Tradição protetiva

Os haitianos e o tratamento dos estrangeiros no Brasil

Autor

  • Carmen Tiburcio

    é mestre e doutora em Direito pela University of Virginia (EUA) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da UGF e consultora da área internacional de Barroso Fontelles Barcellos Mendonça & Associados – Escritório de Advocacia sucessor de Luís Roberto Barroso & Associados.

24 de janeiro de 2012, 10h57

O ingresso de haitianos no Brasil traz à tona questão delicada que suscita aspectos econômicos, sociais, políticos e humanitários, que devem ser analisados no âmbito de suas respectivas competências. Quanto aos aspectos jurídicos cabem alguns esclarecimentos.

O direito internacional estabelece claramente a regra de que somente os nacionais têm o direito de ingressar no país de sua nacionalidade. Há algumas exceções que envolvem agentes diplomáticos e consulares e pessoas que sofrem perseguições no exterior. Assim, qualquer autorização para ingresso e permanência, salvo as exceções mencionadas, se insere no poder discricionário dos Estados, de modo que nenhum país é obrigado a abrir as suas fronteiras a não-nacionais. É importante mencionar, todavia, que não se admite que o Estado impeça o ingresso por razões puramente discriminatórias, ou seja, porque o estrangeiro é negro, judeu, muçulmano ou mulher. Mas tampouco se exige que o país justifique sua decisão, o que dificulta o controle.

Para que um estrangeiro ingresse no Brasil, em geral, exige-se passaporte e visto, concedido por autoridades brasileiras no exterior. Os vistos podem ter caráter temporário ou permanente e somente nesse último caso se autorizam a residência e o exercício de atividade remunerada no país. Além disso, o estrangeiro pode pretender ingressar por sofrer perseguição em seu país de origem, o que dá margem à concessão de asilo ou refúgio, instrumentos de proteção de direitos humanos.

O asilo é empregado apenas na América Latina. Em 1954 foram firmados dois tratados versando o tema, ambos ratificados pelo Brasil: um sobre asilo territorial, concedido pelo Estado no qual o indivíduo se encontra, e o outro disciplinando o asilo diplomático, concedido temporariamente por embaixador para permitir que o asilado deixe o país onde se vê ameaçado. Já o refúgio se baseia na Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados, alterada por um Protocolo de 1967. A convenção considera refugiado toda pessoa que seja, ou tema ser, perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Os tratados foram ratificados pelo Brasil e, na sua essência, reproduzidos na Lei do Refúgio brasileira. Atualmente, segundo o ACNUR encontram-se, no Brasil, estrangeiros de aproximadamente 77 nacionalidades beneficiados com esse status.

No caso dos haitianos, não se cogitou tratar de concessão de refúgio por razões econômicas ou ambientais, até porque esses fundamentos não foram previstos na convenção ou na lei brasileira. Assim, trata-se de hipótese de imigração, o que suscitou a decisão governamental de outorga de visto permanente aos interessados.

Por fim, há que se mencionar o tratamento que o Brasil tem conferido aos estrangeiros. Em entrevista recente, o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, ressaltou com propriedade que o Brasil tem tradição no tratamento favorável dos estrangeiros. A verdade é que o Brasil se destaca nessa área. A legislação tradicionalmente impede a expulsão de estrangeiro com família nacional, o que ocorreu no caso de Ronald Biggs — o inglês que participou do assalto ao trem postal em 1963 — e em muitos outros. Apenas para que se tenha uma ideia, esse direito só veio a ser reconhecido pela Corte Europeia de Direitos Humanos no final da década de 80 e ainda assim não de forma absoluta, pois a Corte ressalva que a expulsão pode ocorrer por motivo de ordem pública, o que o Brasil não admite em nenhuma hipótese. A política para estrangeiros, no Brasil, sempre esteve muito mais próxima da tutela dos direitos humanos do que da prevalência dos interesses do Estado.

Esse tratamento favorável não decorre somente da lei, mas também da jurisprudência. A legislação determina que o reconhecimento de um filho depois de editado o decreto de expulsão não a impede, mas o Superior Tribunal de Justiça tem ignorado essa regra, permitindo a permanência de estrangeiro com filho brasileiro, que dele dependa econômica e afetivamente. Segundo o tribunal, ainda que seja possível a ocorrência de fraude, há valores mais importantes envolvidos, tais como a proteção à família e à criança.

Relativamente ao tratamento oferecido pelas autoridades brasileiras aos haitianos e, de maneira geral aos estrangeiros em situação análoga, duas circunstâncias merecem registro. Eventual aspereza é decorrência de preconceito econômico — também suportado por brasileiros — e não de intolerância a estrangeiros. Ademais, o tratamento conferido pela Administração Pública a brasileiros também é frequentemente criticado, por força da burocracia estatal, por vezes intransponível, sem que isso decorra de preconceito contra estrangeiros. Em outras palavras: a dificuldade, pessoal ou burocrática, de lidar com essa situação específica é ruim, mas não mancha a tradição protetiva do Estado brasileiro.
 

Autores

  • é professora de Direito Internacional Da UERJ e da pós-graduação da UGF. Mestre e doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Virginia, EUA. Consultora no escritório Luís Roberto Barroso & Associados.

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