Direito Comparado

O quadro de US$ 135 milhões e a sua história judicial

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

4 de julho de 2012, 12h33

A pintura, que tem 138 x 138cm, óleo (e ouro) sobre tela, retrata Adele Bloch-Bauer, esposa do industrial austro-húngaro Ferdinand-Bloch-Bauer. O leitor poderá vê-la neste link. Adele Bloch-Bauer está ornada de ouro, com seu busto, seu rosto e suas mãos em contraste com o fundo dourado. O quadro fascina, hipnotiza, envolve. Convida para uma experiência para além da meramente visual. Ela tem as faces brancas, levemente coradas, seus olhos escuros fitam o espectador, travando um combate desigual com o restante da tela pela atenção de quem a observa. Em 2006, esse quadro, que é oficialmente conhecido como Retrato de Adele Bloch-Bauer I, foi vendido por 135 milhões de dólares norte-americanos, o que a situa como a segunda mais cara obra de arte da História recente.[1]

A análise dessa pintura dá ensejo a diversas questões jurídicas, como, por exemplo, o debate (nunca exaurido) sobre o valor das trocas, a ideia do preço justo (que vem de Santo Tomás de Aquino) e do equilíbrio entre as prestações. Isso diz respeito ao problema central da civilização de consumo: até quando o preço é definido pelo custo de produção e até quando eu estou pagando por um conceito associado a um bem. No caso das obras de arte, esse problema não é tão sério. A polêmica de sabinianos e proculeanos já cuidava disso: se um pintor usa a tela de outrem para confeccionar uma obra de arte, quem será o dono do quadro? O proprietário da tela ou o artista? No Direito moderno, prevaleceu a tese de que o dono da coisa será o especificador, no caso, o artista, indenizando-se o proprietário da espécie (a tela) por seu valor original. Daí a redação do artigo 1269 do Código Civil: “Aquele que, trabalhando em matéria-prima em parte alheia, obtiver espécie nova, desta será proprietário, se não se puder restituir à forma anterior”. Mas, em relação a objetos industriais, o problema é cada vez mais intenso. A esse propósito, em minha tese de doutoramento sobre a cláusula penal (ainda não publicada, por excesso de autocrítica do autor), eu usei o exemplo da calça de brim (a famosa calça “jeans”), usada inicialmente pelos operários californianos das minas do século XIX e que se converteu na roupa por excelência do homem contemporâneo. Esse tecido, que é quase um refugo da indústria têxtil, tem seu custo de produção baixíssimo, porém, as pessoas pagam fortunas pelo simples direito de ostentar um retângulo de couro, com uma marca, nessa peça do vestuário. O que se compra afinal? A calça (de valor ínfimo para o fabricante) ou o conceito? Independentemente da resposta, felizes são os capitalistas, que enriquecem graças à contracultura e aos valores originalmente libertários, mas que alimentam toda uma indústria de consumo.

O Retrato de Adele Bloch-Bauer I permite que se coloque no plano central o valor das trocas, o custo de produção, o custo de transação e o preço dos objetos. Há um detalhe em relação a essa obra que talvez explique um pouco sua singularidade: ela foi objeto de uma das mais intensas batalhas judiciais do século XX.

O autor da obra, que aparece só neste quinto parágrafo, seria merecedor de uma coluna a parte. Trata-se do austro-húngaro Gustav Klimt (1862-1918), falecido no mesmo ano em que se liquidava o velho Império dos Habsburgos. Ele próprio é representante dessa época de decadência político-militar da Áustria, mas riquíssima em termos culturais e científicos, como Hans Kelsen, Sigmund Freud, Robert von Musil, Ludwig Wittgenstein e tantos outros. Com todas as convulsões políticas pós-Império e, posteriormente, com a ascensão do Nacional-Socialismo na Alemanha e na Áustria, essa pintura (e outras de Klimt) teve uma curiosa sucessão de titulares.

Ferdinand e Adele Bloch-Bauer eram judeus riquíssimos, que nunca tiveram filhos. Adele morreu em 1925. Em seu testamento, ela dispõe que, após a morte de seu marido, dois quadros de Klimt (um deles o Retrato de Adele Bloch-Bauer I) fossem legados para a Galeria Austríaca Belvedere (Österreichische Galerie Belvedere), um museu localizado no antigo Palácio Belvedere, em Viena. O testamento foi discutido em juízo, pois um parente contestou a disposição de última vontade, alegando ser um mero capricho da falecida. Ferdinand, que ainda era vivo, manifestou-se pela execução do legado e reafirmou o caráter mandatório da deixa de sua esposa.

Com a Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, o país sofreu um processo de nazificação. Ferdinand Bloch-Bauer fugiu e terminou seus dias na Suíça, escapando à perseguição do novo regime. Mas, seus bens foram confiscados, alguns indo para o acervo pessoal de Adolf Hitler. As obras de Klimt não interessaram muito aos nazistas: eram manifestações de uma arte decadente… Os quadros de Klimt terminaram distribuídos por alguns museus vienenses. Por uma coincidência, o Retrato de Adele Bloch-Bauer I, após negociações e permutas, foi parar na Galeria Austríaca Belvedere.

A dizimação dos judeus atingiu quase toda a preeminente família judaica Bloch-Bauer. Maria Bloch-Bauer, filha do cunhado de Adele, sobreviveu e casou-se em 1937 com o magnata Fritz Altmann. Agora conhecida como Maria Altmann, ela fugiu da Europa e terminou nos Estados Unidos.

Após a Segunda Guerra Mundial, houve um intenso movimento nos países ocupados pela recuperação das obras de arte saqueadas. Maria Altmann constituiu advogado e ingressou em juízo para recuperar o acervo da família. A República da Áustria contestou a ação sob a alegativa de que a permanência do Adele Bloch-Bauer I no Belvedere dava-se por mero cumprimento de deixa testamentária e não por causa da ocupação nazista. O caso terminou de maneira ambígua: o advogado de Maria Altmann negociou a permanência de Retrato de Adele Bloch-Bauer I em Viena e, em troca, recebeu outras obras de arte que haviam pertencido aos Bloch-Bauer.

Aparentemente encerrado o episódio, deu-se uma impressionante reviravolta em 1998, quando o Parlamento da República da Áustria aprovou uma nova legislação para restituir obras de arte expropriadas ou mesmo negociadas após a guerra com famílias que tiveram seus bens saqueados. A questão foi reaberta na esfera administrativa na Áustria, mas a comissão encarregada para analisar esses pedidos, em 1999, opinou contrariamente à devolução do quadro a Maria Altmann, sob o mesmo fundamento: a disposição de última vontade de Adele Bloch-Bauer era válida e eficaz.

Maria Altmann propôs uma ação nos Estados Unidos contra a República da Áustria. Em primeiro e segundo graus, Maria Altmann foi vitoriosa, a despeito das alegações de imunidade do governo austríaco. Em 2004, a Suprema Corte julgou finalmente o já notório processo Republic f Austria et alii v. Altman, manteve as decisões inferiores.[2] Posteriormente, ainda houve uma negociação arbitral e o quadro foi restituído a Maria Altmann em 2006, quando ela ostentava quase 90 anos. O detalhe que permitiu essa vitória foi que a entrega da tela ao museu vienense não se deu em razão do testamento, mas por uma violência do Estado totalitário.

Maria Altmann faleceu em 7 de fevereiro de 2011. Não somente em razão da espetacular venda dos quadros de Klimt, pertencentes a sua família, ela morreu milionária. A origem viciosa da posse do Retrato de Adele Bloch-Bauer I privou um público imenso de pessoas do prazer de contemplar a tela em um museu público. O resultado dessa disputa não deixa de ser intrigante. O julgamento terá sido realmente justo? Ou esse julgamento não está a afirmar que o direito de um único indivíduo se sobrepõe à ação criminosa, ainda que com efeitos sociais de maior impacto, do Estado? Essa é outra reflexão possível.

No Brasil, até por nunca se ter vivido o drama de uma guerra de ocupação, desde a independência política em 1822, esse parece não ser um problema típico. A jurisprudência do STF muito recentemente examinou um caso de receptação de obra de arte, considerando que não havia irrelevância da conduta, não obstante o valor de R$ 400 pagos pelo réu na ação.[3] O furto de arte sacra e de peças de museus é o problema mais sério enfrentado no país, mas isso não tem-se refletido na jurisprudência e sim na percepção da baixa eficácia dos mecanismos de proteção a esses objetos e da ação policial em sua recuperação.

Talvez nosso problema seja realmente outro. Como disse Marcílio Toscano Franca Filho, um dos maiores especialistas contemporâneos em Direito da Arte no Brasil (e não apenas), “no Brasil contemporâneo, mais do que uma opção ou um gosto de um governo ou um governante, é um dever fundamental do Estado não apenas garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, mas também apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais em geral — tudo conforme os termos artigo 215 da Carta Magna de 1988. A arte é no Brasil, segundo a Constituição Federal, uma necessidade pública e como tal também deve ser amparada mediante adequadas políticas governamentais”.[4]


[3] STF. HC 104490, Relator Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 15/02/2011, DJe-116 DIVULG 16-06-2011.

[4] Capítulo intitulado “O Belo e a Burocracia: A Aquisição de Obras de Arte pela Administração Pública”, que será publicado no livro “Direito da Arte”, coordenado por Gladston Mamede, Otavio Luiz Rodrigues Junior e Marcílio Toscano Franca Filho, editado pela Atlas, de São Paulo.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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