Proposta Inconstitucional

Sistema de ‘juiz sem rosto’ é sentença sem assinatura

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5 de julho de 2012, 7h00

Questão preocupante, cuja temática volta e meia passa a ser ventilada no Brasil, com certa ênfase até, é o movimento do “juiz sem rosto”, sistema abominável em que o juiz não aparece como autor da sentença criminal.

Recentemente, vale recordar, tramitou em nosso legislativo o Projeto de Lei do Senado nº 87/2003, de autoria do senador Hélio Costa, que buscava criar o instituto do “Juiz Anônimo”, pretendendo que as decisões judiciais nos processos contra membros de organizações criminosas, em face de verificação de circunstâncias que oferecessem risco à vida do juiz, pudessem ser proferidas no anonimato, sendo apenas autenticadas com o selo do tribunal competente.

Esclarecia o autor do projeto que a preservação do sigilo da identidade do magistrado não violaria o princípio da publicidade, pois o que estaria sendo resguardada seria a pessoa do julgador e não o ato por ele praticado. Os julgamentos seriam publicados na forma legal e ficariam sujeitos a todos os recursos disponíveis em nossa legislação. Essa proposta, em bom tempo rechaçada pelo Congresso, por sua flagrante inconstitucionalidade, foi apresentada em um momento muito difícil para a magistratura brasileira, face aos assassinatos dos juízes Antônio José Machado Dias, de São Paulo, e Alexandre Martins Castro Filho, do Espírito Santo, ocorridos naquele ano de 2003.

Hoje o tema volta a ocupar os jornais em razão do assassinato da Juíza Patrícia Acioli, em 11 de agosto de 2011, e em razão do recente pedido de afastamento do processo criminal proposto contra Carlinhos Cachoeira, formulado em 13 de junho próximo pelo juiz federal Paulo Augusto Moreira Lima, que se disse ameaçado por sua atuação naquele feito. O que causa maior perplexidade e grande preocupação é que, agora, a renovada sugestão, publicada em jornal de grande circulação no país, a bem dizer —“O Globo”, parte do Ministro Luiz Fux do Supremo Tribunal Federal (Corte Constitucional), que, inobstante ser portador de brilhante curriculum, parece olvidar-se dos inconvenientes constitucionais, incompatíveis com o Estado de Direito, que envolve a figura do “juiz sem rosto”.

Esse sistema (do “juiz anônimo” ou “sem rosto”), pelo que sabemos, é encontrado nas legislações da Colômbia (artigo 158 do Decreto nº 2.700/1991) e do Peru (artigo 13 do Decreto-Lei nº 25.475/1992). Na Colômbia, a lei determina que os juízes subscrevam os atos processuais, juntando-se, porém, cópias autenticadas em que não apareçam suas firmas, ficando os originais em lugar seguro. No Peru, determinou-se o julgamento secreto do crime de terrorismo em “Sala Especializada”, mediante designação rotativa de juízes, com proibição de alegações de suspeição do magistrado ou de auxiliares da Justiça. Apesar de apregoarem que a Itália tenha adotado esse sistema, há quem diga o contrário, afirmando que lá, embora cogitado, não chegou a ser implantado. Não temos certeza, mas o certo é que o professor Pino Arlachi, da Universidade de Sassari/Itália, asseverou, em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados em 25 de março de 2003, que “a justiça sem rosto não é uma justiça normal; não é válida para um país grande e confiante nas próprias possibilidades”.

O sistema do “juiz sem rosto” ofende o artigo 5º, XXXVII, da CRFB, que proíbe o juízo ou tribunal de exceção. De igual modo fere o princípio do juiz natural, que decorre diretamente do princípio do devido processo legal e da isonomia, no sentido de que, constituindo-se numa garantia, deve conduzir a um julgamento justo, equânime, imparcial, por um juiz constitucionalmente competente, em qualquer grau de jurisdição, conforme se dessume do artigo 5º, LIII, LIV e LV, da CRFB. É cediço também que a jurisdição é exercida quando o magistrado, consultando livremente sua consciência e declinando os fundamentos de sua convicção, apõe sua assinatura no papel escrito, rubricando todas as folhas e, em seguida, fazendo publicar sua decisão (artigo 388, do CPP). Frise-se ainda que no anonimato o juiz não conseguirá demonstrar sua imparcialidade, impedindo-se, assim, a arguição de suspeição, impedimento ou incompatibilidade (artigos 95, I, 112 e 564, I, todos do Código de Processo Penal), em evidente cerceamento de defesa. Ademais, esse sistema fere, ao contrário do que seus defensores alegam, o princípio da publicidade na medida em que todo e qualquer acusado, em um Estado de Direito, tem de saber quem o acusa e quem o julgará, condenando-o ou absolvendo-o, pois a publicidade dos atos processuais pode ser restringida, mas não excluída (artigo 5º, LX e artigo 93, IX, todos da CRFB).

Como se viu o sistema do “juiz sem rosto” é o sistema da sentença sem assinatura, ou seja, da não-sentença, da sentença inexistente, que não pode produzir efeitos. Se todo aquele que esteja investido em cargos como o de juiz, promotor, delegado, defensor ou outro qualquer que seja como operador do direito, se sentir intimidado a ponto de ter de se esconder atrás de recursos escusos, ocultando o próprio rosto e sua identidade, deve repensar o seu verdadeiro papel, pois que certamente não é vocacionado para a atividade que exerce.

Espera-se que não tenhamos chegado ao ponto a que chegaram certos países para adotar esse ato extravagante e sinistro, próprio de governos despóticos e tiranos, que é o afastamento da identificação do próprio julgador. Movimentos como esse invertem o estado de coisas. É o Estado covarde que se apequena e declara sua própria impotência diante do que se convencionou chamar poder paralelo.

Notas:

Fonte:1) http://www6.senado.gov.br/mate-pdf/67417.pdf

2) http://viaseg.com.br/noticia/1251-camara-discute-criminalidade

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