Caso Pinheirinho

Ativismo político confunde análise da reintegração

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24 de fevereiro de 2012, 5h44

Se é possível condensar o ideal democrático em poucas palavras, pode-se dizer que ele consiste no governo representativo, aberto à participação popular, tendo por objetivo a realização da pessoa humana. Contudo, desde as primeiras tentativas de sua concretização, percebeu-se que jamais haveria democracia se o governo popular voltado ao bem comum não fosse regido por leis, sendo conveniente que a organização do Estado e suas relações com a sociedade civil restasse assentada em autêntica lei das leis, a Constituição.

Assim, por mais que os diversos atores sociais divirjam sobre o modo de se alcançar os fins que a Constituição assinala para a ação estatal, tal divergência deve ser superada mediante o devido processo decisório, nas instâncias representativas e nas formas constitucionalmente estabelecidas. Essas corriqueiras noções, lamentavelmente, vem sendo solapadas por certo ativismo político, que, mediante a relativização extremada do direito posto, nada mais pretende senão emprestar juridicidade a determinadas propostas que, se bem examinadas, importam em inovar o direito vigente, ao largo das instâncias representativas.

A técnica utilizada para esse afrouxamento das amarras jurídicas vem sendo, invariavelmente, a da principiologização da Constituição, como se o texto constitucional se reduzisse a um conjunto de princípios (vagos por definição), que sobre tudo incidem. Mas, por conflitarem entre si, demandam da autoridade judiciária a indispensável harmonização. Sob o manto de um rebuscado discurso pseudocientífico, o que se faz é substituir a decisão política, dentro dos marcos normativos existentes, pelo voluntarismo judicial.

A discussão travada em torno da desocupação da área do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), em cumprimento a mandado judicial de reintegração de posse, segue o padrão acima descrito. Na verdade, há dois enfoques possíveis para a matéria, cada qual submetido a diferentes exigências jurídico-constitucionais.

De um lado, a questão do cumprimento estrito de decisão judicial. A Constituição e a legislação infraconstitucional não autorizam outra conclusão: nos conflitos possessórios entre particulares, as ordens de reintegração que não sejam cumpridas espontaneamente devem ser implementadas com apoio policial (militar). É evidente que há providências materiais a serem tomadas pelas forças de desocupação (agentes do Poder Judiciário e policiais militares), em conjunto com outros órgãos públicos (especialmente da área social). Sendo que, quanto maior o número de ocupantes a serem removidos, maiores os cuidados em termos de planejamento e execução da ação de desocupação.

No caso em pauta, nada indica que não tenham sido adotadas tais providências, cuja eficácia, muito possivelmente, foi comprometida pela mobilização, de cunho político-ideológico, de lideranças locais, no sentido de fomentar injustificável resistência ao cumprimento do mandado judicial.

De outra parte, existe a questão social envolvendo o acesso à moradia, direito fundamental contemplado no artigo 6º da Constituição Federal. Ocorre que não se trata de direito exigível de imediato na esfera judicial, ficando na dependência de políticas habitacionais a serem desenvolvidas pelas três esferas da federação, as quais, obviamente, sujeitam-se aos condicionamentos de natureza econômico-financeira. Ao Judiciário cabe, sim, velar para que a execução dessas políticas públicas respeite a legalidade e o tratamento isonômico entre os beneficiários, não se admitindo que invasores de glebas públicas ou privadas recebam tratamento privilegiado em relação à maioria dos carentes de moradia, que não deixam de reivindicar maior agilidade do Poder Público, porém respeitam os marcos da legalidade e da isonomia.

A argumentação lançada pelo ativismo político confunde os dois eixos de análise. Assim, transforma, artificialmente, todo um conjunto de regras articuladas em torno da garantia constitucional da proteção judicial em vago princípio, a ser relativizado mediante ponderação em face do direito social à habitação, adornado com enfática alusão ao princípio dos princípios: a dignidade da pessoa humana.

Os que pretendem representar a visão “progressista”, por conseguinte, não conseguem disfarçar seu desconforto com o funcionamento regular das instituições democráticas, exigindo que deixem de lado insofismáveis determinações normativas em favor do subjetivismo de intérpretes engajados da Constituição. Nada mais do que a reedição de “os fins justificam os meios”.

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