Justiça Tributária

O Cadin e a torpeza estatal geram o arrastão tributário

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

2 de julho de 2012, 8h00

Spacca
Caricatura: Raul Haidar - Colunista [Spacca]O Cadin (Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Federais) foi instituído pela Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, que, em seu artigo 6º, obriga sua consulta pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, quando o ali inscrito pretenda realizar operações de crédito que envolvam uso de dinheiro público, bem como para concessão de incentivos fiscais e financeiros e ainda acordos e convênios também relacionados com recursos públicos. Estados e municípios já aderiram a essa mesma forma de assaltar o contribuintes.

As normas do Cadin criam problemas desnecessários para os contribuintes e que a jurisprudência sempre entendeu que são ilegais. Para que se tenha ideia da ilegalidade, basta invocar a Súmula 547 do STF onde se afirma que: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte (…) exerça suas atividades profissionais”.

Recentemente, milhares de pessoas físicas receberam notificações de sua inclusão nesse cadastro, especialmente face a supostas dívidas de IPVA, que remontam a exercícios já prescritos. O ex-proprietário de um automóvel marca Lada, por exemplo, está sendo cobrado do IPVA de 1991. O automóvel foi roubado em outro estado. Há pessoas que não cuidam bem de sua papelada e talvez o contribuinte não consiga provar o roubo de 21 anos atrás. Aliás, ninguém é obrigado a guardar esses papéis por mais de seis anos. Claro que se não provar o roubo, nada deve, pois se o imposto fosse devido, estaria prescrito.

Mas ele precisa impedir sua inscrição no tal cadastro, pois poderá ser prejudicado no exercício da profissão, caso pretenda ser contratado por empresa pública, por exemplo. Fica ele com duas alternativas: pagar o que não deve, rendendo-se a um novo roubo, agora patrocinado pela Secretaria da Fazenda, ou ingressar na Justiça com um processo para não pagar o que não deve, sofrendo despesas judiciais e suportando honorários de advogado. 

O Cadin é uma nova versão do antigo cadastro negativo que a Receita Federal denominava, nas décadas de 1960 e 1970, de “devedor remisso”, o qual impedia até mesmo o arquivamento de atos no Registro de Comércio, ou seja, perante a Junta Comercial. Como se vê, em matéria tributária, a redemocratização do país não melhorou em nada as relações entre fisco e contribuinte. Muito pelo contrário, estas se tornaram piores hoje.

Esse cadastro é administrado pelo Banco Central por meio de seu sistema de informações denominado Sisbacen, na forma do artigo 3º da Lei 10.522.

Com o Decreto 1.006, de 9 de dezembro de 1993, o então presidente Itamar Franco e seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, já haviam instituído o mesmo cadastro e com a mesma denominação, quando lhe davam maior amplitude, pois concediam ao ministro da Fazenda a possibilidade de estender as restrições além daqueles casos relacionados com dinheiro público. Anteriormente, fora editada a Medida Provisória 1973, que chegou a ter mais de 60 re-edições, até o surgimento da citada norma legal. Por estar agora regulado em lei, imagina-se que aquelas restrições possam prevalecer com mais legitimidade.

Ainda que os bancos privados e demais entidades com as quais as empresas ou pessoas se relacionem não estejam obrigadas a consultar o Cadin, a prática tem demonstrado que esse registro cria dificuldades no momento de obtenção de crédito. Por isso, é prejudicial ao contribuinte.

O artigo 7º da Lei 10.522 prevê a suspensão da inscrição quando o suposto devedor esteja discutindo a dívida em juízo, desde que mediante garantia (penhora, depósito etc.) ou quando esteja com sua exigibilidade suspensa (pendente de recurso, por exemplo). Seja como for, esse cadastro é inconstitucional, na medida em que desrespeita o princípio da ampla defesa e da presunção de inocência. O simples lançamento ou auto de infração não pode resultar em restrição, como também não se pode tolher a liberdade de trabalho daquele que, ainda que tenha débito, esteja a discuti-lo, seja administrativa ou judicialmente.

Quase sempre o Judiciário tem dado adequada proteção aos contribuintes diante desse problema. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em decisão publicada no Diário da Justiça da União (caderno 2) de 2 de julho de 1998, na página 240, no Agravo de Instrumento 98.03.050457-6, decidiu:

Ora, a inscrição no Cadin, de maneira unilateral, é afronta ao devido processo legal, porque, na prática, configura autêntica condenação do suposto devedor sem lhe dar a oportunidade de pagar ou se defender. A ilegalidade da inscrição no Cadin já foi reconhecida até pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADIN nº 1.454-4/600 e pelos Tribunais Regionais Federais, notadamente nos autos do Agravo de Instrumento nº 96.0124631-BA, onde o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em acórdão da Relatoria do Juiz Tourinho Neto, assim decidiu:

Ementa – Administrativo – Processo Civil – Registro – Proibição de Celebração de Determinados Atos – Liminar – O Supremo Tribunal Federal , em sessão de 19 de junho deste ano de 1996, por maioria de votos, deferiu liminar, em ação direta de inconstitucionalidade nº 1.454-4/600, requerida pela Confederação Nacional da Indústria, suspendendo a eficácia do art. 7º da Medida Provisória nº 1.442, de 10 de maio de 1996, impedindo deste modo a inscrição da empresa devedora no Cadin – Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público. 

Está tão evidente a inconstitucionalidade desse cadastro que a Justiça Federal, mesmo em primeira instância e sem que o suposto débito esteja garantido, já a vem reconhecendo. Assim, no processo 2002.61.09.003995-4, o juiz Carlos Eduardo Delgado, da 3ª Vara da Justiça Federal em Piracicaba (SP) concedeu antecipação de tutela para suspender tal inscrição, afirmando:

(…) o fato da Autora estar discutindo na esfera os débitos que originariam a sua inscrição no CADIN e que, ainda que legítima a inscrição de seu nome em tal cadastro esta não poderia ocorrer enquanto pendente a discussão… O perigo da demora encontra-se, exatamente, nos riscos e prejuízos a serem suportados pela autora diante da inscrição de seu nome no Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Federais – CADIN . A inclusão do seu nome no referido cadastro tem o condão, justificando assim o seu receio, de lhe gerar enormes prejuízos, posto que poderia, até mesmo, inviabilizar suas atividades.

Dessa antecipação de tutela, deferida em Ação de Rito Ordinário, a União ofertou agravo perante o TRF-3, tendo a ele sido negado provimento. Em outra decisão de primeira instância, a juíza Maria Isabel do Prado, da 3ª Vara da Justiça Federal em São Paulo, concedeu liminar no Mandado de Segurança (2000.61.00.017607 -3) impedindo a Receita Federal de inscrever no Cadin uma empresa paulista. 

Ao conceder a liminar, a juíza qualificou a inscrição no CADIN como “prática constrangedora” que “traduz indevido meio coativo, de cunho penal, para recebimento das dívidas, sem observância, portanto, do devido processo legal”. Ela mandou, na decisão, expedir ofício para que o delegado da Receita Federal em São Paulo – Centro “se abstenha de incluir o nome da impetrante no registro do Cadin”. 

A doutrina também reconhece ser inadequado o tal cadastro. Em matéria publicada na “Gazeta Mercantil” de 3 de junho de 1996, o professor Ives Gandra da Silva Martins foi categórico ao condenar tal cadastro, afirmando:

“O Cadin foi criado em 1941 e, desde 1946, o Supremo vem considerando que esse tipo de pressão é inconstitucional. Sou da opinião de que a União deveria ser a primeira a ser incluída no Cadin, porque é a maior caloteira, seguida pelas estatais e pelos municípios.”

De fato, a inscrição no Cadin restringe as atividades do contribuinte, especialmente pelo fato de que, embora a lei apenas pretenda inviabilizar a utilização de recursos públicos em financiamentos ou incentivos fiscais, as instituições bancárias, mesmo privadas, utilizam-no para impedir a realização de negócios que nada têm a ver com tais recursos.

Por outro lado, se alguém tenha, efetivamente, débitos para com os órgãos públicos, é dever de ofício que os mesmos promovam as ações cabíveis para cobrar e executar tais dívidas. Para isso é que existe a Lei de Execuções Fiscais, aliás, um instrumento jurídico bastante rigoroso, que já cria instrumentos eficazes de cobrança, autorizando a penhora de bens do contribuinte e até sua remoção. Para tais providências é que também existem as procuradorias e departamentos jurídicos desses órgãos públicos.

Vale ressaltar, ainda, que até mesmo empresas públicas já foram inscritas no Cadin, com o que tiveram que acionar a Justiça para reverter a situação. Ora, se tal cadastro é inconstitucional, como tem sido reconhecido pela Justiça e pela doutrina, se o Poder Público tem o dever de cobrar os seus supostos créditos, dispondo para tanto de uma legislação eficaz e contando com quadros de procuradores habilitados à cobrança, nada há que justifique sua manutenção. Ao que nos parece, a única explicação para que tal instrumento da ditadura (desde a de Vargas) ainda permaneça, é a indisfarçável vocação que os nossos governantes possuem para se deleitarem com a possibilidade de infernizar a vida dos contribuintes.

Eis aí um meio de praticar a torpeza contra o contribuinte. Veio tal palavra à memória por ter sido utilizada recentemente em apelação feita pelo município onde a sentença reconheceu a prescrição arguida pelo contribuinte. Porque o contribuinte deixou de pagar imposto durante vários anos, sem que a prefeitura promovesse o andamento da ação de execução, a advogada da municipalidade, além de sustentar a tese ridícula de que o exequente não precisa acompanhar as ações, alegou que o contribuinte estava a usar a seu favor sua própria torpeza.

Torpeza é a qualidade, condição ou ato que revela indignidade, infâmia, baixeza; ato ou qualidade de indecente. Torpe é a pessoa que contraria ou fere os bons costumes, a decência, a moral; que revela caráter vil; ignóbil, indecoroso, infame; que causa repulsa; asqueroso, nojento.

Quando a autoridade cobra imposto que não é devido, revela sua torpeza, pois a lei penal classifica a hipótese como crime de excesso de exação. Imposto flagrantemente prescrito não é devido, pois foi extinto. Assim, a cobrança é ato definido em lei como criminoso.

Quanto uma repartição – no caso, a Secretaria da Fazenda – intima milhares de pessoas e cobra imposto inexistente, comete crime no atacado. Isso é feito na certeza de que a maioria das pessoas desconhece seus direitos. Outras, porque sendo valores relativamente pequenos, não querem perder seu tempo com isso. Seja de uma forma ou de outra, muitos se tornam vítimas de um assalto geral.

Se queremos justiça tributária, temos que denunciar isso. Trata-se de um verdadeiro arrastão tributário.

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  • é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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