Processual mais que Processual.

A Justiça Federal deu, no caso nosso, o passo inicial ao virtualizar todos os processos tramitando em seus Juizados Especiais. Dessa ousada decisão até o presente, muitas foram as barreiras superadas, inclusive com a edição de uma Lei (11.419/06) que disciplina o assunto.

Hoje, a Justiça brasileira ocupa uma posição vanguardista em relação ao tema diante de sua arrojada meta de virtualizar todos os processos em tramitação no país. No caso do Superior Tribunal de Justiça, a integralidade dos expedientes tramita em meio virtual. O STJ, por sinal, foi a primeira Corte Superior a atingir essa marca, antes mesmo da prestigiada Corte de Cassação francesa, cujo projeto de virtualização antecedeu ao nosso. No Supremo Tribunal Federal, a transformação dos autos, de físicos para virtuais, também caminha a passos expressivos.

Como já se pode antever, a virtualização não é um fenômeno isolado. Outros modelos coexistem com o que praticamos no Brasil. Porém, daqueles que estão disponíveis para acesso aos usuários, nenhum é tão amplo como o brasileiro. Com efeito, o estudo dos vários sistemas existentes demonstra concretamente o quanto estamos adiantados em matéria de virtualização.

Dentro desse cenário, o Direito Judiciário nos Estados Unidos da América vem sendo, igualmente, um campo fértil para o fenômeno da virtualização. Nosso objetivo, portanto, é fazer uma rápida abordagem das práticas ali existentes, comparando-as, em alguma medida, com as nossas.

Em razão da conhecida estrutura federativa do Direito estadunidense, que outorga aos Estados-membros competência para legislar sobre matéria processual, o uso de meios eletrônicos deve ser analisado sob uma perspectiva dúplice.

No âmbito Federal, desde 17 de dezembro de 2002, vigora o E-Government Act que regulamentou de modo detalhado o uso de ferramentas tecnológicas e eletrônicas, pelos diversos setores do Poder Público Federal, principalmente nos Poderes Executivo e Judiciário.

Essa lei determina que cada um dos Tribunais Federais estadunidenses crie e mantenha em funcionamento sítios eletrônicos, disponibilizando em linha (online) para os usuários os documentos digitalmente arquivados. Foi previsto ainda a possibilidade de conversão de documentos arquivados inicialmente em suporte físico.[2]

Desde 2010, os referidos Tribunais consideram obrigatório o arquivamento eletrônico de documentos (e-filing). Foram criados dois sistemas para essa finalidade:
a) CM/EFE — Online Case Management and Filing: sistema informático de gerenciamento de processo que permite aos usuários o arquivamento eletrônico de documentos em autos pendentes pela internet.

b) PACER: sistema que permite aos usuários obter, visualizar e imprimir os registros de processos pela internet.

Nada obstante os avanços mencionados, dois problemas podem ser rapidamente divisados no sistema alienígena.

O primeiro reside no fato de que há uma diversidade de procedimentos entre os tribunais. Documentos que podem ser transmitidos eletronicamente em uma região judiciária (circuit court of appeals) podem não ser em outra.[3]

A segunda está na quantidade (grande) de exceções à regra da obrigatoriedade do arquivamento eletrônico. A mais importante delas é a que veda o uso do meio eletrônico para a abertura do expediente no tribunal.

Assim, as razões da apelação (review) e demais recursos dirigidos à Corte ou ainda ações de competência originária, como, por exemplos, certos writs, terão de ser admitidos em meio físico, ou seja, em papel.

A depender do tribunal, poderão os novos expedientes serem encaminhados através do escaneamento das bases em papel para um arquivo de extensão .pdf. (portable document file) por um e-mail especificado pelo Tribunal (por exemplo, no caso da 2a. Região, com o e-mail [email protected].) para que possam tramitar.

No âmbito estadual, é ainda mais evidente a diversidade sobre os graus de informatização e de sistemas disponíveis.

A título de exemplo, vejamos a experiência do estado de Nova York. Através da Lei de 24 de Março de 1999, uma das primeiras a ser editada, foi introduzido um programa piloto permitindo o uso do fac-símile e outros meios eletrônicos para o ajuizamento de demandas.

Contudo, o aspecto talvez mais interessante dessa norma foi a regulamentação do uso do cartão de crédito para o pagamento das taxas judiciárias. A previsão normativa também dizia que o uso de meios eletrônicos dependeria do consentimento das partes litigantes.

Posteriormente, a Lei de 31 de Agosto de 2009 ampliou a utilização dos recursos informáticos, notadamente para que pudesse ser realizada a transmissão remota de dados em Varas no interior do estado (counties courts) para os tribunais mais graduados.

Foram consideravelmente alargadas as hipóteses nas quais, por ato do Poder Judiciário, o interessado poderia fazer tramitar a demanda em meio virtual sem o consentimento da parte contrária, sendo, entretanto, garantida a possibilidade de o interessado recusá-lo em momento posterior e em forma expressa (opt-out).

O estado de Nova York desenvolveu e opera desde aí o NYSCEF New York State Unified Court System, um programa que permite a apresentação de documentos legais, por via eletrônica (filing), em certos tipos de caso e em locais especificados, assim como o gerenciamento eletrônico desses documentos.

O NYSCEF pode ser utilizado desde o ajuizamento do processo, mas permite também a conversão para meio virtual de procedimentos iniciados em base impressa.

O acesso ao sistema pode ser realizado através da página web https://iapps.courts.state.ny.us/nyscef/HomePage, podendo o interessado realizar um prévio treinamento para melhor familiarização com suas funcionalidades.Duas são as bases de acesso: uma para os tribunais de maior graduação e outra correspondente ao nosso Primeiro Grau de Jurisdição.

Uma peculiaridade do sistema judiciário estadunidense (e que dificilmente poderia ser implementada por aqui em razão das fortes diferenças culturais em relação ao ponto) é a apresentação tanto da demanda como de recursos mediante formulários, os quais, muitas vezes, são obrigatórios. Vale dizer, as partes não podem dispensá-los.

Com o e-filing não é diferente. Desse modo, o sistema também já fornece para o usuário (advogado ou, eventualmente, a própria parte) o formulário (form) que deverá ser preenchido para os fins de processamento eletrônico.[4]

Nada obstante, o uso do processo eletrônico continua limitado em muitos casos, o que sacrifica a própria funcionalidade do sistema. O normativo mais recente, datado de 18 de Junho de 2012, disciplina os documentos que não podem ser arquivados e transmitidos digitalmente[5]. Além disso, a existência de uma solução opt-out, também presente nos circuit appeals,diminui em considerável grau a eficácia jurídica do pretendido caráter obrigatório do uso do e-filing.

Também pode ser considerado como inibitório de uma maior ampliação do processamento eletrônico o fato de a Suprema Corte ser ainda restritiva quanto ao seu uso. Precisamente, o contrário do que ocorre com nosso Supremo Tribunal e demais Cortes Superiores.

Nada obstante, as últimas diretivas (guidelines) estabelecidas pela Secretaria Judiciária (office of the Clerk) da US Supreme Court tornam possível a transmissão dos arrazoados (briefs of merits) entre as partes envolvidas no writ of certiorari, mas essa providência não substitui a necessidade da formação do instrumento em meio físico.[6]

De alguma forma, espanta o fato de que o país onde foi inventada, inicialmente para fins militares, a rede mundial de computadores (a world wide web)seja mais refratário do que nós a sua utilização prática no âmbito do Poder Judiciário. As razões para isso, contudo, podem ser várias e mereceriam espaço próprio para serem comentadas.

Seja como for, as novas ferramentas tecnológicas necessitam ser aplicadas porque o mundo transformou-se. Nesse sentido, não se trata de opção, mas sim de imposição. E parece que, nisso, partimos na frente. Sem presunções ou ufanismos, será que dessa vez o que é bom para o Brasil não seria bom também para a América?


[1] O termo cibercultura, como sugere Pierre Lévy em um estudo homônimo, representa as vicissitudes e também as contingências de uma cultura com grandes potencialidades. Cf. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

[2] Diz, com efeito, o E-Government Act: (c) Electronic Filings – (1) In General – Except as provided under paragraph (2) or in the rules prescribed under paragraph (3), each court shall make any document that is filed electronically publicly available online. A court may convert any document that is filed in paper form to electronic form. To the extent such conversions are made, all such electronic versions of the document shall be made available online.

[3] A título de exemplo, pode-se comparar as regras (regimento) de dois Tribunais Federais norte-americanos (1a e a 10a Regiões – circuits)para perceber que há variação entre as exceções ao arquivamento eletrônico estabelecidas entre um e o outro(http://www.ca1.uscourts.gov/files/notices/AdministrativeOrder.pdfehttp://www.ca10.uscourts.gov/downloads/ecf-user-manual.pdf)

[4] Cf., por exemplo o formulário disponível na webpage: http://courts.state.ny.us/forms/rji/UCS-840-fillable.pdf.

[5] De acordo com a informação constante na própria página web do Poder Judiciário do Estado de Nova York: “Secure filings of the following documents shall not be permitted: (1) affirmation/affidavit of service: (2) notice of pendency; (3) cancellation of notice of pendency (lis pendens): (4) bill of costs: (5) proof of service: (6) request for judicial intervention (all forms): (7) release of lien: and (8) satisfaction of judgment.”

[6]http://www.supremecourt.gov/oral_arguments/2010ElectronicMeritsBriefsSubmissionGuidelines.pdf

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