Retrospectiva 2011

Inverno econômico e primavera política marcaram o ano

Autor

  • Eduardo Felipe Pérez Matias

    é sócio de Nogueira Elias Laskowski e Matias Advogados. Doutor em Direito Internacional pela USP e autor dos livros A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade e A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global vencedor do Prêmio Jabuti. Twitter: @EduFelipeMatias

2 de janeiro de 2012, 13h19

ConJur
Icone Retrospectiva 2011 [ConJur]Eduardo Felipe Matias [Spacca]Spacca" data-GUID="eduardo_felipe_matias.png">Em um mundo que dá a impressão de girar cada vez mais rápido, ano a ano, 2011 pareceu ter ainda mais revoluções do que o normal. No plano internacional, foi um ano de prolongado inverno econômico, principalmente na Europa, mas foi também o ano de uma inédita primavera política no mundo árabe.

Muitos acontecimentos mereceram destaque no planeta que, em 2011, chegou a sete bilhões de habitantes. Entre os eventos que marcaram o ano, está o fim da Guerra do Iraque, iniciada em 2003 pelos Estados Unidos, sob o pretexto de que o país de Saddam Hussein contaria com armas de destruição em massa – o que nunca foi comprovado. A retirada das tropas americanas atuantes no Iraque, deixando para trás centenas de milhares de mortos e custo de quase um trilhão de dólares, foi anunciada pelo presidente norte-americano em setembro.

Porém, o anúncio de Barack Obama que chamou mais a atenção neste ano ocorreu em maio, quando este revelou a morte de Osama Bin Laden, que estava escondido no Paquistão, em uma mansão próxima à capital Islamabad. Era de se esperar que a invasão do território de outro país, com o propósito de assassinar uma pessoa, trouxesse maiores discussões sobre o evidente descumprimento das normas de direito internacional. No entanto, aparentemente a atrocidade cometida por Bin Laden, idealizador do atentado de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, o tornaram exceção para quase toda a comunidade internacional no que se refere à condenação a violações da soberania e dos direitos humanos. Claro que, ainda que houvesse o desejo de punir a ação dos Estados Unidos, a forma de organização da sociedade internacional não ajudaria, uma vez que o poder de veto desse país no Conselho de Segurança da ONU o torna praticamente imune a sanções dessa organização. Aliás, a reforma do Conselho de Segurança, um dos temas “quentes” de 2010, foi deixada um pouco de lado em 2011.

Outra discussão que perdeu força foi aquela sobre o uso indevido da energia nuclear – assunto dominante em 2010, ano de revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear e período em que o Irã e seu programa atômico foram foco de atenção. A exceção foi a incerteza trazida, já em dezembro, pela morte de Kim Jong-il, líder da Coreia do Norte desde 1994, sucedido por seu filho, Kim Jung-um, que ninguém sabe ao certo que papel terá e como lidará com o arsenal construído por seu pai, cujas atitudes foram fonte de constantes tensões diplomáticas na região.

A ameaça nuclear, entretanto, se manifestou em 2011 de outra forma. Neste ano, ela não veio de um dos países considerados “párias” (“rogue states”) pelos Estados Unidos, mas sim do Japão e do uso pacífico desse tipo de energia. Um terremoto de magnitude 8,9 graus na escala Richter – o pior de todos os tempos já registrado no Japão – gerou um tsunami que destruiu parte das cidades costeiras do país, deixando mais de 20 mil mortos e danificando a central de Fukushima, causando o acidente nuclear que foi um dos fatos mais marcantes do ano. A reconstrução das regiões afetadas pela catástrofe custou algo próximo de 300 bilhões de dólares ao Japão, o que dificultou ainda mais a esse país a dura missão de sair da crise em que o mundo patina ao menos desde 2008.

Europa em crise
Por falar em crise, nenhuma região do mundo despertou maior preocupação neste ano na área econômica do que a Europa, com sérios problemas fiscais. Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha foram apelidados de grupo dos PIIGS, sigla que lembra a palavra “porcos” em inglês e que mostra bem o lamaçal em que se meteram e o sentimento de desprezo que provocaram ao se endividarem excessivamente, o que levou aos elevados déficits orçamentários atuais – vale lembrar que o Tratado de Maastricht, de 1992, estabeleceu um limite de 60% na proporção entre endividamento e PIB dos países da zona do euro.

O ano terminou com uma reunião de cúpula dos líderes da União Europeia (UE) para tentar reverter a crise do euro e consertar o erro que foi criar uma união monetária sem a correspondente união fiscal. Nessa reunião, sob a liderança da chanceler alemã Angela Merkel e do presidente francês Nicolas Sarkozy, 26 dos 27 países da UE – a exceção foi o Reino Unido – decidiram conceder um empréstimo de 200 bilhões de dólares para o Fundo Monetário Internacional combater a crise, e chegaram a um acordo sobre a necessidade de se estabelecer um pacto fiscal, com normas orçamentárias que seriam inseridas nas Constituições nacionais e com sanções automáticas para os países que viessem a descumprir as metas de endividamento.

As regras desse novo acordo intergovernamental serão discutidas em março de 2012, e não se sabe se conflitarão com o Tratado de Lisboa e demais normas da UE. Mais uma vez, a Europa deverá mergulhar em um debate sobre a transferência de soberania dos Estados membros para Bruxelas, tendo em vista que a interferência da Comissão Europeia sobre os orçamentos nacionais será provavelmente combatida por aqueles que questionam a perda de autonomia dos governos de seus países perante a burocracia da UE. O ano que vem promete discussões intensas sobre essas questões constitucionais, que podem unir a Europa, aprofundando seu processo de integração, ou rachá-la de vez.

A crise, como não podia deixar de ser, teve reflexos em diversas outras áreas, como o livre comércio e o meio ambiente.

Comércio fechado
Com relação ao livre comércio, a moribunda Rodada Doha, lançada em 2001 como uma “rodada do desenvolvimento” para provocar uma nova onda de liberalização, pelo visto, morreu de vez. Foi o que reconheceram em Genebra, no mês de dezembro, os representantes dos países membros na reunião ministerial da Organização Mundial de Comércio – organização que, em 2011, enfim pôde anunciar a admissão da Rússia, depois de longas negociações.

Assim, neste ano, em vez de mais abertura comercial, o que se viu foi o aumento do protecionismo – calcula-se que 3 barreiras, em média, vêm sendo criadas por dia no mundo. O Mercosul não fugiu a essa regra. Mais uma vez, andou de lado neste ano, com pouca liberalização comercial e proliferação de medidas de defesa comercial. A Cúpula do Mercosul, ocorrida em dezembro, foi marcada por reclamações dos países membros – principalmente Paraguai e Uruguai – contra as barreiras que têm surgindo de forma acelerada, prejudicando o comércio intrarregional. E, no que se refere ao comércio com os demais países, uma das poucas decisões do encontro foi a de aumentar a Tarifa Externa Comum do bloco para uma série de produtos.

Do lado da liberalização, o Mercosul continuou demonstrando dificuldades em alcançar o consenso necessário para a assinatura de acordos comerciais com outros países – fora da América do Sul, só Israel e Egito haviam celebrado acordos com o bloco até então. Nessa última Cúpula, aprovou-se um acordo comercial com a Palestina, e foi tudo. A negociação de um acordo de livre comércio com a UE, que vem se arrastando há anos, foi prejudicada ainda mais pela crise econômica naquela região.

Por fim, quanto à expansão do Mercosul, Equador e Bolívia manifestaram interesse em passarem de Estados associados a membros efetivos do bloco. Não custa lembrar que a Venezuela continua esperando o Congresso paraguaio aprovar a sua entrada, e lá se vão 3 anos.

Mudanças climáticas
A crise teve efeitos, ainda, sobre as negociações para o combate às mudanças climáticas.

Como ocorre todos os anos, as partes signatárias da Convenção Quadro sobre as Mudanças Climáticas da ONU – assinada na Conferência do Rio de 1992 com o objetivo de combater o aquecimento global decorrente do excesso de gases de efeito estufa na atmosfera – realizam uma de suas conferências, conhecidas como COPs (sigla para a expressão em inglês “Conference of Parties”).

Em 2011, foi realizada a COP-17 na cidade de Durban, na África do Sul. Nessa Conferência, decidiu-se adotar um segundo período de compromisso para o Protocolo de Kyoto de 1997 que, caso contrário, acabaria em 2012. Essa fase deverá ir até 2017 ou 2020, prorrogando o acordo que tinha o objetivo de reduzir as emissões em 5,2% em relação às de 1990, mas que se aplicava somente a alguns países industrializados e que já contava com os Estados Unidos como principal exceção. Para completar, Japão, Rússia e Canadá resolveram não participar dessa nova fase, o que enfraquece ainda mais o Protocolo.

Foram feitos anúncios de investimento no Fundo Verde Climático, criado na COP-16, em Cancun, onde se decidiu que os países desenvolvidos deverão contribuir com US$ 100 bilhões até 2020 para que os países em desenvolvimento possam reduzir suas emissões e adaptar-se às mudanças do clima.

E, naquele que foi considerado o maior resultado da Conferência, países desenvolvidos e países em desenvolvimento chegaram a um consenso de que um novo acordo, no qual todos eles assumirão metas obrigatórias de redução de emissões, deverá ser adotado. O problema são as datas para que isso ocorra: o tratado deverá ser assinado até 2015, para entrar em vigor em 2020 – assim os países terão cinco anos para ratificá-lo. Logo, embora no plano retórico Durban tenha trazido avanços, o resultado prático será o de empurrar com a barriga por quase 10 anos a ação efetiva de combate às mudanças climáticas.

O manifestante
Embora todos os acontecimentos acima tenham sido importantes, o ano de 2011 ficará marcado mesmo pelos protestos que se espalharam por todo o planeta. Não é para menos que a revista norte-americana Time, na hora de publicar a sua tradicional capa com a “personalidade do ano”, elegeu “o manifestante”, representado por uma pessoa com o rosto coberto – assim mesmo, anônimo, como de fato o foram os manifestantes em diversos cantos do mundo. Isso porque as revoluções que ocorreram no Oriente Médio e no norte da África e os protestos em outras partes do planeta diferem das revoltas tradicionais. Em sua maioria, elas não se originam na atuação de lideranças conhecidas de oposição, mas de movimentos populares que se auto-organizam.

A chamada Primavera Árabe se iniciou na Tunísia, quando o desempregado Mohamed Bouazizi ateou fogo em seu próprio corpo após ter a banca de legumes que garantia a sua subsistência confiscada pela polícia. Os protestos contra o presidente tunisiano, Zine El-Abidine Ben Ali, se intensificaram com as revelações do Wikileaks – organização não governamental que possui um site onde publica documentos, fotos e informações confidenciais vazadas de governos ou empresas. Entre as diversas informações por este divulgadas, algumas se referiam a negócios escusos da família de Ben Ali, o que ajudou a inflamar ainda mais a população tunisiana. Em 14 de janeiro – menos de um mês depois da auto-imolação de Bouazizi – o ditador Ben Ali renunciou. Em outubro, os tunisianos foram às urnas para participar da primeira eleição livre da história do país e escolher uma Assembleia Constituinte. O vencedor foi o partido islâmico moderado Ennahda, que conseguiu mais de 41% dos votos.

Também não resistiu mais de um mês outra ditadura, a do egípcio Hosni Mubarak, que após 30 anos no poder renunciou depois de apenas 18 dias de protestos, para satisfação da multidão reunida na Praça Tahrir, no centro do Cairo, lugar onde se concentraram as principais manifestações naquele país. Agora, os militares que assumiram o poder com a saída de Mubarak enfrentam protestos para acelerar a transição para um governo civil.

Inspirados pelo êxito das rebeliões na Tunísia e no Egito, os protestos se espalharam pelo mundo árabe.

Na Líbia, o ditador Muamar Kadafi, há 42 anos no poder, foi morto em outubro após uma sangrenta guerra civil, com cerca de 30 mil mortos, na qual a OTAN chegou a intervir. O quarto e último ditador a ser derrubado foi o do Iêmen. Ali Abdullah Saleh sobreviveu a um atentado a bomba no palácio presidencial e ficou três meses afastado do cargo, recuperando-se das queimaduras. Em 23 de novembro, Saleh anunciou seu afastamento pela televisão, terminando um mandato de 35 anos e passando o poder a seu vice, que deverá convocar eleições em três meses. Nesses dois países, o clima político ainda é conturbado, assim como ocorre na Síria e no Bahrein.

As manifestações não se limitaram, contudo, a países pobres ou em desenvolvimento. Na Espanha, o movimento dos “indignados”, iniciado em 15 de maio – o que faz com que este seja também conhecido como 15-M – ganhou força, ocupou a Puerta del Sol, em Madri, e tomou conta de outras praças por todo o país, a fim de exigir o aperfeiçoamento do sistema democrático. Nos Estados Unidos, o movimento “Occupy Wall Street” começou em Nova York e se espalhou para outras cidades norteamericanas, sob o lema de que os 99% da população não estão representados pelo 1% que comanda o país em benefício próprio. Vários países tiveram suas versões locais desses movimentos. A última onda de manifestações atingiu a Rússia, em dezembro, após suspeitas de fraudes nas eleições parlamentares, que levaram a população às ruas para protestar contra o partido de Vladimir Putin.

Na maioria dessas manifestações, tem-se empregado as redes sociais na convocação de protestos e no intercâmbio de informações. Isso é notado, por exemplo, nas páginas do site de relacionamento Facebook, cujos murais são utilizados para organizar manifestações ou para “postar” fotos e vídeos da repressão – fotos e vídeos esses que, feitos por meio de câmeras de telefones celulares pelos próprios manifestantes, alimentam os meios de comunicação tradicionais, amplificando ainda mais o seu efeito.

Claro que os fatores que geraram revoltas – entre eles, a insatisfação da juventude, sem emprego e sem perspectivas, e a vontade de se livrar de regimes opressores, corruptos ou simplesmente incompetentes – fazem parte do mundo real. Também ocorreram no mundo real as manifestações que tomaram as ruas. No entanto, as ferramentas que permitiram que essas pessoas espalhassem a sua mensagem e se organizassem são virtuais. E, graças a elas, essa organização se deu de forma rápida como nunca se viu.

Embora os países árabes ainda vivam momentos de instabilidade política, a derrubada de alguns ditadores que há décadas oprimiam seus povos é uma das gratas surpresas de 2011. O desejo de mudança foi alimentado pelo maior acesso a outras culturas e estilos de vida, reflexo da globalização e da revolução tecnológica. Sem esta última e as ferramentas digitais por ela trazidas, a mudança daqueles regimes seria uma difícil missão. Se, no campo econômico, a globalização tem sido bastante questionada e passa por momentos difíceis, no campo político, graças à Primavera Árabe, a globalização parece ter começado, finalmente, a mostrar que pode nos trazer algo de bom.

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