Cooperação Internacional

A reciprocidade como interação entre Estados

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

5 de julho de 2012, 12h22

Spacca
* Em outra oportunidade, tratamos acerca da aplicação da reciprocidade no âmbito da homologação de sentenças estrangeiras. Sob esse estrito aspecto, sustentamos que o instituto, embora tenha desaparecido do procedimento de homologação judicial, não deixou de ser instrumento de persuasão nas relações internacionais e que, portanto, a reciprocidade na homologação de sentença estrangeira permanece como alternativa para se exigir que a eficácia extraterritorial das sentenças não seja via de mão única.

Partimos do pressuposto de que a reciprocidade constitui um dos princípios basilares da ideia de cooperação entre os povos — já nos séculos XII e XIII havia tratados que a previam em seu texto.[1] Trata-se de instituto que possui natureza ao mesmo tempo política, jurídica e negocial, suficiente para levar um Estado a atender ou não ao requerimento de outro ente internacional. A existência de relações diplomáticas entre essas entidades, portanto, impõe-se como condição lógica à consolidação da reciprocidade.

Além do campo da homologação de sentenças estrangeiras, esse princípio tem especial destaque nos pedidos de extradição oriundos de países com os quais o Brasil não mantém tratado para esses fins. Nos termos do artigo 86 da Lei 6.815/80, a “extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado, ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade”.

Pacífica na jurisprudência do STF,[2] a concessão de extradição por promessa de reciprocidade consiste em ato de soberania do Estado que a concede e não mero ato jurisdicional.[3] Dessa maneira, em que pesem os requisitos formais a serem avaliados pelo Supremo Tribunal Federal,

“Só o Poder Executivo, a quem compete a orientação dos negócios internacionais, é o árbitro do encaminhamento da solicitação de outro Estado à Justiça, levando em conta as relações entre ambas as nações e fixando a atitude que o país adotará em relação ao Estado requerente.”[4]

Naturalmente, a promessa de reciprocidade somente pode ser formulada por quem possua a capacidade de vincular internacionalmente o Estado estrangeiro, ou seja, o representante do Estado estrangeiro que fala ao exterior. Opondo-se à concessão de extradição em razão do pedido ter sido formulado pelo Procurador-Geral do Estado português, o ministro Francisco Rezek indicou precisamente as autoridades autorizadas a fazê-lo:
“Como disse o Advogado dativo, o Procurador-Geral do Estado português não fala ao exterior. Ele representa o Estado internamente, perante a Justiça de Portugal. Existe um relacionamento diplomático normal entre esta República e aquela. Ainda que não existisse, e que se devesse partir para a fórmula variante a que alude a lei, o pedido “de Governo a Governo”, ainda assim, a voz do Governo Português não seria a do Procurador-Geral do Estado. Seria, para todos os fins, a do Chefe de Estado, a do Chefe do Governo, a do Ministro de Estado das Relações Exteriores; e, para comunicação com esta República, também a do Embaixador permanente acreditado junto a nós. Nenhuma outra autoridade, nem mesmo o Ministro da Defesa ou o Presidente da Corte Suprema, falaria pelo Estado Português em caso de ausência de relacionamento diplomático.”[5]

A definição precisa daquele que fala pelo Estado estrangeiro é ainda mais relevante quando consideramos a existência de países cuja situação política torna questionável a detenção do poder de império pelo governo requerente da extradição.

Constatando-se a inexistência da perda, evidente e notória, do poder de império, a comunicação do compromisso de reciprocidade se dá por meio de Nota Verbal formalmente transmitida via diplomática, sendo o trâmite pelo Ministério da Justiça elemento central para se aferir a concordância ou não do Poder Executivo quanto à promessa de reciprocidade:
“Assim dizendo, e determinando no seu art. 81 que o pedido não pode ser dirigido diretamente ao Poder Judiciário, mas ao Ministério das Relações Exteriores, o qual o remeterá ao Ministério da Justiça, que por sua vez o encaminhará ao Poder Judiciário, determina um trâmite que faz entrever a possibilidade de controle a ser exercido pelo Poder Executivo, inclusive quanto à promessa de reciprocidade, no sentido de aceitar ou não esta promessa e o pedido de extradição, restando ao Poder Judiciário, apenas, o pronunciamento ‘sobre a legalidade e a procedência do pedido’ (…). Parece evidente que o pedido encaminhado pelo Ministro da Justiça contém em si a presunção de que a promessa de reciprocidade foi aceita pelo Poder Executivo”.[6]

Em que pese não caber ao Poder Judiciário a aceitação da promessa de reciprocidade, o controle sobre a legalidade ainda lhe impõe o dever de verificar se a promessa poderá ser cumprida em face da legislação alienígena. É o que se observa do julgamento da questão de ordem na prisão preventiva para Extradição 623, em que se determinou a realização de diligência pelo Estado Libanês para a instrução do pedido com nota verbal, esclarecendo a autoridade libanesa que formularia essa promessa de reciprocidade, bem como para que esclarecesse acerca da real possibilidade de cumprimento da promessa de reciprocidade, uma vez que, diante o texto do Código Penal libanês vigente à época, “Ninguém pode ser entregue a um Estado estrangeiro fora das prescrições do presente código, a não ser que seja em aplicação de um tratado tendo força de lei”.[7]

Portanto, a reciprocidade mantém-se como alternativa factível para interação entre Estados e assegura ao ente internacional o direito de resguardar-se a atender pedidos de extradição somente quando receba tratamento idêntico do Estado requerente.

* Colaborou Guilherme Werneck Ramos, advogado do Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados.


[1] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 100.

[2] Nesse sentido, enumeramos os seguintes julgados: Ext 1206, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 28/06/2011; Ext 1187, Relator:  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 16/12/2010; Ext 1203, Relator:  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/2010; Ext 1148, Relator:  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2009; Ext 1126, Relator:  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 22/10/2009; Ext 1128, Relator:  Min. MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/2009.

[3] MACIEL, Anor Butler. A extradição. In: Revista Forense, Rio de Janeiro, Volume 152, Ano 51, pp. 52-56, mar-abril de 1954.

[4] Id.

[5] Ext. 411, Relator: Min. DÉCIO MIRANDA, Tribunal Pleno, julgado em 15/02/1984, DJ 30-03-1984.

[6] Ext 646, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/1995.

[7]PPE 623 QO, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/2010.

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    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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