Embargos Culturais

O Alienista faz queixa contra evidência científica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

26 de fevereiro de 2012, 9h05

O Alienista é um conto de Machado de Assis publicado pela primeira vez em Papéis Avulsos, em 1882. Trata-se de um de seus textos mais conhecidos. Um pouco extenso para conto, algo curto para novela, O Alienista foge de padrões mais comuns. A estrutura narrativa se desdobra em circunstâncias inesperadas, cativando o leitor, que é guiado para mundo imaginário, surpreendentemente plausível, real; no entanto, absurdamente quimérico, fantasioso, inexistente. Trata-se da estória do Dr. Simão Bacamarte, e do estudo da loucura que ele empreendeu em algum lugar fictício, e bem machadiano: Itaguaí.

O Alienista alcança temas de psicopatologia forense (dado que a loucura é o eixo da narrativa), de tributação (a criação do asilo de loucos exigiria recursos), da relação entre política e direito (a casa dos alienados decorria da autoridade e do prestígio de seu diretor, o Dr. Simão Bacamarte, e a Revolta dos Canjicas é da assertiva prova incontestável).

Porém, a meu ver, O Alienista é texto que especialmente moteja da ciência, do positivismo, das verdades epistemológicas, dos paradigmas canonizados. Nesse sentido, é libelo que investe contra saberes dominantes, que desloca no tempo e no espaço. É crítica à fragilidade das instâncias da vida, e da fragilidade dos próprios direitos.

Começo indicando os personagens principais.

O Dr. Simão Bacamarte é o epicentro da sátira. Cientista aclamado em Portugal, ovacionado nas maiores universidades do século XVIII, correspondente dos grandes sábios, dileto do Rei e de toda a Corte Portuguesa; simboliza o sábio que só presta contas para a ciência, da qual se diz devoto e fiel seguidor. Sigo com a apresentação de Machado de Assis:

“As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia”.(MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 15)

Por alienista designava-se o médico que se dedicava ao cuidado com os alienados, com os doentes mentais. A expressão é recorrente, entre outros, em Lima Barreto, que fora internado duas vezes por conta de alcoolismo. Nas memórias que anotou em sua segunda internação, por exemplo, Lima Barreto lembra-se que “(…) outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi o alienista” (LIMA BARRETO, 2004, p. 29). Foi Foucault quem problematizou o papel do alienista na história da psiquiatria:

Sem dúvida, um dos primeiros cuidados dos alienistas do século XIX foi o de fazer-se reconhecer como ‘especialistas’. Mas, especialistas de quê? Desta fauna estranha que, através de seus sintomas, se distingue dos outros doentes? Não, especialistas sobretudo de um certo perigo geral que corre através do corpo social inteiro, ameaçando todas as coisas e todo mundo, já que ninguém está livre da loucura nem da ameaça de um louco. O alienista foi antes de tudo o encarregado de um perigo; ele se postou como o sentinela de uma ordem que é a sociedade em seu conjunto”. (FOUCAULT, 2002, p. 325).

Dona Evarista de Moraes é a esposa do Dr. Bacamarte; viúva, orçava 25 anos, não era bonita nem simpática. Bacamarte apostou nas qualidades fisiológicas e anatômicas da amada que:

“(…) digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, – únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte”. (MACHADO DE ASSIS, cit., loc.cit.).

Porfírio Caetano das Neves, apelidado de Canjica, é o barbeiro, que liderará a rebelião contra o Dr. Simão Bacamarte. O motim levou o nome do barbeiro, e ao movimento refiro-me como a Revolta dos Canjicas. À época colonial as funções desempenhadas por um barbeiro transcendiam ao mero corte de cabelos, barba e bigode; o barbeiro eventualmente exercia funções médicas, paramédicas e odontológicas.

Crispim Soares é o boticário, o farmacêutico, dir-se-ia hoje em dia, manipulava receitas, prescrevia unguentos, remédios e prestava assistência médica em emergências. O personagem é aliado de Bacamarte; com o triunfo da Revolta dos Canjicas, mudou de lado; depois, reconciliou-se com o alienista; é o nosso Talleyrand.

O enredo se desdobra em XIII capítulos: I) De como Itaguaí ganhou uma casa de orates; II) Torrentes de loucos; III) Deus sabe o que faz; IV) Uma teoria nova; V) O terror; VI) A rebelião; VII) O inesperado; VIII) As angústias do boticário; IX) Dois lindos casos; X) A restauração; XI) O assombro de Itaguaí; XII) O final do § 4º e XIII) Plus ultra!

Depois de apresentar o Dr. Bacamarte e Dona Evarista, Machado de Assis descreve como a cidade de Itaguaí conheceu o asilo de loucos. Em seguida, o narrador nos dá conta de como o Dr. Bacamarte lotou o hospital, dado que a loucura era generalizada, estava em todos os lugares. Dona Evarista viajou para o Rio de Janeiro. Bacamarte amplia o território da loucura e persiste prendendo todo mundo. A cidade dá os primeiros sinais de insatisfação. Instala-se regime de Terror, que remete a memória passiva do leitor para o interregno jacobino da Revolução Francesa, quando pontificaram Marat, Robespierre e Danton. O hospital transforma-se em cárcere privado. Multiplicam-se as internações.

Estourou uma rebelião, a Revolta dos Canjicas, por conta do nome de seu líder, o barbeiro Porfírio. Tomaram a Câmara. Bacamarte não se intimidou. Recebeu Porfírio. Para assombro do alienista, ensaiou-se aproximação, insinuou-se acordo. E Bacamarte desconfiou que o Canjica precisaria ser estudado. A Força Pública pôs fim aos motins de rua. Destituiu-se o Canjica. Bacamarte recebeu mais apoio. Libertou todos os que até então estavam enclausurados. Bacamarte reviu suas teses. Começaram a levar os sadios para o asilo. Os sãos foram curados (sic). Bacamarte se fechou sozinho no asilo, e lá morre depois de algum tempo.

Machado de Assis principia O Alienista investigando como Itaguaí teria conhecido uma Casa de Orates, isto é, uma Casa de Loucos, que o texto revelará ser comandada por alguém não menos louco dos que os imputava doentes, Simão Bacamarte que, segundo Machado de Assis, tinha a ciência por emprego único, e teria Itaguaí por seu universo. Depois de ter escolhido Dona Evarista por esposa, fazendo-a por razões higiênicas e eugênicas, Bacamarte equivocou-se, porquanto “D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 15).

É a alavanca para Machado de Assis motejar do dogmatismo da ciência, especialmente porque:

A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, – explicável, mas inqualificável, – devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, – o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.” (MACHADO DE ASSIS, cit. p. 15 e 16)


Bacamarte, o reputado médico, segue a narração, pediu licença às autoridades municipais, para que pudesse tratar de todos os degenerados, postulando também recursos. Conta-nos Machado de Assis que a ideia excitara a curiosidade de todos. Alguns inicialmente duvidaram da própria sanidade do médico, e houve quem sugerisse que Dona Evarista recomendasse que Bacamarte fizesse um passeio ao Rio de Janeiro, para tomar novos ares. Bacamarte sustentou a necessidade da construção do prédio que imaginava, e o fez com tal veemência que a Câmara de pronto deferiu-lhe o pedido. Restava a questão da fonte orçamentária, isto é, de onde viriam os recursos que seriam destinados ao sanatório; é que Itaguaí conhecia modelo tributário opressivo, de modo que seria difícil se encontrar um fato gerador ou base imponível que fossem adequados. A questão ardentemente debatida no legislativo de Itaguaí:

“A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 17.)”

Bacamarte deu início à obra e no frontispício da Casa de Saúde mental fez gravar frase atribuída ao Profeta Maomé, que teria respeitado aos loucos, dado que Alá deles retirara o juízo, exatamente para que não pecassem. E ainda outra vez adiantou-se a Foucault, que afirmou textualmente que “a sociedade árabe continua tolerante com os loucos” (Foucault, cit., p. 265). Porém, Bacamarte atribuiu a citação do Profeta ao Papa Benedito VIII, na expectativa de não desagradar às autoridades da Igreja Católica. Ganhou apoio incondicional dos clérigos.

Chamou-se o sanatório de Casa Verde em virtude das cores das janelas, e que assim pela primeira vez eram pintadas na cidade imaginária onde se passa o enredo. A inauguração dera-se com todos os festejos, frequentados por gente de todos os cantos, e até do Rio de Janeiro. Recolheram-se os primeiros doentes. De todos os confins se extraditavam loucos para Itaguaí; e Machado de Assis os classifica, indicando furiosos, mansos, monomaníacos, bem como “toda a família dos deserdados de espírito”. Entre os internos, “(…) um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano” ( MACHADO DE ASSIS, cit., p.19).

Na tipologia de Bacamarte havia também loucos por amor, três ou quatro. Havia ainda maníacos, a exemplo de interno que repetia que “(…) Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 20). Havia escrivão que se dizia mordomo do rei; outro se fazia de boiadeiro de Minas Gerais, e que passava o tempo distribuindo boiadas imaginárias. Entre os maníacos teológicos, havia um tal de João de Deus, que o narrador nos fala que se fazia passar por Deus João…

Bacamarte redefiniu o modelo de administração do estabelecimento. Redigiu um regimento. Irá se dedicar integralmente à tarefa de curar, e de estudar. Domínio e investigação científica formatam o poder asilar, tema de aula dada por Foucault no College de France, em 7 de novembro de 1973 (FOUCAULT, 2006, p. 3 e ss.). Simão Bacamarte investiu seu tempo em taxonomias:

“Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência”. (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 21-22 )

Bacamarte conviveu também com sintomas de melancolia da própria esposa que, embora não se queixasse, mostrava-se cada dia mais triste, pouco comendo, emagrecendo com rapidez. Certa noite, Dona Evarista tomou coragem e disse ao alienista que estava tão viúva quanto se encontrava no fim do primeiro casamento. Bacamarte então sugeriu que Evarista visitasse o Rio de Janeiro, sonho da esposa, e que Machado de Assis retoricamente identifica como o sonho do hebreu cativo. Evarista, no entanto, esboçou recusa à proposta do esposo estudioso e ainda apaixonado. Evarista invocou que não dispunham de recursos, em face do que obtemperou Bacamarte que estavam ganhando muito dinheiro. A viagem se realizou. Bacamarte mergulhou com devoção nos estudos. Em conversa com o boticário da vila, Crispim Soares, revelou o que lhe passava em mente:

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas.” (MACHADO DE ASSIS, cit. p. 26 )

O fino sarcasmo machadiano então conduz o alienista ao vigário, Lopes, que embora não entendendo as novas teorias que ruminavam na cabeça de Bacamarte, aparentemente as aceitou, aproximando-se ciência e teologia; e ainda, o alienista filosofava, afirmando que “(…) a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 28). Segundo o narrador, “Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução”.

Sobreveio o terror. Recolheu-se à Casa Verde um dos cidadãos mais queridos de Itaguaí, Costa. A patologia: distribuía e emprestava sem cobrar juros toda uma herança que recebera. Ficara pobre, e ainda assim não ralhava com seus devedores. Em seguida, para alarme na cidade, Bacamarte trancou na Casa Verde uma senhora reputada como dona de muito juízo. Recolheu-se logo mais o Matias, que pela manhã tinha o costume de admirar, do jardim, uma casa maravilhosa que construíra em Itaguaí.

A cidade começou a cogitar de uma série de teorias, para justificar a sanha de Bacamarte. Um médico sem clínica afirmara que a Casa Verde era cárcere privado; outros aduziam que o alienista era vingativo, argentário; houve quem acreditasse que era um castigo de Deus. Dona Evarista voltou do Rio de Janeiro, com a comitiva que a acompanhou. E continua Machado de Assis, insinuando a loucura da infeliz esposa de Bacamarte:

“O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha. D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes – porque o eminente Bacamarte confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo – D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada, que era a coisa mais bela que podia haver no mundo”. (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 34-35)


Dona Evarista, elevada à condição de musa da ciência, passou a ser a esperança da cidade. Reconduziria o marido ao bom juízo. No banquete em homenagem à turista que voltava, um moço improvisou discurso oco. Seu nome é Martim Brito. Sigo com o discurso, como narrado por Machado de Assis:

Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista” (MACHADO DE ASSIS, cit. p. 36-37).

Bacamarte suspeitou que o orador inflamado sofria de um caso de lesão cerebral, que se propunha a estudar. O rapaz foi recolhido na Casa Verde. Alguns acharam que o ciúme motivara o alienista. O volume de internações acelerou a impressão do terror; o narrador observou que emigravam aqueles que podiam; relata-se também a captura de um fugitivo, chamado de Gil Bernardes, “tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua” (cit., p. 38). Sentiu-se a proximidade de uma rebelião. Pensou-se em se requerer a captura e deportação do próprio Bacamarte. O barbeiro liderou o motim, e com ele 30 pessoas representaram à Câmara em desfavor do alienista. O legislativo recusou processar o pedido, invocando que não se poderia menoscabar a ciência por interferência administrativa; e muito menos por movimentos de rua.

Ante a negativa o barbeiro argumentou que se gastava dinheiro público com o alienista ganancioso. A Câmara retrucou que o médico havia enviado ofício, renunciando a qualquer forma de pagamento, por conta da importância das experiências de alto valor psicológico que realizava. O barbeiro insistia, e nominava a Casa Verde de Bastilha da Razão Humana. A Câmara começou a mudar de idéia, reflexo da sonoridade da equiparação da Casa verde com a célebre prisão francesa. Indagou-se, talvez pela primeira vez oficialmente, se o alienista não seria ele mesmo um alienado. A luta chegou às ruas, e o movimento foi chamado de a Revolta dos Canjicas, dado o apelido de seu líder, o barbeiro, na intimidade conhecido por Canjica. Aos gritos de morte ao Dr. Bacamarte, a turba rumou para o sanatório.

O Dr. Bacamarte os recebeu, não sem antes com muita calma organizar na estante o livro que estava estudando. Ainda com bastante paciência dirigiu-se aos rebeldes, indagando o que queriam, exatamente. O barbeiro explicou que pretendiam a demolição do sanatório. E ainda chamou o Dr. Bacamarte de tirano. Ao que respondeu o médico, na prosa de Machado de Assis:

“ Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 44)

Bacamarte desprezou os rebeldes. O barbeiro percebeu que se demolisse a Casa Verde seria aclamado herói da cidade; seria o novo líder municipal. A destruição do alienista emulava seu projeto político. O narrador observa que o Canjica pretendia alçar a condição de senhor de Itaguaí. Com retórica retumbante, o barbeiro insistia com seus comandados:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.” ( MACHADO DE ASSIS, cit. p. 45)

A força pública seguiu para enfrentar os amotinados. Heroicamente, o Canjica ofereceu seu cadáver, mas não sua honra; apresentou-se como mártir. O comandante da força pública rendeu-se ao barbeiro – líder, que se apresentou à Câmara, que sem resistência aceitou a nova situação. Canjica dirigiu-se ao povo da janela; O revolucionário tomava a si o título de "Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo". Seguiram inúmeras proclamações. Uma vida nova se desdobrava. Segue o Manifesto:

“Itaguaienses! Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.” ( MACHADO DE ASSIS, cit. p. 47)

No auge da rebelião o alienista recolheu mais gente na Casa Verde, não obstante se esperasse que muito em breve o cárcere fosse destruído e o médico destituído. Decretou-se feriado. À Câmara passou a se chamar de Palácio do Governo. Receoso de intimar Bacamarte, e não ser atendido, o Canjica dirigiu-se ao alienista, acompanhado por ajudantes-de-ordens. O boticário, Crispim Soares, até então aliado do médico, temia a prisão do amigo, que seria seguida provavelmente do próprio encarceramento. Adesista de última hora, o boticário, dirigiu-se ao barbeiro, para protestar solidariedade.

O narrador encanta-nos com a narrativa do encontro do alienista com o barbeiro. Aquele primeiro aceitou a derrota, porém solicitou humildemente que não fosse constrangido a assistir a destruição de seu laboratório. O barbeiro mostrou-se calmo, assombrando ao médico, a quem disse que a questão era científica, e que carecia de ser tratada de modo civilizado. E para espanto de Bacamarte, argumentava o barbeiro:

O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode,não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamos-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 51)

Uma aliança se articulava. Será? Ao obter resposta de quantos morreram ou se feriram no motim, Bacamarte começou a desconfiar da loucura do barbeiro, que insistia e repetia os números que apresentava. Avizinhava-se a restauração, ou a contra-revolução. Bacamarte trancafiou na Casa Verde cerca de 50 rebeldes. Falava-se que o barbeiro se vendera ao alienista. Buscando retomar o terreno perdido o barbeiro baixou dois decretos. Determinou o fechamento da Casa Verde e o desterro do alienista. O outro barbeiro da cidade, João Pina, o “inimigo de navalha” do Canjica, liderou a turba contra o rival, e tomou o poder. Forças enviadas pelo Vice-Rei chegaram a Itaguaí, apoiaram Bacamarte, que de pronto determinou o recolhimento do Canjica e dos principais rebeldes, taxando-os de mentecaptos. Bacamarte alcançava então o auge de sua força e poder. Capturou-se até Crispim Soares, por conta do viracasaquismo. Seguiu-se a violência da contra-revolução, marcada pelo trancamento de muita gente; de todos se suspeitava da loucura. Machado de Assis descreve alguns tipos patológicos:

“Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso a mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 55)


A cidade foi então surpreendida com a notícia de que Bacamarte internara Evarista, a própria esposa. E o alienista justificava:

Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras.” ( MACHADO DE ASSIS, cit., p.)

E para assombro total da cidade anunciou-se que Bacamarte libertaria todos os loucos internados na Casa Verde. O ofício enviado pelo alienista apresentava estatísticas interessantíssimas; e motivos não menos impressionantes. Prossegue o narrador:

“De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo: – 1o,: que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4o, que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5°, que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º, que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.” ( MACHADO DE ASSIS, cit., p. 57-58)

No entanto, o parágrafo 4º do ofício tinha algo de muito intrigante. Explico-me melhor. É que os que estivessem no gozo de liberdade e, portanto, na posse das faculdades mentais, deveriam ser recolhidos na Casa Verde. Uma nova teoria psicológica deveria ser estudada. A Câmara, no entanto, ainda traumatizada pelos eventos recentes, pensou em autorização provisória, regulamentando-se o parágrafo 4º do ofício de Bacamarte. Recomeçaram as capturas, embora com intensidade mais branda. Machado de Assis ironiza, critica a burocracia, e engendra no enredo passagem que nos dá conta de um advogado, Salustiano, que conseguindo comprovar em juízo a veracidade de um testamento falsificado, fora levado à Casa Verde. O cliente livre da acusação, o advogado no manicômio… Itaguaí, surpresa com o novo estado de coisas, se movimentava outra vez. Alguns notáveis dirigiram-se ao barbeiro Porfírio, então em liberdade, e fizeram convite para uma nova revolução. Porém, havia notícias de curas, que se multiplicavam. Ao fim de cinco meses todos os doentes da Casa Verde pareciam curados.

Bacamarte alcançou conclusão inesperada. Os loucos que curava eram tão desequilibrados quanto aos demais doentes que soltara. Alegria e depressão tomaram conta do alienista. Acreditou que era sadio; porém, em seguida, duvidou de si mesmo. Interrogou amigos. Pediu sinceridade. Insistiram que Bacamarte era acima de tudo modesto. O alienista resistiu ao veredicto, que confirmava sua sanidade. Insistia em questões científicas, alertava que seu caso era novo, que reunia em si teoria e prática. Evarista, em lágrimas, pedia que Bacamarte revisse a situação. O alienista fechou-se na Casa Verde. Passou a estudar a si mesmo. Lá teria morrido 17 meses depois. E fecha Machado de Assis:

“Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.” (MACHADO DE ASSIS, cit., p. 69).

Ironicamente, Machado de Assis questionou de nossa sanidade, e de nossa posição num mundo de loucos. E fez política. E alertou para a condição humana, vítima de perene insegurança, fragilizada por direitos indefinidos. O texto literário aqui investigado promove simbólica queixa à evidência científica, calcada em episteme cujo paradigma reflete os atuais contornos da metodologia jurídica, e que deve ser mudada, antes que seja ridicularizada. Nesse sentido, como fio condutor de indagações e de aporias, é que o texto de Machado de Assis joga luzes na reflexão jusfilosófica, amalgamando direito e literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FOUCAULT, Michel. Os Anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002c.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O Alienista. São Paulo: FTD, 1994. Edição Escolar. Livro do Professor. Introdução de Aguinaldo José Gonçalves.

MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Vol. IV. São Paulo: Cultrix, 1977.

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