Pena Máxima

A pena máxima sacia um sentimento de vingança

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24 de fevereiro de 2012, 8h48

Venho, hoje, não questionar, porque não me é dado fazer isso, mas tentar compreender uma questão cada vez mais aguda no Direito Penal, diria, na vida de todos nós, em nossos mais frugais momento, que nos põe à prova desde que nos organizamos como sociedades civilizadas, como famílias civilizadas, como empresa. Afinal, como impor o castigo aos que descumpriram as regras impostas pela sociedade?

Digressões à parte, a primeira constatação que faço é que jamais se terá uma resposta satisfatória para essa pergunta. Sempre haverá os que vão entender que a pena – qualquer que seja – será abusiva; sempre haverá os que vão entender que a pena – qualquer que seja ela, inclusive a pena de morte – será tímida. O tamanho da punição de um pai ao filho será sempre dependente não da gravidade da falta que ele cometeu, mas do ressentimento causado pelo lado mais fraco da relação, o filho.

A imposição da pena é uma espécie de saciedade de um sentimento de vingança, autorizado pelo erro de quem se desviou da norma, de quem desrespeitou a regra, de quem a ignorou. Há um apelo retributivo que vai além da mera exposição do erro ou de suas conseqüências; nas sociedades humanas, existe uma sede pela pele seca do que errou e nisso já fomos quase literais.

Temos um fortíssimo apelo às penas sangrentas, desde há muitos séculos. São muitos os relatos de multidões que acompanhavam fascinadas as execuções dos criminosos. Nesse aspecto, é indispensável a leitura do maravilhoso A História dos Carrascos de Paris: A Dinastia dos Sanson, de Bernard Lecherbonnier, que narra com uma crueza quase ficcional a histeria popular diante do massacre que se fazia nos Anos do Terror. Em uma palavra, queremos sangue. Quanto maior nosso ressentimento, mais sangue.

Se alguém se desse a fazer uma pesquisa de opinião pública nesses dias de muitas ocorrências policiais-judiciais acerca da aceitabilidade da pena de morte, temo que nos sentiríamos emudecidos diante de uma aceitação que seria bem maior do que suporia nosso mais terrificante pesadelo.

Caetano Veloso, no deprimido Haiti, desesperava-se diante do silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina, 111 presos indefesos…, detectando com a alma do poeta popular, a satisfação meio que generalizada pela morte brutal e estúpida daquelas pessoas no conhecido Massacre do Carandiru. Queremos sempre todas as penas do mundo. Desde que seja para o vizinho, é claro.

No nosso sistema legislativo brasileiro, o Código Civil, de forma perigosa e irresponsável mesmo permite aos pais castigarem seus filhos, exigindo-lhes apenas uma fluida e fugidia moderação. Está no artigo 1638, no seu inciso II; primeiro, permite-se a utilização do castigo físico, posteriormente apenas é que se saberá por critérios inteiramente arbitrários se os limites da moderação foram ou não foram superados. A depender do ressentimento causado pela falta praticada, o conceito de moderação se agudiza.

No Código Penal, nossa lei repressora, as coisas estão mal paradas e mal ajambradas, principalmente no que diz respeito a essa tarefa de sintetizar o tamanho e o alcance do castigo a ser infligido na pessoa condenada. A cada tipo penal, o legislador fixou um intervalo, estabelecido entre um mínimo, que jamais poderá ser rebaixado, e um teto máximo, que não poderá ser suplantado. Entre a pena mínima e a pena máxima, intervalos de tempo mais ou menos longos, dependendo de cada crime em si considerado. Nenhuma dificuldade: está escrito e é impossível não compreender.

O drama está no percurso a ser estabelecido entre um limite e outro. Para esse caminho, o legislador embolou terrivelmente meio campo e criou um critério inteiramente maluco e subjetivista, cheio de palavras que se repetem, de conceitos inatingíveis, no artigo 59.

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: II. a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos.

O amontoado de expressões de vago sentido — como é, afinal, a personalidade agente? Como avaliar-se sua conduta social?fizeram com que a fixação da pena se tornasse um desses assuntos infinitos, marcados muito mais pela ideologia política do que por enaltecimentos de princípios jurídicos.

Adotamos aqui o que chamamos de critério trifásico para imposição de penas, que está no artigo 68. Aparentemente fácil, primeiro, estabelece o juiz a pena-base (uma espécie de indexador geral), com base no artigo 59; posteriormente, as circunstâncias agravantes e atenuantes e, finalmente, as causas especiais de aumento ou diminuição de pena.

Fácil? Pois sim.

A pena mínima já está justificada, por ser a menor possível. A partir dela, qualquer acréscimo que se fizer, obrigatoriamente haverá de ser motivado objetivamente; o maior ou menor rigor pessoal do juiz não está em cena: a maior e excepcional reprovabilidade do gesto precisa ser esclarecida – até em cumprimento de uma garantia constitucional, inscrita no artigo 93 da Constituição Federal. Assim, caso opte por uma pena acima do piso legal, esse aumento necessariamente haverá de ser motivado. Por que raios um chibatada a mais?

Dizê-lo é extremamente difícil porque os crimes, cujas penas mínimas já são mais altas, vem com uma espécie de reprovabilidade social mais em seu próprio kit: um homicídio qualificado parte de doze anos de reclusão, em razão de sua maior reprovabilidade. Se essa conta já apresentada ao devedor-réu, não pode ela ser agravada por ser reprovável o crime. Isso já veio previamente resolvido.

É preciso que o caso concreto se revista de circunstância que o façam discrepar em muito daquilo que se pode chamar de macabra rotina do crime.
Ao contrário do que as pessoas imaginam, a premeditação em regra não se constitui num fato de relevo, num crime doloso, a menos que se revelem minúcias barrocas de cuidado, dissimulações que envolva o enredo do crime em uma quase dramaturgia, o crime é doloso e imaginá-lo é parte de sua existência.

Num país que elege a garantia da presunção de inocência – ou não culpabilidade, como querem os puristas – antecedentes criminais tem conceito bastante estreito e não existem em caso de primariedade. Trabalhar é direito social, na sociedade brasileira regida pela Carta de 88; se é direito, não mais se pode atirar um pedra a mais pelo fato de o apenado não trabalhar…

Fica, assim, fácil de se verificar que a exasperação da pena é um agravamento diante de uma patologia de excepcional relevância. O ciúme é um sentimento que nos iguala, nos coloca em um mesmo patamar de inseguranças e possessividades. Reconhecida a qualificadora diante do motivo, ciúme, já se deu ao fato a reprovabilidade inicial: doze anos de pena.

É preciso algo além do jardim, portanto, para que esse ciúme, que já assentou a pena imposta, venha a alçá-la para cima do mínimo legal. O atingimento, pois, da pena máxima, é algo que se dará em circunstâncias absolutamente excepcionais, em nada houver a ser considerado em favor do apenado ou, se houver, se perde na monstruosidade horripilante do crime cometido.

Por isso, a vida nos ensinou que penas máximas tem curto prazo de validade e tendem a ser modificadas, porque quem as impõe transporta para o processo valores subjetivistas ou impõe pena sobre questões que a lei já decidiu, constituindo, no mais as vezes, em nosso mais multifacetário monstro: o bis in idem, peçonha fatal do processo penal, para a qual o único soro possível é o desfazimento daquilo que o gerou.

Quando atinge níveis que exigem a imortalidade do apenado para que sejam integralmente resgatadas, penas máximas possuem aquele apelo do ressentimento infinito, do ódio estatal vindo em forma de sentença. A pena máxima lota manchetes, vende jornais, catalisa apresentadores vespertinos, mas tem o vôo curto e cego. Será modificada, para frustração dos mais vingativos, dos mais ressentidos.

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