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Portugal anistiou a evasão de divisas. E o Brasil?

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

12 de janeiro de 2012, 11h26

Spacca
Ao lado da ampliação das sanções aplicáveis aos sonegadores de tributos, Portugal acaba de aprovar, na Lei do Orçamento do Estado para 2012, anistia para pessoas físicas e jurídicas que possuam ativos não declarados no exterior. Com o pagamento de uma alíquota de 7,5% sobre o valor antes não declarado, o contribuinte regulariza sua situação fiscal e penal. Os ativos podem ser mantidos no exterior, não sendo obrigatório seu repatriamento.

A recente anistia portuguesa provoca a lembrança de iniciativa brasileira semelhante que se encontra parada em alguns projetos de lei. O mais adiantado desses projetos, o PLS 354/2009, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS), está na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado onde ficou durante todo o ano de 2011 aguardando designação de novo relator. O antigo relator, Senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), ofereceu em fins de 2010 relatório favorável à aprovação do projeto, antes de se licenciar do Senado para assumir o Ministério da Previdência Social. Desde então o projeto não avançou, apesar de a CAE ser hoje presidida pelo próprio autor, senador Delcídio Amaral.

O assunto é polêmico. Mas, como já escrevi em outra oportunidade (Valor Econômico, 10/12/2009, pg. A14), creio que o debate sobre a anistia para os que enviaram divisas ou mantêm depósitos não declarados no exterior se perde entre a secundária justificativa do interesse econômico e o falso argumento de que se pretende legalizar dinheiro de origem ilícita.

Diante da notícia da anistia portuguesa, relembro as razões que me levaram a defender a anistia brasileira naquele artigo do Valor.

O autor de um dos projetos em tramitação no Congresso Nacional, deputado José Mentor, defendeu, em artigo na Folha de S. Paulo (14/10/2009), que o objetivo é legalizar e trazer de volta entre US$ 70 bilhões e US$ 150 bilhões que saíram do país, reconhecendo a justa preocupação com o impacto no câmbio. O Valor, em editorial de 19 de outubro de 2009, critica a anistia sob argumentos econômicos e morais. Do ponto de vista macroeconômico, entende que a repatriação é uma medida totalmente inoportuna face à apreciação do real frente ao dólar. Segundo o jornal, essa apreciação tende a se acentuar com o ingresso de recursos estrangeiros no país e uma eventual enxurrada adicional de dólares seria ainda mais danosa para os exportadores brasileiros.

Contudo, a anistia deve ser vista como uma medida de política criminal e não de política econômica. O Congresso, ao votar uma lei de anistia, e o presidente da República, ao sancioná-la ou vetá-la, deveriam estar com a consciência voltada à justiça dessa medida e não ao caixa do Tesouro. Pela anistia, o Estado resolve “perdoar” determinadas condutas que constituem crime, impedindo que aqueles que as praticaram no passado sejam punidos. A anistia é um instrumento importante para corrigir o uso distorcido ou excessivo do Direito Penal, especialmente quando reconhece que circunstâncias extraordinárias, muitas vezes motivadas pelo próprio Estado, foram determinantes para a prática das condutas consideradas como crime.

É sabido que muitos brasileiros remeteram divisas para o exterior ou lá mantiveram depósitos não declarados às autoridades. Por essas condutas, incorreram basicamente em dois crimes: sonegação fiscal e evasão de divisas. O pagamento dos impostos devidos e de multa extingue o crime tributário, mas não o de evasão de divisas. Como já decidiu o STF, o pagamento do tributo não implica “arrependimento eficaz” quanto à evasão.

O crime de evasão de divisas passou a existir com a edição da Lei 7.492, de 16 de junho de 1986. A ameaça de prisão e multa aos que realizassem operações de câmbio não autorizadas, remetessem ou mantivessem divisas não declaradas no exterior foi um dos principais instrumentos de uma política econômica fundada no sistema de “monopólio de câmbio”, pela qual o Estado tentava controlar a saída de capitais com o Direito Penal, em meio ao descontrole dos fundamentos econômicos e a desastrosos planos e “pacotes”. Convivíamos ao lado da ameaça de prisão, com controles cambiais que, entre outros, limitavam em mil dólares a quantidade de moeda estrangeira que podíamos levar ao exterior e que também nos impediam de ter cartão de crédito internacional. Tivemos também nossos capitais atingidos por congelamentos, empréstimos compulsórios e confiscos que a própria Justiça considerou ilegais e inconstitucionais.

Nesse cenário de violência econômica do Estado, reconhecidamente ineficiente, ilegal e inconstitucional, muitos brasileiros e estrangeiros aqui residentes foram forçados a recorrer ao “câmbio negro” ou a se arriscar para colocar suas economias fora do Brasil, a salvo das não menos ilegais ameaças econômicas. Não se trata de ativos de origem ilícita, de produtos de narcotráfico, corrupção, tráfico de armas ou roubo a bancos. Fala-se de fruto do trabalho assalariado, de poupanças muitas vezes acumuladas ao longo de uma vida, de dividendos de atividade empresarial lícita, de aposentadorias.

A discussão sobre a pertinência da anistia não deve ser desviada pelo debate acerca de eventuais favorecimentos a criminosos de colarinho branco ou pelo argumento de que crimes contra o sistema financeiro causam maior ou menor dano à sociedade quando comparados com os crimes contra a vida ou o patrimônio, entre outros. Não se advoga, nesse momento, a descriminalização da evasão de divisas e da sonegação fiscal, mas o reconhecimento de que aqueles remeteram recursos ao exterior ou lá mantiveram depósitos à margem das autoridades, o fizeram não com a intenção de cometer crimes. Procuraram se proteger de medidas econômicas que, além de injustas e violentas, foram consideradas ilegais e inconstitucionais pela Justiça. São pessoas que querem gozar da normalidade institucional e econômica do Brasil e aqui investir sem a ameaça de serem processados e presos.

A anistia do crime de evasão de divisas é medida atrasada, que deveria ter acompanhado a descontinuação do sistema de monopólio do câmbio. Ao contrário do que têm afirmado seus opositores, não é extremamente difícil separar o resultado de ilícitos fiscais e cambiais do produto de outros crimes. Investigações bem feitas devem levar tanto à prisão dos criminosos como ao bloqueio e confiscos dos ativos de origem ilícita, sem necessidade de deturpar a finalidade da lei que coíbe ilícitos fiscais e cambiais. Em vários países evasão de divisas sequer é crime.

A anistia proposta pelos projetos de lei no Congresso não alcança outros crimes, apenas reconhece a injustiça de punir a evasão de divisas e a sonegação fiscal em um determinado contexto histórico que em nada lembra a atual maturidade econômica do Brasil. Permitir a regularização das divisas remetidas ou mantidas no exterior é medida de justiça essencial para realmente por fim às consequências daquelas violentas, desastrosas, ilegais e inconstitucionais experiências econômicas e políticas do passado.

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    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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