Senso Incomum

Quando o Direito só serve para dizer o que é "feio" fazer

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5 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Já inicio a coluna pedindo desculpas aos leitores. Desculpas, digamos assim, epistemológicas. Hoje o assunto é mais árido. Cheio de espinhos. Quero demonstrar algo não usual no Direito. Ou seja, quero apenas mostrar os equívocos quando se diz que “a autoridade tal cometeu um ato imoral… mas dentro da legalidade”. Já não dá para suportar isso. Que o leitor me conceda a tutela antecipada da paciência. Afinal, como tenho insistido, o Direito é um fenômeno complexo, embora parcela expressiva do establishment jurídico tente, cotidianamente, simplificá-lo, transformando-o em uma mera técnica, que, convenhamos, não exige maiores reflexões. Na verdade, do modo como se apresentam muitas decisões (e muitos livros “simplificadores” por aí), as faculdades de Direito poderiam fazer o curso em dois anos, transformando-o em um curso “profissionalizante”. Do modo como são emanadas muitas das decisões e pela qualidade de parte da “doutrina”, o curso de Direito caminha, em passos firmes, para um “curso profissionalizante a la Sesi, Senai ou Senac (sem ofensas a estes cursos importantes). Aliás, não é “de graça” que os juristas são chamados de “operadores”. Claro, o Direito é “operado” como se fosse um Carterpillar. Ou precisa estudar muito para ficar respondendo perguntas em concursos públicos que não passam de pegadinhas? Para que servem “conceitos” de “crime em curto circuito”, “crime oco”, “sentença suicida”? Sim, isso existe… Permito-me parar por aqui.

Se estamos de acordo, inicio. No livro Precisamos Falar sobre o Kevin, Lionel Shriver mostra o drama dos pais de um adolescente psicopata, diante do massacre que este comete na escola, matando várias pessoas. A frase é tardia, muito tardia: “precisamos falar sobre o Kevin”. O personagem-psicopata foi criado sem a interdição. Sem “lei”. Seu superego erodiu. Estraçalhava pássaros, furou o olho da irmã… E comprou armas pela internet. Eis o Kevin. Eis a crônica de um massacre anunciado. E a crônica do fracasso civilizatório.

Penso que nós também “precisamos falar sobre o Direito”, “sobre o ensino jurídico”, “sobre o papel da doutrina”, sobre o papel dos princípios, sobre o combate à corrupção e à improbidade administrativa…. Antes que seja tarde.

Para que servem os princípios? E arquivaram o procedimento contra Sua Excelência?
De há muito que venho criticando o pan-principiologismo, essa verdadeira bolha especulativa de princípios que assola terrae brasilis. Na coluna em que tratei da estagiariocracia (A tomada de poder pelos estagiários e o novo regime), quando falei do nouveau régime que se instalaria com o putsch a ser dado pelos estagiários (com suas alianças), brinquei com a edição da MP nº 1, que extinguiria de pronto alguns dos princípios eivados de axiologismo e as vãs tentativas de buscar valores (sic) como se estes fossem “coisas” (uma espécie de realismo moral, no contexto de uma ontologia clássica)… Desnecessário fazer uma lista (longa) desses princípios sem normatividade.

O que quero referir é que, se de um lado a comunidade jurídica fabrica princípios no atacado, no varejo isso não vem servindo para muita coisa. Princípios acabam sendo a “pedra filosofal da interpretação”, cujo resultado não é ouro, mas, sim, chumbo. Outra imagem que remete aos princípios, no modo como são utilizados, é o “skeptron” da fala de Homero: aquele que o possui, pode dizer qualquer coisa… Na verdade, os princípios, no modo “valorativo” como são “fabricados”, acabam colaborando para a reificação do Direito, pela qual se transformam ideias em “coisas” (lembro, aqui, do poema Nos Braços de Outro Alfabeto, de Adonis: “diz a teu corpo, amigo do mistério — não poderás transformar as palavras em coisas). Para ser bem simples e direto: parece incrível que ainda não tenhamos uma ideia acerca do que é isto — o princípio…! Ficamos repetindo mantras inúteis e metafísicos como “princípios são valores”… Claro: e o que são valores? Fácil: aquilo que o intérprete diz que é! Bingo. Um adendo: como demonstrarei, quando mais precisamos dos princípios, eles somem…!

Nesse sentido, veja-se — a título de exemplo — o caso do recente arquivamento de inquérito ou procedimento que imputava improbidade administrativa a um governador de estado, por ter utilizado o jatinho de um grande empresário para ir a uma festa. O dono da festa era um empresário que possui grandes negócios (muito grandes) com aquele estado. Mas, o que importa, in casu, foi o uso do jatinho. O procedimento foi arquivado sob a alegação de que a conduta do governador teria ferido apenas (sic) a ética, mas não configurava violação à legislação no âmbito da improbidade. Observe-se como o princípio da moralidade não serviu para nada. Veja-se a fragilização do Direito. Princípios são normas? São mesmo? Pra valer? Ou isso só serve para fazer dissertações e teses?

Para que serve o Direito? Vem aí um PAC dos princípios?
Não quero “desarquivar” o que foi arquivado. Quero apenas utilizar o case para ampliar um pouco a discussão. Vamos até esquecer o governador. Portanto, a questão que devemos discutir é: para que serve o Direito? Pode ele, nestes tempos pós-positivistas (com todos os problemas que essa palavra apresenta), ser cindido da ética (ou, melhor, da moral)? É ainda possível dizer, como se fazia “antigamente”, que uma conduta era imoral, mas legal?[1] Pois bem. Hoje ninguém nega que o Direito seja um sistema composto por regras e princípios. Nesse contexto, princípios são normas. Afinal, como já disse outras vezes, praticamente todos os livros sobre o tema não negam a tese de que princípios são (sejam) normas. A exceção, talvez, seja Humberto Ávila e sua tese que define alguns princípios — como a igualdade, esse sim um verdadeiro princípio — como meros postulados. Mas também não quero polemizar neste ponto.

O que ocorre é que, dependendo de como se olha os princípios, estes perdem essa aludida normatividade. Viram enunciados performativos. Ou expressões com forte anemia significativa. Valem, pois, nada. Ora, se os pensamos como “valores”, meros postulados ou “mandados de otimização”, sua normatividade se fragiliza muito. Neste caso, os princípios ficam à dis-posição (Ge-stel) do intérprete, inclusive para que “invente” novos…! E essa fábrica não para… Agora mesmo o STJ judicializou o amor, com base no princípio da… felicidade.[2] Falta só fazer um PAC dos Princípios (claro que haverá problemas na licitação, com constantes violações do princípio da moralidade — ups, está criado o paradoxo…). Na verdade, já estamos sofrendo uma espécie de bulling principiológico…! Obs: antes que alguém saia atacando o texto, afirmo que não há — mas não há mesmo — qualquer contradição no que estou dizendo, ou seja, no fato de, primeiro, pregar a aplicação principiológica e, depois, criticar os “princípios”, fazendo um sarcasmo com a “PAC dos Princípios”, “bolha especulativa dos princípios”, “subprime hermenêutico” (essas adjetivações estão em outros textos). Quando falo em pan-principiologismo, PAC dos Princípios, etc, estou apontando minhas armas contra os “princípios” pequeno-gnosiológicos, os “princípios” linóstolos (aqui, homenageio o clássico O Ingênuo, de Voltaire), enfim, aquilo que é epitetado de princípio, mas que não passa de um instrumento retórico para fragilizar a autonomia do direito, conforme explico em Verdade e Consenso, p. 517-542 da última edição.[3]

Falemos um pouco sobre a autonomia do Direito
Sigo. Com o pan-principiologismo, ocorre uma fragilização daquilo que é ponto central do novo direito (pós-bélico, como diria Mário Losano): o seu elevado grau de autonomia. Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais, etc. Só que estas, depois que o Direito está posto — nesta nova perspectiva (paradigma do EDD) — não podem vir a corrigi-lo. Aqui me parece fundamental um olhar dworkiniano. Na verdade, o Direito presta legitimidade à política, compreendida como poder administrativo, sendo que a política lhe garante coercitividade. Concebendo a política como comunidade (Polity), o direito faz parte dela. Compreendida como exercício da política (politics), há uma coimplicação entre eles na constituição do político. Como ponto de vista partidário, o Direito tem o papel de limitar a política em prol dos direitos das minorias, definindo o limite das decisões contramajoritárias. O Direito é essencialmente político se o considerarmos como um empreendimento público. Daí politica ou politico, no sentido daquilo que é da polis, é sinônimo de público, de res publica.

Na mesma linha, acrescento, ainda com Dworkin, a necessidade de uma justificação moral mais abrangente para a teoria jurídica não pode significar que o Direito seja tomado por moralismos pessoalistas. No fundo, cumprir o Direito em sua integridade evidencia a melhor forma de condução da comunidade política. Essa melhor forma não representa uma exclusão da moral, mas, antes, incorpora-a. O Direito não ignora a moral, pois o conteúdo de seus princípios depende dessa informação. Todavia, quando o Direito é aplicado, não podemos olvidar dos princípios, tampouco aceitar que eles sejam qualquer moral. Sendo mais explícito: o Direito limita os moralismos aos limites dos direitos individuais. Sobretudo se por moralismo se quer dizer uma determinada concepção do bem ou do bom que é sempre particular. Daí não se poder impor uma concepção única do bem e do bom, numa sociedade pluralista. Fazer isso seria a partir da modernidade algo imoral, se se parte de uma concepção moral fundada no reconhecimento universal da dignidade humana. Aqui também devemos pensar em Habermas.

Este é o custo que temos de pagar para ter um Direito como o de hoje. Que não é igual ao de antanho. Detalhe: novamente com Dworkin é importante anotar que, com isso, não estou a negar a justificação política, de caráter geral, que a teoria jurídica pressupõe. Essa é uma questão de legitimidade do uso da força por parte de um governo. Todavia, as questões políticas em sentido estrito — que se expressam a partir de raciocínios teleológicos, de metas sociais etc. — não podem — e não devem — fazer parte do discurso judicial. No momento de concretização do direito, as questões de princípio se sobrepõem às questões de política. Assim, o Direito também deve “segurar” (conter) a moral (e os moralismos). Isso, v.g., pode ser visto de forma mais acentuada nas cláusulas pétreas e no papel da jurisdição constitucional.

Princípios como virtudes soberanas? Ou queremos construir uma República de vigaristas? Ou, “em nome da lei”, tudo vale (ou vale-tudo)?
Na verdade, para uma análise do “conceito” de princípio, é fundamental que se adentre no mundo prático (facticidade-existencialidade) que forjou o paradigma do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, é necessário examinar as virtudes soberanas que (sub)jazem ao texto constitucional e à densa principiologia passível de ser extraída desse elo conteudístico com função de ligar política, moral e Direito. Leiamos, por exemplo, o seguinte dispositivo da Constituição: O Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, garantir a justa distribuição de riqueza, diminuir as desigualdades sociais e regionais, promover os “valores” éticos por intermédio dos meios de comunicação (concessão pública), evitar discriminações, etc. Isto não vale nada? Se não vale, por que não o sacamos da Carta? Ah, ele vale? Então, façamos valê-lo. E já!

Com isso, quero deixar assentado que cada texto jurídico-normativo (regra/preceito) não pode se colocar na contramão desse desiderato, digamos assim, virtuoso (convenhamos, bastante virtuoso), propagado pelo texto da Constituição. Nem estou falando, ainda, do famoso princípio da moralidade (e seus congêneres).

Dizendo isso de maneira mais simples: é fácil concluir que não queremos uma República em que a vigarice seja a regra e que achemos absolutamente normal (e por que não, legal — sic) o aproveitamento das benesses originárias do espaço público, dando razão, assim, àquilo que Raymundo Faoro denunciava de há muito: uma sociedade sustentada nos estamentos e nos privilégios daí decorrentes. OBS. 2. Uma pequena digressão: uma coisa pode ser “legal” quando é “legal” para o cara que faz; essa palavra é, assim, usada quando um sujeito diz para o outro: você é um “cara legal”; isso que você fez é muito “legal”; vejam quando alguém pergunta, erguendo o polegar: está tudo “legal” com você?

Ou seja, nem tudo que é “legal” é legal (e, tampouco, constitucional). Vejamos alguns episódios, que se enquadram nesse elevado padrão de autonomia que o Direito alcançou. Há algum tempo — lembram-se disso? — parlamentares (deputados e senadores) utilizaram suas cotas de passagens aéreas para levar familiares e amigos, a maioria em caras passagens em classe executiva (ou primeira classe), a passeios nos Estados Unidos e na Europa.

Quais foram os argumentos de todos os utentes desses privilégios? — “Fizemos tudo de acordo com a legislação (leis, decretos, portarias, etc.)”. Esgrimiram o “novo regramento”, feito depois dos escândalos de março/2009, que “legalizou” (sic) as viagens de parentes dos parlamentares com dinheiro público. Para ser fiel ao texto de então: a nova regra invocada dizia que “o benefício pode ser utilizado pelo próprio parlamentar, a mulher ou marido, seus dependentes legais e assessores em situações relacionadas à atividade parlamentar”.

Incrível (de não acreditável): as próprias glosas feitas pelo TCU apenas apontaram para os utentes que usufruíram das benesses “fora das autorizações legais” (sic). Uau: quer dizer que, para ser legal, basta fazer uma “leizinha” ou um “regulamentozinho” qualquer? É assim? Isso ocorre em diversos setores governamentais, como, por exemplo, o caso de uma empresa estatal que concedeu auxílio a uma ONG para “organizar festas juninas” em 26 municípios da Bahia no valor de R$ 1,4 milhão, sendo que o dirigente da aludida organização não governamental longe está de ser alguém “não governamental” (sic). Dizem que o que ele fez foi “legal”. Muito legal… (já vejo o polegar da mão direta em posição…).

Ou as generosas doações feitas por empresas do estado para desfiles de carnaval, ao mesmo tempo em que pessoas afetadas pela dengue são submetidas às mais vis humilhações, como, por exemplo, tomar soro em pé, porque não há sequer uma maca para o utente do SUS (a banalização dos privilégios estamentais vai do pagamento de passagens aéreas aos familiares dos parlamentares até aos amigos dos edis — parentes, sogras, namoradas, periguetes, artistas, etc. —, passando por aluguel de jatos com as sobras mensais das passagens não utilizadas, sem considerar o pagamento de horas extras efetivamente não trabalhadas; até empregadas domésticas são pagas, “dentro das regras estatutárias”). Que “legal”, não? Argumento de todos: tudo foi feito de acordo com a “lei”. Ou, outro “grande argumento”: a conduta feriu a ética, a moral, mas não contrariou o Direito…! Argh! (atenção, de novo: não estou falando em tipicidade penal; estou falando daquilo que a CF estabelece no plano da “moralidade administrativa”).

A questão é saber se as virtudes soberanas previstas na Constituição “suportam” essa “legalidade” (mundo de regras que, se não permitem os ab-usos, também não os proíbe…, mandando às favas, com isso, os princípios que regem o Direito Administrativo!). Mais ainda, quero saber como a dogmática jurídica — majoritária no campo administrativo-constitucional — lidará com essas dicotomias (contraposições) “regras-princípios”… Já sei a resposta. A pergunta é retórica.

Na verdade, ao mesmo tempo em que se escrevem centenas de livros sobre o “papel dos princípios” sustentando que “princípios são normas”, na prática, na cotidianidade, princípios são transformados em álibis teóricos/retóricos ou mandados de otimização… A maior parte dos juristas ainda faz a distinção estrutural (na verdade, semântico-estrutural) “regra-princípio”. O resultado: caímos no pan-principiologismo, problemática sobre a qual me debruço de há muito.

De todo modo, parece que o ponto de estofo do problema reside na seguinte questão: em nome de um conjunto de regras, praticam-se as maiores ilegalidades há décadas, sem que esse “mundo de suficiências ônticas” — representado por um cipoal de regulamentos, portarias, subportarias e pareceres interpretativos (sic) — tenha sido colonizado/invadido pelo mundo prático dos princípios. Se já ocorreu um “princípio turn” no campo do Direito Administrativo, este ainda precisa ser aprimorado. A permanência de regras (p.ex., as que autorizam gastos com passagens, etc.) dessa má estirpe faz com que se pense que, de fato, não há qualquer força normativa nos princípios…! Princípios no atacado encantam. Já no varejo, desencantam. Decepcionam. E como decepcionam. O enunciado “O Brasil é uma República” ficou vazio de conteúdo. Anêmico. Afinal, o que é uma República?

As mixagens teóricas angus de caroço. Vejamos no que deu isso…
Embora tudo isso, ainda não consegui(mos) convencer a comunidade jurídica. Formou-se, com o decorrer dos anos, um caleidoscópio jurídico, no interior do qual as diversas mixagens teóricas passaram a ditar o tom das várias formas de analisar o direito. Há autores que iniciam a análise invocando Habermas e terminam com Alexy… Uma pitadinha de cada autor acaba dando um angu (de caroço). Indigesto! Falta muito ainda para que consigamos construir teorias que apontem para a efetiva preservação/consagração do grau de autonomia do direito alcançado a partir do segundo pós-guerra.

Quero afirmar que a concepção que temos acerca dos princípios tem direta relação com o que pensamos sobre a autonomia do Direito. O Direito está a reboque da moral? A política determina o Direito? A economia determina o que o Direito deve ser (como querem, por exemplo, os adeptos da Análise Econômica do Direito)?

Minha tese: quem sabe, possamos afirmar que, depois desse novo paradigma do Estado Democrático de Direito (EDD), a democracia deve ser feita no e partir do Direito. Bingo. Ferrajoli foi um dos primeiros a perceber. E que a política não comanda o Direito. Nem a moral (neste ponto, remeto os leitores para a entrevista que dei para a ConJur recentemente, sobre o caso Demóstenes (Direito não pode ser corrigido por valores morais).

Os princípios são deontológicos. Logo, funcionam a partir do código lícito-ilícito. Não são valores, repito. Com isso, podemos responder a pergunta “para que serve o Direito?”. O Direito lida com condutas. E lida com condutas possíveis, como já dizia Kelsen, com a possibilidade permanente do seu descumprimento, ou seja, o ilícito faz parte do Direito, é uma construção jurídica, é o pressuposto da sanção. Assim, se o Direito não reprime/sanciona (porque as inquina de ilícitas) esse tipo de condutas, é porque ele fracassou. Aí, de fato, não serve para nada. O jurista não pode ficar com os pés no século XIX, em que se fazia a separação entre Direito e a moral.

Antes de se dizer que uma conduta fere apenas (?) a “moral” ou a “ética” (como definir isso?), não seria melhor olhar com mais acuidade/profundidade o que diz o conjunto de regras e princípios do sistema jurídico? Não seria melhor fazer uma interpretação constitucional do regramento?

Vamos deixar isso bem claro: se uma regra estabelece que um deputado pode utilizar verbas públicas para viajar com a sua família, essa regra é, antes de tudo, absolutamente inconstitucional. Se o princípio da moralidade não serve para dar suporte de validade a esse regramento, joguemo-lo fora. Livremo-nos dele, pois. E o princípio republicano? Pode existir uma República no interior da qual os agentes públicos possuem privilégios privados que, em nenhuma dimensão, podem ser tidos como garantias funcionais? Se a resposta for pela negativa da normatividade de tais princípios, é melhor, então, pararmos de fazer dissertações e teses dizendo que princípios são normas…!

Ainda não estou satisfeito. Como sou detalhista, vou tentar dizer isso de outro modo. Vamos lá. Quando se diz “isso não é republicano”, o que se está dizendo é que a conduta é reprovável. Fere o princípio republicano. Também fere a igualdade, porque provavelmente tal conduta representa um privilégio (por exemplo, utilizar avião que outras pessoas — a patuleia — não têm acesso). Logo, deve haver uma regra que proíba tal conduta. Ou, se existir uma regra permitindo a conduta, essa regra será inconstitucional, porque estará ferindo os princípios da moralidade, da igualdade e da República. No caso de condutas “autorizadas” ou realizadas no “vácuo” da não proibição, a pergunta que o jurista atento deve fazer é: qual é a regra que permite a conduta? Segundo, existe uma regra que proíbe a conduta? Por fim, examinará o conjunto normativo à luz dos princípios. E, bingo! Em minutos, o resultado exsurgirá…! Com certeza, não será necessário invocar a “ponderação de valores”. Nem a razoabilidade… (que, nestes casos, será utilizada para justificar a conduta…!). Podem acreditar.

Palavra final: Direito não é moral e não é política. Se princípios são normas, então devem funcionar no código “lícito-ilícito”
Por tudo isso, quero insistir: se o Direito não serve para resolver esses problemas, pode ser extinto (isso é uma ironia ou um sarcasmo — em terrae brasilis, como disse o finado Millôr, a ironia tem de ser explicada). E, em seu lugar, instalemos uma “ordem moral” (idem, idem ao que está acima entre parênteses — é, pois, um sarcasmo!). Ou uma ordem fundada na ética (ibidem — agora é um hipersarcasmo!). Consequentemente, essa “nova ordem” não necessitará do Direito (que, ao que tudo está a indicar, já não serve para nada). Talvez, assim, em face das constantes transgressões da moral e da ética, venhamos a corrigir as condutas aéticas e imorais através do…. Direito. Vejam só. Por incrível que parece, teríamos que chamar o Direito de volta…! E, pronto. Com o fracasso de uma ordem moral ou ética, paradoxalmente poderíamos recuperar a autonomia do Direito. Trágico. E simples, pois!

Dia destes — e, com isto, tento finalizar — alguém me disse em um Tribunal da federação: lá vem ele de novo brandindo a Constituição…! É verdade. Tudo ia tão bem no Brasil até que apareceu a Constituição… Se eu fosse engenheiro, estaria todo o tempo estudando cálculo, vetores, etc. Se fosse médico, estaria estudando o corpo humano, o funcionamento do coração, novas tecnologias, etc. Como, por azar, optei por seguir o conselho de meu pai, fui ser jurista… O custo disso? A chatice de, a todo tempo, ficar discutindo esse mecanismo poderoso que, desde o final da segunda guerra, tem sido tão importante para garantir as grandes democracias do mundo: a Constituição.

Pois é graças à Constituição que o Direito não deve servir (mais) apenas para justificar condutas imorais. Graças a ela, os juristas não mais precisam dizer frases infames e apedêuticas como “o que a autoridade tal fez foi muito “feio”, muito feio mesmo…, mas não feriu o Direito…! A partir da Constituição, posso dizer: a "feiura" de sua conduta, em alguma medida, já diz respeito aos princípios…!

E que não precisemos mais dizer apenas que “a atitude de ministro, do secretário ou do governador, ao utilizar um avião de empresa que tem negócios com o Estado, não foi “legal”, mas foi legal (entendam a ironia do “legal” entre comillas). Que possamos dizer, sobranceiramente: essa atitude é ilegal e, por conseguinte, inconstitucional! Ora, viva! Cada coisa no seu lugar, como diria Voltaire, falando do personagem Pangloss (e compreendamos as suas desventuras): “reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas…”. E eu complemento: e a Constituição foi feita para ser cumprida! Ainda que, como diria o otimista Pangloss, “da melhor forma possível”…!


[1] Não incluo nessa discussão as condutas criminosas stricto sensu. Vícios e comportamentos não devem ser punidos através do direito penal, em face da secularização. Assim, tenho defendido – com base na secularização do direito, desde o dia 5 de outubro de 1988, a não recepção da lei das contravenções penais. Portanto, é de outra coisa que aqui estou tratando.

[2] Antes que alguém me faça uma crítica invocando a Constituição americana, explico: o direito à felicidade está enunciado na Declaração de Independência de 4 de julho de 1776. Entretanto, essa noção norte-americana de felicidade é “felicidade publica”, que nada tem que ver com uma concepção individualista na origem. De todo modo, ainda que se o conceba em termos individuais, não seria um direito à felicidade, mas o direito de liberdade, pois faz parte da liberdade o direito de dispor de meios para a busca da realização do próprio bem, desde que respeitada a mesma liberdade aos outros. Todavia, quando a questão se coloca do ponto de vista do reconhecimento mutuo como pressuposto da liberdade intersubjetivamente considerada (a minha liberdade depende da dos outros e vice-versa), ela ultrapassa o direito naquilo que a justiça social ou política a ele, Direito, é hiperbólica, ou seja, a ele não se reduz.

[3] Embora isso irrite uma pequena parcela de leitores, as citações são necessárias, pela simples razão de que a Coluna não tem pretensão de exaurir um tema. Busco, apenas, instigar o leitor.

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