Embargos Culturais

Devemos desconfiar da história do direito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

22 de janeiro de 2012, 7h22

A história do direito pode ser um campo cheio de ilusões, como cheia de ilusões é a própria vida. Direito e história vivem uma relação equivocada, como equívocos há também em toda a vida. Nos iludimos o tempo todo, sobre os outros, sobre nós mesmos, sobre nossas instituições. Nos enganamos muito, e nunca sabemos quanto acertamos. E assim escrevemos a história do direito.

A forma como se escreve a história do direito pode servir muito mais para confirmar conclusões presentes do que para investigar situações concretas efetivamente ocorridas. A historiografia jurídica, isto é, a produção da história do direito, provoca reflexões em torno das relações entre direito e história, entre relato e verdade.

O presente artigo defende que uma simplificação da história do direito geralmente é utilizada como argumento, adereço retórico, ornamento, descrevendo menos e criando mais[1], uma espécie de discurso legitimador, cheio de conteúdo apologético, de vivas, de comemorações[2].

Acredito que à história do direito reserva-se a triste tarefa de justificar e legitimar o direito atual[3], função legitimadora[4]. Disfarça-se, no entanto, essa tarefa, alegando-se que a história do direito revela a cultura geral do advogado e do juiz, que alarga horizontes, que melhora a compreensão do presente, que explica a realidade da experiência jurídica, que revela mistérios, que apresenta exemplos, que prevê tempos vindouros. É uma caixinha de boas coisas.

Devemos investigar a finalidade da história do direito. Concepções weberianas apontam justificativas de dominação tradicional[5]; o direito fundamenta-se no passado, como indicador de validade[6]; trata-se de uma premissa recorrente na formatação da tradição romanística.

Para os hegelianos[7] indica-se a razão realizando-se na história, configurando-se na realidade[8], a promover um futuro conivente com um constitucionalismo que prega a perfeição institucional.

Tradição marxista insiste que os homens fazem a própria história[9], fundamentada na luta de classes[10], projetando-se a partir da dinâmica econômica[11].

Os iluministas conceberam a história como identificadora do progresso[12], como se lê em Voltaire, fixador de uma filosofia da história, enquanto conceito[13]. A tradição positivista defende que a história seria uma ciência pura[14], na incessante busca do "como realmente aconteceu" (wie es eigentlich gewesen) , tese atribuída a Leopold Ranke[15], alvo da crítica de Walter Benjamin na Tese VI sobre a Filosofia da História[16].

Já se observou que a história pode ser ficção[17]; é o que nos lembra Hayden White sobre Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Nietzsche, entre outros[18]. Tradição que remonta a Vico percebe monumental afresco da história que radica na subjetividade do narrador[19]: cada época constrói a sua história dos romanos e dos gregos, por mais que o positivismo pretenda esquematizar os fatos na impessoalidade objetiva dos nexos causais[20].

É que só o próprio tempo escolhe uma imagem determinada do passado[21], o que nos revela um subjetivismo radical, que exprime juízo de valor[22], desenhando imaginação histórica[23], destinada à compreensão do presente[24].

Os utilitaristas adoram a história do direito, pois (…) conhecimento é conhecimento para algum fim (…) a validade do conhecimento depende da validade do propósito (…)[25]. Trata-se de imaginar a objetividade de eunuco, a anunciar que o discurso histórico não pode ser neutro[26], mesmo porque tem estilo que o identifica[27].

A escrita da história é multiforme, transitando da alteridade em Heródoto[28] para a objetividade em Tucídides[29], ou até para uma pretensão de relatos mais contemporâneos[30], indicador de novos paradigmas, inclusive na literatura nacional[31], com certa inspiração em marcos epistemológicos da Escola dos Annales, que triunfou na França[32]. É a mania de estudar as pequenas coisas, em detrimento do magistral. A moda pode revelar mais de uma época do que os esforços que eventualmente Napoleão teria gasto em Waterloo. Porém, entre a batalha imaginada e a toque no penteado do cabelo de nossa ancestral, a diferença é pouca, que fica por conta de nossa imaginação.

Mas se a história parece um guarda-roupa no qual todas as fantasias são guardadas[33], a história do direito lembra a caixa de Pandora de onde saem modelos e institutos de mínima variação semântica, qualificadores de modelo evolucionista, linear, progressista.

As argumentações aqui apresentadas levantam que se deve duvidar desse progresso, como já alertou Walter Benjamin na XIII Tese sobre a Filosofia da História[34]. Benjamim, o filósofo da melancolia[35], desconfiava da história que se identifica com o vencedor, da concepção de progresso, da temporalidade, de uma fixação eterna do passado. Por que só se conta a versão do vitorioso?

A história é também (e muito) a construção da realidade presente, informada por um salto de tigre que agarra algo que faz o presente coincidir com a história da humanidade.

Defendo que se pode duvidar da interpretação histórica convencional dos juristas. Essa história oficial do direito, que toma o passado com uma neutralidade muitas vezes enervante, afina-se com o discurso normativo positivista, também pretensamente neutro, informando a ele, e sendo por ele reverenciada. A crítica a concepções jurídicas positivistas é também uma crítica ao historicismo, dada a afinidade ideológica e interface conceitual entre os dois pensamentos.

A história do direito é geralmente representada como um fio condutor para realidade normativa perfeita, acabada, realizada. Institutos, conceitos, imagens, perspectivas e acontecimentos prestam-se a justificar a ordem contemporânea. Parece que toda a liberdade vem da Revolução Francesa. Esquece-se de se dizer que nunca se matou tanto, quando durante a Revolução Francesa… É o preço do progresso?

Reservada à parte introdutória dos textos de doutrina, de exegese, de dogmática, a história do direito protagoniza uma antessala experimental, indicativa panglossiana de que o mundo caminha para o melhor dos mundos possíveis, concretizado nos textos legislativos de nossos tempos.

Sob a falsa impressão de que a história do direito dá tônica à interpretação, de que alarga horizontes, de que densifica a argumentação, de que é uma importantíssima disciplina formativa, de que dá demãos de cultura, a história do direito segue como segundo violino, sonorizando o triunfo de uma racionalidade instrumental que não mais se justifica, e o caos da prática judiciária que se tem pelo mundo pode ser disso prova incontestável.

Desconfiemos da história do direito. Ela pode ser muito mais uma justificativa para nossos dogmas do que um convincente registro do que aconteceu.

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[1] António M. Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia, p.18.

[2] Idem. Ibidem. p.19.

[3] Ricardo Marcelo Fonseca, Walter Benjamin, a Temporalidade e o Direito, in A Escola de Frankfurt e o Direito, págs. 75-86. Trata-se de texto seminal para reflexões a propósito da historiografia jurídica, com importantíssima incursões em Walter Benjamin e em António M. Hespanha.

[4] António M. Hespanha, Poder e Instituições no Antigo Regime, p.12.

[5] Max Weber, Sociologia, p.131.

[6] Harold J. Berman e Charles Reid Jr., Max Weber as Legal Historian, in The Cambridge Companion to Max Weber, p. 226.

[7] Michael Inwood, Dicionário Hegel, p. 160 e ss.

[8] G.W.F. Hegel, Filosofia da História, p. 34.

[9] Karl Marx, O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, p. 15.

[10] Terence Ball, History: Critic and irony, in The Cambridge Companion to Karl Marx, p. 124 e ss.

[11] Ernst Breisach, Historiography, p. 297 e ss.

[12] Maria das Graças de Souza, Ilustração e História, p. 23.

[13] Marcos Antônio Lopes, Voltaire Historiador.

[14] Philippe Tétart, Pequena História dos Historiadores, p. 94.

[15] Rogério Forastieri da Silva, História da Historiografia, p. 104.

[16] Walter Benjamin, Illuminations, p. 255.

[17] José Reinaldo de Lima Lopes, p.18.

[18] Hayden White, Metahistory, the Historical Imagination in Nineteenth – Century Europe.

[19] Giambattisco Vico, A Ciência Nova, p. 353 e ss.

[20] Miguel Reale, Horizontes do Direito e da História, p. 16.

[21] Adam Schaff, História e Verdade, p. 115.

[22] Benedetto Croce, A História, p. 25.

[23] R.G. Collingwood, The Idea of History, p. 231 e ss.

[24] R.G. Collingwood, The Principles of History, p. 140 e ss.

[25] Edward Hallet Carr, Que é História, p. 63.

[26] Michael Löwy, Ideologias e Ciência Social, p. 71.

[27] Peter Gay, O Estilo na História.

[28] François Hertog, O Espelho de Heródoto, p. 97 e ss.

[29] Jacqueline de Romilly, História e Razão em Tucídides, p. 157 e ss.

[30] Georg G. Iggers, Historiography in the Twentieth Century, p. 134 e ss.

[31] Antonio Carlos Wolkmer, História do Direito no Brasil, p. 11 e ss.

[32] Conferir José Carlos Reis, Escola dos Annales; Carlos Antonio Aguirre Rojas, Os Annales e a Historiografia Francesa; Fernand Braudel, Escritos sobre a História; Peter Burke, A Escrita da História; Marc Bloch, Introdução à História.

[33] Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, p. 22.

[34] Walter Benjamin, op.cit., loc.cit.

[35] Conferir Leandro Konder, Walter Benjamin, o marxismo da melancolia; Pierre Missac, Passagem de Walter Benjamin; Andrew Benjamin e Peter Osborne, A Filosofia de Walter Benjamin; Jeanne Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin; David Held, Introduction to Critical Theory , p. 207 e ss.; Rolf Wiggershaus, The Frankfurt School, p. 191 e ss.; Martin Jay, The Dialectical Imagination, p. 204 e ss.; Marshall Bermann, Aventuras do Marxismo, p. 260 e ss.

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