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Princípio da identidade física do juiz não é absoluto

Autor

  • Rogério Montai de Lima

    é juiz no Tribunal de Justiça de Rondônia professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça de Rondônia e de programas de graduação e pós-graduação. Doutorando em Direito Público pela Unesa-RJ.

3 de julho de 2012, 14h09

Por imposição legal e sob a rubrica da regra para fixação da competência funcional, fundada no propósito de conferir maior qualidade e presteza aos julgamentos, reza a legislação processual que o juiz que encerrar a instrução do processo civil (ou simplesmente “presidir” o processo penal), mantendo contato com as testemunhas, a ele deve ficar vinculado, devendo proferir a sentença.

Não há dúvidas de que a finalidade da norma é a de preservar as impressões e observações psicológicas e de experiência do magistrado já que o contato direto na produção da prova oral (testemunhal, depoimentos pessoais, interrogatório) aprimoraria o julgamento.

O aludido princípio foi previsto no Código de Processo Civil no artigo 132, redação dada pela Lei nº 8.637, de 31/03/1993. Pois veja-se:
Artigo 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

Antes da Lei 8.637/93, que alterou o artigo 132 do CPC, a regra tinha previsão diversa e era muito mais complicada. Assim dispunha o artigo alterado: Artigo 132. O juiz, titular ou substituto, que iniciar a audiência, concluirá a instrução, julgando a lide, salvo se for transferido, promovido ou aposentado; casos em que passará os autos ao seu sucessor. Ao recebê-los, o sucessor prosseguirá na audiência, mandando repetir, se entender necessário, as provas já produzidas.

A preocupação com as exceções a esta norma eram tantas que o extinto Tribunal Federal de Recursos editou a Súmula 262, em 25/10/1988:
JUIZ QUE NÃO COLHEU PROVA EM AUDIÊNCIA – NÃO VINCULAÇÃO AO PROCESSO. Não se vincula ao processo o Juiz que não colheu prova em audiência.(DJU 25/10/1988)

Deste modo, a preocupação do legislador já estava em vincular ao julgamento do processo o juiz que teve o contato com as provas orais produzidas no bojo dos autos, estando referido regramento inserido no CPC, no Capítulo IV – Do Juiz, na Seção I, que trata dos poderes, dos deveres e da responsabilidade do juiz.

Assim, muito embora o artigo 132 não faça menção sobre qual audiência se refira, presume-se, pela finalidade na norma, que se trata ou das audiências unas (a exemplos das de rito sumário ou do juizado especial) ou das de instrução, em qualquer procedimento.

O projeto de lei que cria o Novo Código de Processo Civil, que recebeu o número 166/10 no Senado e número 8046/10 em trâmite pela Câmara dos Deputados, retira da legislação processual referido princípio, muito embora o projeto original encaminhado ao Congresso Nacional ainda o com alterações mantivesse dizendo que “Artigo 112. O juiz que concluir a audiência de instrução e julgamento resolverá a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que tiver que proferir a sentença poderá mandar repetir as provas já produzidas, se entender necessário.”

No tocante à aplicabilidade do princípio da identidade física do juiz não se coaduna ao rito do Estatuto da Criança e do Adolescente mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecer a aplicação subsidiária das normas gerais previstas na lei processual eis que o próprio ECA determina o fracionamento do rito em várias audiências, sem que haja qualquer menção ao princípio da identidade física. Essa, inclusive é a posição do STJ, HC 165.698 – (2010/0046783-4) – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe 23.09.2011:
HABEAS CORPUS – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO DELITO DE HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ – INAPLICABILIDADE AO RITO DO ECA – NULIDADE DA SENTENÇA – NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO – CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO – ORDEM DENEGADA – I- No tocante à aplicabilidade do princípio da identidade física do juiz, este Colegiado decidiu que o artigo 399, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal não se coaduna ao rito do Estatuto da Criança e do Adolescente (Precedentes). II- Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleça a aplicação subsidiária das normas gerais previstas na lei processual aos procedimentos relativos a adolescentes, o próprio diploma legal determina o fracionamento do rito em várias audiências, sem que haja qualquer menção ao princípio da identidade física do magistrado. III- O reconhecimento do vício não prescinde da demonstração concreta do dano suportado pela parte, nos termos da remansosa jurisprudência deste Tribunal. IV- Ordem denegada, nos termos do voto do Relator. (STJ – HC 165.698 – (2010/0046783-4) – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe 23/09/2011 – p. 636)

No âmbito do processo penal, o princípio encontra amparo no parágrafo 2° do artigo 399, incluído pela Lei nº 11.719, de 2008. Diz o texto normativo:
Artigo 399.  Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. 

Parágrafo 1º  O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação.
Parágrafo 2º  O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença

O projeto de lei que cria o Novo Código de Processo Penal, 8.045/10 em trâmite pela Câmara dos Deputados, mantém referido princípio com acréscimos das exceções, tomando por base a legislação processual civil em vigor: Art. 268. O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por motivo independente da sua vontade, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o sucessor que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

Como visto, na legislação processual penal o princípio da identidade física é imposto ao juiz que preside a instrução. No processo civil, contudo, a vinculação incide sobre o juiz que conclui a aludida fase.

A imprecisão do legislador pode ter sido proposital, baseada no fato de que, em regra, as audiências no processo penal são unas e, portanto, o mesmo juiz que presidisse a audiência, já seria o mesmo que a concluiria, sentenciando imediatamente.

Todavia, na prática, não são poucos os casos em que a audiência não é finalizada com a sequencial sentença, pois, eventualmente, v.g., as testemunhas não são intimadas (por não serem localizadas ou por carecer o oficial de justiça de tempo hábil para diligenciar), são testemunhas do juízo e, portanto, necessárias a partir do acontecido no decorrer da instrução ou, por fim, pelo fato do magistrado deferir que as alegações sejam apresentadas por escrito (memoriais), conferindo prazo para isso, entre outros casos.

Nessa linha, a ideia da identidade física deve ser mantida da seguinte forma no processo penal: se juiz que presidiu a instrução conseguir finalizá-la no mesmo dia, ele é quem está vinculado, por força do parágrafo 2° do artigo 399 do CPP, mesmo que chame os autos à conclusão. De outro lado, se eventualmente a audiência de instrução no processo penal for partilhada por qualquer motivo, o último magistrado que presidiu a sequência da instrução (caso hajam pelo menos dois juízes funcionado no feito) deverá vincular-se ao processo, por aplicação subsidiária (artigo 3º do CPP) do regramento do CPC (artigo 132) que faz menção ao encerramento da instrução.

Assim, no final, tanto no processo civil quanto no processo penal, a norma da identidade física do juiz seria imposta àquele magistrado que concluísse a instrução.

É bem verdade que princípio da identidade física do juiz não é absoluto e foi ainda mais mitigado com a edição da Lei  8.637/93, que deu nova redação ao artigo 132 do CPC, e dispôs em seu caput que: "o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor", deve conviver harmonicamente com os princípios da concentração, celeridade e economia processual.

É importante destacar que na expressão "afastamento por qualquer motivo", engloba-se também as férias do julgador, já que seu gozo é uma das modalidades de afastamento. Por falar em férias, o STJ entendeu que, caso o magistrado que presidiu a instrução esteja gozando férias, não há vedação para que seu substituto sentencie. Nesse sentido:

CIVIL E PROCESSUAL – NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL – INOCORRÊNCIA – EMBARGOS DECLARATÓRIOS – NULIDADE – INOCORRÊNCIA – AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO PRESIDIDA POR JUIZ TITULAR – INGRESSO EM FÉRIAS – SENTENÇA PROFERIDA POR OUTRO MAGISTRADO, EM SUBSTITUIÇÃO – POSSIBILIDADE – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ NÃO CARACTERIZADA CPC, ART. 132 – DANOS ESTÉTICOS E MORAIS – MATÉRIA DE FATO – REEXAME – IMPOSSIBILIDADE – SÚMULA Nº 7-STJ – QUANTUM INDENIZATÓRIO – AUSÊNCIA DE ABUSO – I- Não há violação ao artigo 535 do CPC quando o acórdão recorrido dirime de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. II- Entre as exceções à aplicação do princípio da identidade física do juiz, previstas no artigo 132 do CPC, insere-se o afastamento por motivo de férias, período em que é possível ao substituto proferir sentença, ainda que colhida prova oral em audiência de instrução e julgamento pelo magistrado originário, que a presidiu. III- Implica em reexame fático, obstado pela Súmula nº 7 do STJ, a reapreciação da prova interpretada pelas instâncias ordinárias. (…). V- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, improvido. (STJ – d 995.316 – (2007/0237649-8) – 4ª T. – Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJe 01.12.2010 – p. 1740)

Assim, nas hipóteses de convocação, licença, afastamento, promoção ou aposentadoria, conceitos que não serão objetos deste texto, o juiz que encerrou a instrução não estará mais vinculado ao processo. Noutro giro, como visto, o rol de hipóteses elencadas no artigo 132 do CPC é meramente exemplificativo.

Um ponto que deve ser destacado sobre as exceções é que, mesmo não tendo o CPP excepcionado os casos em que não se aplica o princípio da identidade física, aplica-se subsidiariamente as mesmas hipóteses de incidência do processo civil (aliás, como já visto, o projeto de lei que cria o novo Código de Processo Penal, número 8045/10, já inclui referidas hipóteses).

Outra questão de destaque é se o princípio da identidade física do juiz se aplica ao juiz substituto. A resposta depende de ponderações. O próprio texto do artigo 132 diz que o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide. Assim, não há menor dúvida de que enquanto o juiz substituto estiver respondendo ou auxiliando pela unidade jurisdicional estará vinculado ao processo.

Ressalta-se apenas que, mesmo que o juiz substituto promova julgamento de processo que não instruiu, inexiste violação ao princípio da identidade física do juiz se a decisão proferida por ele, no exercício regular da jurisdição, baseou-se exclusivamente em prova documental. Assim, foi decidido pelo STJ no REsp nº 831.190 – MG (2006/0076994-1), Rel. Min. Castro Meira, DJDF. 27/06/2006.

Ademais, mostra-se inócua a anulação da sentença por eventual ofensa ao princípio da identidade física do juiz, quando a prova testemunhal requerida pela parte foi colhida fora do juízo, mediante carta precatória, posição também do STJ no REsp nº 617.934 – SP (2003/0205894-1), Rel. Min Luis Felipe Salomão, DJDF 18/05/2010.

Outro ponto de destaque é a competência para o julgamento dos embargos de declaração opostos contra a sentença condenatória. Firmou o STJ que referida competência é do órgão jurisdicional e não da identidade da pessoa do magistrado. Nesse sentido:
STJ – PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS. DECISÃO PROFERIDA POR MAGISTRADO SUBSTITUTO. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. INAPLICABILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA. 1. A competência para o julgamento dos embargos de declaração opostos contra a sentença condenatória é do órgão jurisdicional que proferiu a decisão embargada, não pressupondo, necessariamente, a identidade da pessoa física do magistrado. 2. Ordem denegada. (HC nº 46.408 – SP (2005/0126339-6), Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJDF. 01.10.2009)

Por outro lado não se pode imaginar que o juiz substituto que tivesse sua designação alterada e transferida para outra unidade jurisdicional permanecesse vinculado ao processo. A própria redação alterada do artigo 132 do CPC já excepcionava a regra se o juiz “for transferido”, expressão que pode ser aproveitada para esse fim.

Imagine a hipótese em que um juiz titular agende em suas férias (ou qualquer afastamento) inúmeras audiências de instrução, todas absolutamente complexas. Seria plausível impor ao substituto, que já nem se encontra mais na respectiva unidade jurisdicional, o dever funcional de julgar o feito? A resposta é negativa.

No mesmo sentido, seria factível, principalmente com o retorno do juiz titular, impor ao magistrado substituto o dever de privilegiar julgamentos de processos originários de unidade jurisdicional que não mais responde ou auxilia, em detrimento dos feitos da sua nova competência? Obviamente que não. Explico.

Primeiro que a designação do juiz substituto já estaria revogada para o juízo anterior e isso, portanto, influencia nas regras de competência. Ora, se a designação do juiz substituto foi revogada, ele não possui mais o direito (ou o dever) de julgar os processos da unidade jurisdicional que respondia ou auxiliava.

Segundo, que uma das exceções do artigo 132 se dá quando o magistrado estiver “afastado por qualquer motivo”. Esta expressão “qualquer motivo” compreende também a “nova designação” do juiz substituto.

Terceiro, que não há nulidade sem prejuízo. Assim, não havendo prejudicialidade, não há qualquer problema se o processo for julgado pelo juiz titular da respectiva unidade jurisdicional. Nessa linha, para que se configure a violação ao Princípio da Identidade Física do Juiz, a ensejar a nulidade da sentença, a parte deve veicular e demonstrar, de forma inequívoca, qual o prejuízo concreto que a prolação da sentença, por magistrado diverso daquele que instruiu o processo, ter-lhe-ia causado. Nesse sentido, decidiu o STJ:

PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO – REMOÇÃO DO JUIZ DA INSTRUÇÃO – SENTENÇA PROFERIDA POR OUTRO MAGISTRADO – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ (ARTIGO 132 DO CPC) – NULIDADE DA SENTENÇA – INOCORRÊNCIA – AUSÊNCIA DE PREJUÍZO NA PROLAÇÃO DO DECISÓRIO – 1- A remoção do Juiz da instrução para assumir, definitivamente, outra Vara, se enquadra entre as exceções admitidas pelo artigo 132 do CPC, de modo a possibilitar a prolação da sentença por outro magistrado. 2- Para que se configure a violação ao Princípio da Identidade Física do Juiz, a ensejar a nulidade da sentença, a parte recorrente deve veicular e demonstrar, em suas razões de recurso, de forma inequívoca, qual o prejuízo concreto que a prolação da sentença, por magistrado diverso daquele que instruiu o processo, ter-lhe-ia causado. 3- Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ – c-d 249.894 – (2000/0020921-0) – 3ª T – Rel. Min. Vasco Della Giustina – DJe 01/12/2009 – p. 664)

Exemplificando os problemas que decorreriam de uma aplicação absoluta deste princípio, imagine-se, ainda, um juiz substituto ter sido designado para presidir uma semana de audiências de instrução em uma determinada vara cível, sendo todas de alta complexidade e que torna impossível julgar os feitos na respectiva solenidade, inclusive pelo fato das partes terem requerido prazo para memoriais. Encerrada a semana de audiências, este mesmo juiz substituto é designado para uma vara do Júri. Qual a lógica e o sentido do juiz substituto receber todos os processos que presidiu e que a instrução foi encerrada? Nenhuma. E aqui, sem entrar no campo de eventuais e possíveis audiências consideradas “mais difíceis” serem agendadas propositalmente em períodos que o juiz titular não se encontra.

Dito isso, tenho por certo que, em alguns casos e se aplicada com rigor radical, a regra da identidade física do juiz, integrante do conjunto de idéias conhecido como processo oral, pode constituir entrave para a boa fluência dos serviços judiciários.

Mesmo com a vinculação apenas do juiz que conclui a instrução (a partir da reforma do CPC), há, em alguns casos que se mitigar a aplicação da regra, de forma a acabar com uma das situações que retardariam a prestação jurisdicional.

É preciso dizer que a finalidade específica do processo é a realização da solução da lide pela aplicação do Direito ao caso concreto.

Em sendo estruturado por princípios fundamentais que procuram garantir a sua eficiência e aptidão para a solução justa dos conflitos, a interpretação das normas processuais deve ser realizada de conformidade com diretrizes que procuram estabelecer a boa fluência processual.

Assim, o artigo 132 do CPC traz o postulado da identidade física do juiz, e muito embora, em sua segunda parte, estabeleça situações que permitem a sua inobservância, percebe-se que referido rol de exceções não é taxativo.

A consequência da inobservância do referido princípio varia segundo o caso concreto e a matéria discutida. No processo civil parece prevalecer a anulabilidade, devendo esta ser oportunamente argüida, demonstrado o prejuízo pela parte que a aproveita, sob pena de preclusão. Segundo o STJ, tal princípio não seria absoluto. Veja-se:

PROCESSUAL CIVIL – MULTA DO ART. 538 DO CPC – CARÁTER PROTELATÓRIO – PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – FLEXIBILIZAÇÃO – POSSIBILIDADE – 1- A multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do CPC deve ser mantida na hipótese em que tenha sido demonstrado, na instância ordinária, o caráter protelatório dos embargos de declaração. 2- No intuito de se conferir maior efetividade e agilidade à prestação jurisdicional, é possível a flexibilização do princípio da identidade física do juiz e do princípio do juiz natural. 3- Agravo regimental desprovido. (STJ – c-AI 1.159.240 – (2009/0016792-4) – 4ª T. – Rel. Min. João Otávio de Noronha – DJe 15/08/2011 – p. 858)

RESPONSABILIDADE CIVIL – Acidente de trânsito. Indenização. Danos morais e materiais. Princípio da identidade física do juiz. Nulidade da citação. Violação ao artigo 247 por suposta inobservância ao artigo 277, parágrafo 2º, do CPC. Inocorrência. Revelia configurada, nos termos no artigo 319 do CPC. Decisão extra e ultra petita. Desconfiguração. O afastamento do juiz que colheu a prova oral não impede que seja a sentença proferida pelo seu sucessor, o qual, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas, não se revestindo de caráter absoluto o princípio da identidade física do juiz. (…) (STJ – REsp 547.662 – AC – 3ª T. – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJU 01/02/2005)

No processo penal, em julgamento no STJ – HC 185.859 – (2010/0174860-5) – 6ª T. – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – DJe 19/10/2011 – p. 1016, foi entendido que prolatada sentença penal condenatória por juiz diverso do que presidiu toda a instrução e que não está configurada nenhuma das hipóteses previstas no artigo 132 do Código de Processo Civil, foi imposto a concessão da ordem para que seja anulada a sentença. Note-se:

HABEAS CORPUS – TRÁFICO DE DROGAS – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ – JUIZ SENTENCIANTE DIVERSO DO RESPONSÁVEL PELA CONDUÇÃO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL – AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DAS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 132 DO CPC – NULIDADE CONFIGURADA – LIBERDADE PROVISÓRIA – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA – CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO – 1- Com o advento da Lei nº 11.719/2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá sentenciar o feito, ou seja, o juiz que colher a prova fica vinculado ao julgamento da causa. 2- Esta Corte Superior de Justiça tem se orientado no sentido de que deve ser admitida a mitigação do princípio da identidade física do juiz nos casos de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento por qualquer motivo que impeça o juiz que presidiu a instrução de sentenciar o feito, por aplicação analógica da regra contida no artigo 132 do Código de Processo Civil. 3- Verificado que foi prolatada sentença penal condenatória por juiz diverso do que presidiu toda a instrução e que não está configurada nenhuma das hipóteses previstas no artigo 132 do Código de Processo Civil, impõe-se a concessão da ordem para que seja anulada a sentença, determinando que outra seja proferida, dessa vez pelo Juiz titular da Vara ou por seu sucessor, conforme o caso. 4- (…) 7- Ordem concedida para anular o Processo nº 130/10, da 7ª Vara Criminal de São Paulo, desde a sentença, determinando que outra seja proferida pelo Juiz que presidiu a audiência de instrução e julgamento, ressalvada a ocorrência das hipóteses do artigo 132 do Código de Processo Civil e com observância da vedação à reformatio in pejus indireta, bem como para conceder a liberdade provisória ao paciente, sem prejuízo da aplicação das medidas introduzidas pela Lei 12.403/2011 ou da decretação da prisão preventiva, se sobrevierem fatos novos que justifiquem a adoção dessas medidas. (STJ – HC 185.859 – (2010/0174860-5) – 6ª T. – Rel. Min. Sebastião Reis Júnior – DJe 19/10/2011 – p. 1016)

No entanto o Supremo Tribunal Federal, em processo penal, HC 107.769 – Relª Minª Cármen Lúcia – DJe 28.11.2011 – p. 34, portanto decisão posterior ao julgado do STJ acima, entendeu que o princípio da identidade física do juiz não tem caráter absoluto e comporta flexibilização:
HABEAS CORPUS – CONSTITUCIONAL – Infração do artigo 290, caput, do código penal militar. Alegação de nulidade por ter sido o interrogatório do réu realizado mediante carta precatória. 1- Paciente assistido nesse ato processual por defensor dativo. Inexistência de demonstração de prejuízo para a defesa. 2- Identidade física do juiz. Princípio que comporta flexibilização. Inexistência de afronta. 1- Interrogatório do paciente realizado pelo juízo deprecado com a presença de defensor dativo. Ausência de demonstração de prejuízo. Apesar de existir entendimento deste supremo tribunal no sentido de que o prejuízo de determinadas nulidades seria de "prova impossível", o princípio do pas de nullité sans grief exige, em regra, a demonstração de prejuízo concreto à parte que suscita o vício, independentemente da sanção prevista para o ato, podendo ser ela tanto a de nulidade absoluta quanto a relativa, pois não se decreta nulidade processual por mera presunção. Precedentes. (…) Inexistência de afronta ao princípio da identidade física do juiz. Precedente. O princípio da identidade física do juiz não tem caráter absoluto e comporta flexibilização. (…) 4- Ordem denegada. (STF – HC 107.769 – Relª Minª Cármen Lúcia – DJe 28/11/2011 – p. 34)

Assim, inclusive, tomando como base os julgados acima, conclui-se que não se reveste de caráter absoluto o princípio da identidade física do juiz, variando de cada caso.

Todavia, vou além.

O princípio da identidade física do juiz não convive harmonicamente com a Constituição Federal, em especial porque as decisões judicias são públicas e fundamentadas, esta última sim característica absoluta, cuja inobservância acarreta nulidade do processo. O artigo 93, IX, da CF/88, ao exigir que as decisões judiciais deverão ser fundamentadas não recepcionou o princípio da identidade física do juiz como regra de competência funcional.

Diante deste quadro, pelo menos no sistema do direito processual brasileiro, perdeu vida a observância da identidade física do juiz. Explico.

Se é verdade (e, é) que as partes não podem ser surpreendidas com simples impressões pessoais do julgador, não existe qualquer razão em vincular obrigatoriamente o juiz que presidiu, concluiu ou participou da audiência e colheu a prova, ao dever de sentenciar o processo (embora isso possa ser “recomendável”, não como regra), tudo porque as razões do livre convencimento do magistrado deverão constar expressamente na sua decisão. A mera subjetividade do julgador como fator preponderante da decisão viola o devido processo legal, garantia constitucional estrutural.

Por interpretação conforme a Constituição, sobretudo em prestígio a razoável duração do processo, motivação das decisões, celeridade, economia processual, razoabilidade, proporcionalidade, vedação de subjetivismo e escassez de juízes, entre outros, não seria impertinente concluir que o artigo 132 do CPC, diante de tantas situações que o excepcionam, está mais para mera recomendação legal, do que para regramento de competência (quanto mais absoluta).

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