Lei das Leis

CNJ não pode ultrapassar Constituição

Autor

  • Marco Aurélio Mello

    é ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Imae (Instituto Metropolitano de Altos Estudos). Foi presidente do STF e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

8 de janeiro de 2012, 14h17

[Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, na edição deste domingo.]

A quadra vivenciada revela extremos. Faz lembrar tempo remoto, de dualismo religioso – maniqueísmo – presentes o reino da luz e o das sombras, o bem e o mal. De um lado, a bandeira da busca de novos rumos, anseio da sociedade em geral, personificada, certo ou errado, no Conselho Nacional de Justiça, de outro, a necessária preservação de valores constitucionais. Paixões condenáveis acabaram por reinar, vindo à balha as críticas mais exacerbadas. Ocorre que a vida organizada pressupõe a observância de balizas estabelecidas. É esse o preço, ao alcance de todos, a ser pago por viver em um Estado Democrático de Direito. Há de prevalecer não a vitrine, a potencialização de certos enfoques, a visão dos predestinados, mas a percepção da realidade, afastando o enfoque daqueles que não se mostram compromissados com o amanhã, com dias melhores. Mediante a Emenda Constitucional  45/04, foi criado o Conselho – e, em âmbito específico, o do Ministério Público -, ficando-lhe atribuída a competência para controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.

A atuação conferida ao órgão produziu inevitável tensão considerada a autonomia dos tribunais, não se verificando o mesmo no tocante ao Conselho do MP.

O Diploma Maior da República assegura aos tribunais a autodeterminação orgânico-administrativa, o que inclui a capacidade para resolver, de forma independente, a estruturação e o funcionamento dos próprios órgãos. Trata-se de garantia institucional voltada à preservação do autogoverno da magistratura, encerrando a competência privativa para elaborar regimentos internos, organizar secretarias e juízos e dispor sobre a competência e o funcionamento dos órgãos jurisdicionais e administrativos.

O aparente choque de normas fez surgir inúmeras controvérsias, sendo o Supremo convocado para dirimi-las. Em 2006, no julgamento da ADIn 3.367, veio a ser declarada a constitucionalidade do Conselho. Observem os parâmetros da Federação. A forma federativa é um mecanismo de proteção da autonomia privada e da pública dos cidadãos, servindo a descentralização política para conter o poder e aproximá-lo do respectivo titular, o povo. A importância da Federação está revelada, na Carta de 1988, desde o artigo 1º. Os Estados organizam-se conforme os ditames maiores, surgindo os Poderes – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário -, que, nos moldes do artigo 2º, são independentes e harmônicos entre si.

O artigo 60, § 4º, obstaculiza a deliberação sobre proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado. A previsão apanha matéria que, de alguma maneira, coloque em risco a autonomia dos entes federados. Por força do princípio, afigura-se inafastável a autonomia dos Tribunais de Justiça, no que se mostram órgãos de cúpula do Poder Judiciário local. Se, em relação aos tribunais em geral, há de se considerar o predicado da autonomia, quanto aos Tribunais de Justiça cumpre atentar, em acréscimo, para o princípio federativo.

Em época de crise, é preciso cuidado redobrado, de modo a evitar que paixões momentâneas orientem os agentes, em detrimento da reflexão maior que deve anteceder a edição dos atos em geral.

Não incumbe ao Conselho criar deveres, direitos e sanções administrativas, mediante resolução, ou substituir-se ao Congresso e alterar as regras da Lei Orgânica da Magistratura referentes ao processo disciplinar, mas tão somente fiscalizar a aplicação das normas existentes pelos tribunais. O texto constitucional ao definir-lhe as atribuições sinaliza, a mais não poder, a atuação subsidiária. Extrai-se do § 4º, inciso I, do artigo 103-B competir-lhe "zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito da sua competência, ou recomendar providências". Sob o ângulo das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, prevê o inciso III que o recebimento e a apreciação hão de ocorrer "sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso…" cabendo-lhe "rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano" – inciso V. Então, forçoso é concluir pela atuação subsidiária, sem atropelos indesejáveis. A legitimação não é concorrente, muito menos excludente.

No Brasil, há 90 tribunais, sendo 27 de Justiça, idêntico número de Regionais Eleitorais, 24 Regionais do Trabalho, 5 Regionais Federais, 3 Militares, além dos Superiores – STM, TSE, TST E STJ. Cada qual conta com uma corregedoria. É crível imaginar-se a do Conselho com atuação abrangente a ponto de relegá-las à inocuidade? A resposta é negativa. Conforme ressaltou o ministro decano do Supremo, o proficiente Celso de Mello, a atuação disciplinar do Conselho pressupõe situação anômala, sendo exemplos a inércia do tribunal, a simulação investigativa, a indevida procrastinação na prática de atos de fiscalização e controle, bem como a incapacidade de promover, com independência, procedimentos administrativos destinados a tornar efetiva a responsabilidade funcional dos magistrados (MS 28799-DF).

A toda evidência, descabe a inversão de valores constitucionais, a centralização de poderes, sempre perniciosa, fragilizando-se a independência dos tribunais. Ninguém é contra a atuação do Conselho Nacional de Justiça, desde que se faça segundo a Constituição, a que todos, indistintamente, se submetem, afastados atos que, ao invés de implicarem avanço cultural, encerram retrocesso no que inerentes a regime totalitário. Que oxalá prevaleça aquela que precisa ser um pouco mais amada, em especial pelos homens públicos, a Constituição Federal.   

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