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Tributação do café exportado precisa ser revista

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

29 de fevereiro de 2012, 19h27

Spacca
Ao longo dos últimos anos, todo o corpo acadêmico e político brasileiro tem tentado, em vão, preparar as bases para uma reforma tributária que garanta competitividade para nossas empresas, equilíbrio fiscal para o federalismo e que não comprometa a concorrência e a livre iniciativa, fatores fundamentais para um desenvolvimento sustentável. A tributação não pode ser orientada por casuísmos. Impõe-se sempre a adoção de um sistema coerente de tributos, mediante o emprego de técnicas que afastem a discriminação, pelo favorecimento de certas empresas ou atividades em detrimento de outras, e fortaleça o sentimento de justiça e de equilíbrio.

E já que a nossa geração falhou em alcançar uma reforma tributária, pois não fomos capazes de criar os melhores meios ou técnicas fiscais, que esta se faça ao menos por setores da economia, como tem sido o exemplo de muitos países. Mediante os chamados “estudos de setores”, a incidência tributária vê-se compreendida e graduada conforme as situações específicas. Há tributos nos quais esse tipo de estudo poderia ser muito útil, como é o caso do PIS e COFINS não cumulativo.

A reforma que implicou a passagem do modelo cumulativo do PIS/COFINS (de 3,65%) para aquele de não cumulatividade (com alíquota global de 9,25%), ao tempo da mudança, foi justificada unicamente pela atribuição de créditos quando das aquisições de bens ou serviços, nos termos do artigo 3º das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 (regime geral), dentro outros dispositivos. O reconhecimento dos créditos acumulados e a respectiva devolução aos partícipes da cadeia, portanto, não é um “favor fiscal”, mas um direito constitucional, ao qual a União não pode criar resistência ou usar de artifícios para impedir seu aproveitamento.

Em alguns casos, porém, a devolução direta (como crédito ordinário) não é possível. É o que ocorre com mercadorias produzidas por pessoas físicas ou cooperativas, cujas aquisições pelas indústrias e exportadores não geram créditos. Para resolver esse problema, na cadeia de alguns produtos, como milho, soja, café, leite, confere-se um “crédito presumido”, apurado conforme a quantidade de intervenientes. Em vista dessas funções, seu emprego não pode servir de meio discriminatório ou ser empregado sem atenção aos propósitos da não cumulatividade. Há um caso que ilustra bem essa necessidade: as distorções verificadas no setor de café.

Está para ser votado no Senado novo regime do PIS e COFINS (artigos 4º a 7º da MP 545/2011), cujas consequências são muito graves, tanto para consumidores, com aumento mínimo de preços na ordem de 3%, a agravar ainda mais a onda inflacionária sobre alimentos, quanto para as exportações, que já amargou redução de 25% em janeiro, além da redução de preços e de produção para os produtores rurais. Este é o resultado da aplicação equivocada de critérios jurídicos de tributação e orientados segundo interesses episódicos, sem uma compreensão abrangente do setor.

O regime especial de crédito presumido surgiu, assim, para permitir uma solução a essa dificuldade para as indústrias de produtos alimentícios de origem vegetal e animal por meio do artigo 3, parágrafos 5º e 6º, da Lei 10.833/2003, dispositivos que foram revogados pela Lei 10.925/2004, a qual dispôs acerca do regime em questão em seu artigo 8º, cujo caput e parágrafo primeiro ostentam a seguinte redação:

“Artigo 8º As pessoas jurídicas, inclusive cooperativas, que produzam mercadorias de origem animal ou vegetal, classificadas nos capítulos 2, 3, exceto os produtos vivos desse capítulo, e 4, 8 a 12, 15, 16 e 23, e nos códigos 03.02, 03.03, 03.04, 03.05, 0504.00, 0701.90.00, 0702.00.00, 0706.10.00, 07.08, 0709.90, 07.10, 07.12 a 07.14, exceto os códigos 0713.33.19, 0713.33.29 e 0713.33.99, 1701.11.00, 1701.99.00, 1702.90.00, 18.01, 18.03, 1804.00.00, 1805.00.00, 20.09, 2101.11.10 e 2209.00.00, todos da NCM, destinadas à alimentação humana ou animal, poderão deduzir da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins, devidas em cada período de apuração, crédito presumido, calculado sobre o valor dos bens referidos no inciso II do caput do art. 3o das Leis nos 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, adquiridos de pessoa física ou recebidos de cooperado pessoa física. (Redação dada pela Lei nº 11.051, de 2004)(Vigência) (Vide Lei nº 12.058, de 2009)(Vide Lei nº 12.350, de 2010).”

A finalidade do artigo 8º da Lei 10.925/2004 sempre foi a de garantir ao adquirente o cumprimento do princípio constitucional da não cumulatividade e a imunidade das exportações, ao assegurar o direito de exportar produtos sem “acúmulo de créditos” de PIS/COFINS, ao permitir o aproveitamento dos créditos acumulados ao longo da cadeia produtiva naquelas situações onde a técnica não consegue atuar (compras de produtores pessoas físicas ou de cooperativas). E tudo vinha funcionando perfeitamente.

A inteligência do regime de crédito presumido do PIS e da COFINS está em permitir a exclusão dos acúmulos de tributação em cascata sobre todos os bens ou serviços consumidos nas etapas de custos e somados sobre a circulação do produto unicamente pela impossibilidade técnica da “tomada de crédito”, por não se tratar (o vendedor da mercadoria), de pessoa jurídica. É mera decorrência da técnica não cumulativa dos tributos indiretos.

No setor do café, esse mecanismo sempre funcionou muito bem, guardadas algumas ressalvas. Trata-se de segmento de excessiva informalidade, o que já não pode prosperar. Urge que sejam empregados mecanismos de controle das operações. Para tanto, pode-se utilizar certificação digital (como EFD Pis/Cofins) ou notas fiscais eletrônicas (SPED Fiscal e Contábil, NF eletrônica e aquivos xml), como forma de evitar casos de sonegação, como já identificados no passado, a exemplo da chamada “operação broca”. Inibir a informalidade e garantir o controle sanitário das operações é um dever do Estado e que não pode ser prejudicado por interesses cartoriais.

De qualquer modo, faltava o aprimoramento do crédito presumido do artigo 8º da Lei 10.925/2004, o que deveria vir acompanhado dos seguintes instrumentos: 1) possibilidade de compensação ou de devolução integral dos créditos acumulados, inclusive os presumidos; 2) reconhecimento dos créditos presumidos nas aquisições para industrialização e venda no mercado interno; 3) aplicação do ressarcimento nas exportações por tradings e 4) formalização dos intervenientes ao longo da cadeia.

Para esse propósito, ainda que de forma parcial, foram introduzidos os artigos 5º e 6º da MP 545/2011. Deve-se celebrar o reconhecimento dos créditos presumidos na industrialização no mercado interno e o direito ao ressarcimento. Contudo, inusitadamente, como solução a duvidoso “equilíbrio” das inexistentes perdas de arrecadação, galgaram a redução de 100% para 10% do crédito presumido nas exportações, o que lhes serve para reduzir a capacidade competitiva das principais indústrias de café do país e responsáveis por mais de 60% das suas exportações.

Duas graves consequências imediatas decorrem dessa desnecessária discriminação: (i) no mercado interno, o aumento de preço linear, combinado entre as empresas do setor de café à base de 2,90%; e (ii) no mercado externo, dificuldades de exportação (reduzidas em 25%), na medida em que os preços no exterior não podem ser aumentados, por se tratar de cotação em bolsa (commodities) e o câmbio não favorecer.

A proposta sustenta-se na pífia diferenciação entre “café verde” e aquelas formas torrado e moído ou solúvel, estes, favorecidos com créditos presumidos de 80%. Em verdade, a diferenciação de percentuais do crédito presumido nas exportações, entre 10% e 80%, respectivamente, só servirá para prejudicar a exportação daquilo que é mais relevante para o Brasil (café verde).

Nada mais rudimentar, em termos tributários, mas também na técnica cafeeira, do que a distinção entre esses tipos. O “café verde” não é o “grão” colhido do pé de café e ensacado. Esse termo é adotado para o café que não foi torrado e moído, o que não quer dizer que não tenha passado por uma industrialização. As atividades de separar por densidade dos grãos, beneficiar, preparar e misturar tipos de café (blend), são exemplos, o qual gera valor agregado similar ao do “Café Torrado e Moído” ou do “Café Instantâneo”, apenas agregados de outros insumos que os diferenciam, tais como embalagens, energia elétrica, dentre outros.

O Brasil é o principal produtor mundial de “café verde”, saiu de 16% em 2001 para mais de 32% da produção mundial de café na atualidade, o que mostra um crescimento de mais 100% a partir de 2002, quando entrou em vigor o regime não cumulativo e do crédito presumido. Basta lembrar que o 2º e 3º lugar mundiais representam apenas algo em torno de 13% e 11% da produção. Com a simples entrada em vigor dessa medida, as exportações de café sofreram uma queda de 25,1%, comparando-se com janeiro de 2011.

Para os fins de devolução do crédito acumulado de PIS e COFINS, sob a forma de crédito presumido, é um engodo a diferenciação entre “café verde” e aqueles ditos “processados”, na forma de torrados e moídos ou mesmo do café solúvel. Na estrutura do mercado internacional de “café verde” persiste uma concorrência imperfeita, pois a oferta mundial realiza-se por poucos países produtores (Brasil, Vietnã, Colômbia, Indonésia e México), com concentração da demanda por outros países, como Alemanha (20%), EUA (18%), Itália (11%) e Japão (9%), os quais apresentam fortes resistências à entrada de café na forma processada.

Esses graves equívocos trarão consequências desastrosas para setor cafeeiro, caso sejam aprovados os dispositivos na forma em que se encontram. Há, porém, oportunidade para correção do rumo que se quer imprimir ao café: recuperar a isonomia na exportação e assegurar a condição de “cesta básica” nas vendas no mercado interno.

De fato, no mercado interno, a solução que não oneraria o consumidor com aumento de preços ou impacto na inflação seria permitir inclusão do café no regime da “cesta básica”, à semelhança do que temos para farinha, leite, trigo e outros, todos com não incidência do PIS e da COFINS. Essa desoneração não traria qualquer impacto à arrecadação, devido ao tratamento da suspensão dos tributos já em vigor. A desoneração do café como produto da cesta básica seria uma forma de garantir a redução da tributação sobre os mais pobres e, com isso, praticar uma evidente justiça fiscal.

Seria profundamente temerário pretender, em período de crise econômica mundial, como o atual, com câmbio valorizado, aumento inflacionário e crescente ampliação do protecionismo de países importadores, pretender criar embaraço para algo que se demonstra um êxito obtido com a política de devolução dos créditos presumidos das contribuições ao PIS e COFINS, a título de pretensa substituição das exportações pelo café processado (torrado e moído ou solúvel), cuja participação econômica não chega sequer a 3% do volume exportado de “café verde”.

O aperfeiçoamento do modelo atual de incidência do PIS/PASEP ou da COFINS sobre as operações no mercado interno e na exportação do café poderia ser equivalente ao que se passou com a carne, cítricos ou com a soja, sem discriminação. O crédito presumido pode ser atribuído para as indústrias de café, em todas as suas formas, no percentual de 80%, com retificação do percentual de 10% no caso de exportação do “café verde” para aquele percentual de 80%, nas exportações. Não há justificativa para a diferenciação criada, de forma completamente aleatória.

Como consta do artigo 150, II (não discriminação tributária), é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Ora, se a finalidade da norma é autorizar a exclusão dos “créditos acumulados”, é necessário, adequado e razoável que tal norma vincule o crédito presumido de forma idêntica, seja qual for o destino. Pessoas jurídicas que exportem “café verde” (i) devem ter o mesmo tratamento dirigido às pessoas jurídicas que exportam café torrado e moído e café instantâneo (ii), uma vez que são iguais em face do referencial adotado – aquisição de produto em cuja cadeia há acúmulo de créditos –, a justificar a concessão do crédito presumido, de modo a permitir a observância da não cumulatividade e da devolução de créditos na exportação, a atender o princípio do destino.

A concessão de crédito presumido de PIS/COFINS, porquanto correspondente a instrumento que possibilita a realização da não cumulatividade e, em caso de produtos destinados a exportação, da devolução da tributação incidente ao longo da cadeia, a fim de se promover a desoneração constitucionalmente determinada, encontra-se perfeitamente compatível com o regime do GATT e das decisões da OMC vigentes, como sempre esteve no passado.

Em conclusão, a MP 545/2011 estabeleceu dois referenciais, em relação aos quais deveria ser feito o juízo de igualdade. Um refere-se ao produto – “café verde” – e outro à atividade (“elaboração dos produtos classificados nos códigos 0901.2 e 2101.1”) realizada pela pessoa jurídica que adquire o produto. A isonomia entre os regimes corresponde à melhor forma para atender aos interesses nacionais no presente setor. Diante disso, na falta de critério coerente de diferenciação, além de discriminatória, a Medida Provisória 545/2011, ao reduzir a 10% o crédito presumido na exportação do “café verde”, e outorgar os 80% para o café processado, na forma de torrado e moído ou solúvel, promove grave quebra da neutralidade tributária, tanto no plano interno quanto no mercado internacional de café, como demonstrado.

Portanto, não há critério que justifique manter diferença de regime do crédito presumido entre o chamado “café verde”, que passa por diversas etapas de industrialização (i), daquele que se aplica para o cálculo do PIS/COFINS sobre Venda de Café Torrado e Moído e Café Instantâneo destinado à exportação (ii), assim como do café vendido no mercado interno (iii). Não restam dúvidas de que o discrimen relativo à atividade (café torrado e moído ante aquele do chamado “café verde”; ou mesmo entre vendas para mercado interno e mercado externo) ou aos demais produtos agrícolas (trigo, soja etc) não se justifica em face do princípio da neutralidade concorrencial e da isonomia, haja vista o motivo adotado para sua concessão.

Na ausência de justificativa para diferenciação do crédito presumido de PIS/COFINS, conferida à aquisição de pessoas físicas ou cooperativas de pessoas físicas, qualquer tratamento divergente nos percentuais esbarra em inconstitucionalidade, ao afetar a isonomia tributária do artigo 150, II, da Constituição, por não se tratar de benefício fiscal, mas de típico caso de cumprimento do princípio de não cumulatividade daquelas contribuições, o que não autoriza a diferença de percentuais do crédito presumido nas exportações, entre 10% e 80%. E isso sem falar dos prejuízos às regras e princípios que garantem a livre iniciativa e concorrência.

Comprova-se, assim, como medidas tópicas, desprovidas da compreensão integral do setor sobre o qual recaem seus efeitos, podem gerar efeitos danosos aos seus partícipes, mas principalmente à economia nacional.

A exigência de uma reforma tributária consistente continua pendente. Por isso, ainda que não seja mediante reforma constitucional ampla, que venha uma reforma por análise de setores ou por conjuntos normativos bem marcados, como a tributação da renda, do consumo ou dos serviços. Seguir com o modelo caótico e assistemático que hoje predomina só servirá para impedir o crescimento da nossa capacidade produtiva e inovadora, além de criar obstáculos à concorrência e à melhoria nas remunerações dos empregos. E se queremos ser um país de classe média, com erradicação da miséria, pleno emprego e melhoria global da qualidade de vida da nossa população, urge que se verifique o fortalecimento das fontes de produção de renda e a expansão da balança comercial, mediante o aprimoramento do modelo tributário e financeiro.

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