Segunda leitura

Prudência está a serviço da solução dos conflitos

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8 de janeiro de 2012, 6h39

Spacca
Se um jovem estudante de Direito, ou mesmo um recém-formado nessa área, busca o conselho de alguém mais experiente no universo jurídico, a propósito de como se encaminhar na área profissional cujo portal se abre, decerto receberá a indicação de que tente um bom equilíbrio entre a ética e a prudência. Esse conselho é bem razoável, muito embora corra o risco de concorrer com outros de matiz elitista (“…dedique-se inteiramente à pesquisa acadêmica”) ou pragmática (“…acoste-se a um escritório de sucesso nas áreas mais rentáveis”). Na mesma linha, “…figure-se como estagiário de um juiz ou de um promotor que muito tenha a lhe repassar de prática forense”.

O respeito a todas essas sendas é devido. Entretanto, parece ser mais basilar, mais fundamental, mais alicerçante, o que recomenda a atenção à prudência (obviamente aliada à ética). Se há tempo e interesse por parte do consulente, que ele leia ou releia “A arte da prudência”, de Baltasar Gracián, pois isso o conduzirá a passadas firmes e conscientes no tablado profissional, sem ter que desviar-se full time para as teorias filosóficas ou de áreas afins, postas no academicismo, pesquisas que poderão ser feitas posteriormente, de forma mais comedida e útil.

É de bom alvitre o razoável conhecimento, mesmo que por via jornalística, de como os trabalhadores da área jurídica se portam diante de temas delicados, que podem trazer efeitos relevantíssimos para a sociedade, para as instituições e principalmente para os cidadãos que são sujeitos (e às vezes objeto) dessas atuações. Como a casuística —mesmo aquela divulgada por caminhos leigos, como os da imprensa — é mais rica em matéria penal ou processual penal, coloca-se nessas áreas o feixe das sugestões que atendem à hipotética consulta do primeiro parágrafo.

O texto, pois, traz à luz algumas situações que podem gerar consequências indesejáveis, tanto para quem as provoca como para aqueles que delas são alvo. Vejamos.

O Código de Processo Penal prevê medidas cautelares que podem assegurar a realização do apuratório dos crimes e das respectivas responsabilidades sem a necessidade de prisão antes da sentença. Lá estão: a) o comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; b) a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; c) a proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; d) a proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e) o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; f) a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; g) a internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem que o seu estado mental assim recomenda e que haja sério risco de reiteração da conduta; h) o depósito de quantia razoável, a título de fiança, que será perdida em favor dos cofres públicos casa quebrada qualquer das condições estabelecidas para a sua concessão; i) monitoração eletrônica.

O rol das disposições que podem ser usadas em relação às pessoas que são investigadas ou processadas pode até não ser perfeito, mas tem o condão de deixar para uma posição derradeira a prisão sem condenação. Assim, se o juiz usar com o cuidado merecido, as providências previstas no CPP, estará prestigiando a garantia constitucional do estado de inocência (ou, como queiram, da presunção de inocência), prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Lei Fundamental: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

E então? Lançar mão do recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga, quando o investigado ou acusado tem residência e trabalho fixos, não parece mais razoável do que partir, per saltum, para a decretação da sua prisão temporária ou preventiva (desde que outro motivo relevante não reclame essas providências extremas)? Resposta afirmativa, com base na prudência que deve orientar o magistrado em conjunturas tais. Afinal, qual o ganho que o processo tem com uma prisão açodada? Nenhum! Mas, invertendo a pergunta, qual o prejuízo do cidadão pelos dias que ficar preso sem condenação, advindo, ao final do processo, a sua absolvição? Enorme! Não se tira a nódoa moral que se impõe a quem sofre uma prisão desnecessária e, portanto, indevida. E essa cicatriz de vergonha trespassa facilmente para os familiares e demais entes queridos de quem padece do abuso.

Ademais, opera-se uma inversão vetorial na lógica da atuação estatal em casos de índole penal. O razoável é investigar, processar, condenar e prender. Errado é ter como regra colocar a prisão em primeiro lugar.

Muito embora o indicativo de prudência para o manejo de medidas de força (prisão preventiva ou provisória, por exemplo) esteja primordialmente voltado para os juízes, é bem certo que a sugestão também se aplica aos demais agentes públicos que de uma forma ou outra podem contribuir para esse equívoco de direção.

A prudência deve presidir as manifestações das autoridades policiais encarregadas da investigação. Não cumpre satisfatoriamente a sua missão o presidente do inquérito que só resta satisfeito se conseguir reunir elementos que mandem o investigado, de plano, para detrás das grades. O compromisso há que ser firmado com o afloramento da verdade real. Da mesma sorte, a prudência há que estar presente nas manifestações e nas promoções titularizadas pelos membros do Ministério Público, que não podem tisnar com o rótulo banal de “auxiliares de carcereiros” a excelência da missão que receberam do povo, via Constituição. Pedir a prisão processual quando não há necessidade desatende aos reais interesses da sociedade e da própria instituição ministerial, pois no fundo uma e outra desejam eficiência e não pirotecnia vã. Ainda que no primeiro momento advenham os aplausos gestados pela sensação de impunidade que existe no País, esse dividendo tende a ser transformado em críticas quando, mais adiante, for constatado que o agir oficial não se converteu em ponto de reequilíbrio social concreto, esboroando-se em um habeas corpus ou outra medida revocatória de similar efeito.

E não pode faltar prudência também nas intervenções dos advogados, públicos ou privados. Aliás, nesse particular, é ampla a responsabilidade dos causídicos, em razão da multiplicidade de frentes nas quais podem atuar. Calar diante da prisão despicienda de um cliente é imperdoável tanto quando representar para que seja decretado o gracioso encarceramento provisório ou preventivo do adversário do seu constituinte (em caso de assistência da acusação).

Deve o oficiante jurídico, qualquer que seja o seu papel no contexto em que labuta, ter em mente que a prudência não se confunde com a astúcia. É sim uma virtude e deve sempre ser colocada a serviço da solução mais plausível dos conflitos interpessoais ou sociais. É auxiliar valiosa do Direito, atuando como mensuradora da sua aplicação e, por conseguinte, da sua eficiência.

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