Um novo alvo

O preconceito como opção de política criminal

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2 de julho de 2012, 17h30

Sempre se disse que o Direito Penal apenas se aplicava aos pobres. Muitas são as bocas que lançaram essa afirmativa. Chegou-se mesmo a crer que os desafortunados fossem a clientela quase que exclusiva da política criminal. Em verdade, é inegável que uma boa parte dos ilícitos tem a propriedade como o maior e melhor objeto (bem) a ser protegido, e, certamente, pode afetar a posse e/ou propriedade de alguém aquele que nada possui e, em sua insignificante existência, se não oferece trabalho para sustentar a fortuna alheia certamente pode representar um risco à paz desejada para a fruição de tudo quanto se deseja proteger. Noutras palavras, o desafortunado é dispensado do convívio social e a principal maneira de fazê-lo retirar-se é apenando-o por algum crime cuja pena seja capaz de representar a exata medida do injusto praticado.

Inegavelmente o preconceito de uma sociedade pode criar delitos perfeitamente ajustáveis à necessidade de transformar a reprovabilidade moral de uma época em condutas merecedoras de uma definição típica aparentemente justificável por um discurso legislativo.

Hoje, entretanto, o preconceito não é mais dirigido apenas aos miseráveis de matéria. Tanto é assim que não mais se afirma que o Direito Penal foi feito para os pobres, mas que os pobres são os mais suscetíveis de serem condenados porque não têm condições de pagar por uma defesa. Noutras palavras, o Direito Penal não visa aos pobres, são os pobres que não podem visar à defesa.

E esse raciocínio cai perfeitamente para um novo uso do preconceito. Acredita-se que os ricos não são condenados porque podem pagar bons advogados, logo, a grande máquina criminalizante (arquitetada em tantos braços quanto podem ser as leis especiais ávidas a aumentarem o corpo quase centopéico do Código Penal) precisa mostrar a população (já quase não se fala mais em sociedade, essa pressupõe uma certa sofisticação, mas os sofisticados não precisam agora serem adulados) que os ricos são os culpados pelo fracasso do Estado enquanto gestor do bem público porque eles, que têm dinheiro, não pagam impostos, enviam suas cobiçadas moedas para o estrangeiro, fazem mirabolantes manobras para justificar o que (como se deseja que seja pensado) não teriam condições de ter.

E assim, após muito pensar, afinal de contas a repressão não pode parar, cria-se uma consciência criminal voltada para a fragilização daquele que se pretende perseguir e que é forte, por ser rico.

Só há uma forma de pô-lo em condições de ser condenado: proibindo-lhe o acesso à defesa. Ou seja, o novo modelo de criminoso terá que ficar “pobre” porque só assim a “justiça” poderá alcança-lo. A melhor maneira de fazer isso: sequestrando todos os seus bens. Ah, e para isso está sempre à mão o bom e velho (inclusive anterior ao próprio Código Penal ainda vigente) Decreto-lei 3240/41 que permite (e essa permissão é feito uma grande porta sempre aberta) que o sequestro (indisponibilidade) recaia sobre todos os bens do investigado/acusado, mesmo aqueles adquiridos sem qualquer relação com a conduta criminosa que lhe seja imputada. Pode ser, entretanto, que se faça uso da Lei 9.613/98, aí apenas os bens adquiridos com a atividade criminosa serão indisponibilizados ou mesmo que se resolva optar pelas cautelares do Código de Processo Penal. Via de regra, entretanto, pela dúvida, indisponibiliza-se tudo e então, se o sujeito ainda assim tiver a sorte de ter defesa para discutir a incorreção da medida, o pequeno equívoco será, a longas penas, corrigido.

Essa política é perfeita. Nada oferta mais audiência e entretenimento do que noticiar mais um rico investigado, uma sonegação fiscal de grande cifra, um esquema para impedir que o Estado consiga igualar todos os seus cidadãos porque suas finanças foram seriamente afetadas pela minoria (comerciantes, industriais, empresários) que se furtou a contribuir. E a culpa, agora, é dos ricos. A lei no país não se aplica a eles, corre no dito popular. Melhor política não há que adotar o senso comum, cujo conceito já foi previamente criado (logo, preconceito) e usá-lo para justificar mais uma produção legislativa ou, no mínimo, a negativa de invalidar-se o que é verdadeiramente ilegal: a fragilização do réu pela retirada de sua segurança financeira.

E se ainda assim, com todos os bens indisponibilizados, o sujeito tiver defesa, far-se-á uma análise sobre seu quilate e se ela for boa, quando muito respeitável, nascerá uma nova indagação, desejosa para ser adotada como motivo para mais um crime: de onde vem o dinheiro que está pagando? Se o dinheiro é de um criminoso, a defesa que o recebe também o é.

E a solução está dada, dispensa-se a defesa e o crime certamente se fará real. Agora, todos serão iguais no Estado dos indefensáveis.

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