Questão de princípios

Leia voto de Gimar Mendes sobre a Lei da Ficha Limpa

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16 de fevereiro de 2012, 21h06

Carlos Humberto/SCO/STF
Em voto — vencido — que considerou inconstitucional a Lei da Ficha Limpa, o ministro Gilmar Mendes fez uma defesa veemente dos princípios da presunção de inocência e da irretroatividade da lei. Para Gilmar Mendes, nem mesmo a forte pressão da opinião pública, destacada pelo relator, ministro Luiz Fux, justifica a relativização de princípios constitucionais.

"Não cabe a esta Corte fazer relativizações de princípios constitucionais visando atender ao anseio popular. É preciso garantir e efetivar tais princípios, fazendo valer sua força normativa vinculante, dando-lhes aplicação direta e imediata, ainda que isso seja contra a opinião momentânea de uma maioria popular. Certamente, a decisão desta Corte que aplica rigorosamente a Constituição poderá desencadear um frutífero diálogo institucional entre os poderes e um debate público participativo em torno dos temas nela versados. A história nos demonstra que as decisões contramajoritárias das Cortes Constitucionais cumprem esse importante papel, uma função que, em verdade, é eminentemente democrática", afirmou.

Gilmar Mendes citou o ministro aposentado do Supremo Moreira Alves para defender que a Lei Complementar 135/2010, nas hipóteses em que apanha fatos passados para atribuir-lhes efeitos nos processos eleitorais futuros, viola o princípio da irretroatividade da lei. "Normalmente as leis dispõem para o futuro, não olham para o passado. Em consequência, os atos anteriores à vigência da lei nova, regulam-se não por ela, mas pela lei do tempo em que foram praticados — tempus regit actum", disse Moreira Alves, citando José Carlos de Matos Peixoto.

O ministro usou quase um terço das 47 páginas de seu voto para sustentar a inconstitucionalidade do dispositivo da lei que prevê a inelegibilidade por condenação penal em segunda instância. Para ele, o dispositivo fere o princípio da presunção de não culpabilidade.

Neste ponto, citou o voto de seu colega de corte, Celso de Mello no julgamento da ADPF 144: "Torna-se importante assinalar que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves consequências no plano jurídico — ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição —, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado."

Gilmar criticou a afirmação do relator, ministro Luis Fux, de que  o Supremo deveria realinha sua interpretação da presunção de inocência, ao menos em termos de Direito Eleitoral, com o estado espiritual do povo brasileiro. "Sobre essa afirmação, gostaria de fazer recordar, mais uma vez, as lições de Zagrebelsky sobre a democracia crítica: ‘Para a democracia crítica, nada é tão insensato como a divinização do povo que se expressa pela máxima vox populi, vox dei, autêntica forma de idolatria política. Esta grosseira teologia política democrática corresponde aos conceitos triunfalistas e acríticos do poder do povo que, como já vimos, não passam de adulações interesseiras’."

Gilmar Mendes lembrou também que o sistema oferecer mecanismos para impedir a escolha de maus candidatos e a eleição de maus governantes. "O primeiro e mais elementar mecanismo de controle é o voto", disse ele. "Outro mecanismo de controle é a escolha de candidatos no âmbito interno dos próprios partidos políticos. Cabe às agremiações políticas a eleição de candidatos cuja vida pregressa os qualifiquem para exercer, com probidade e moralidade, determinada função pública."

O ministro explicou os motivos pelos quais a Lei da Ficha Limpa provocou tamanha repercussão popular: "O primeiro é que, a cada dia, todos nós, cidadão brasileiros, somos afligidos com notícias de atos de absoluta falta de ética, de quebra de princípios éticos e morais, com casos e mais casos de corrupção na Administração Pública, fato que afronta o nosso sentimento de viver com justiça em uma sociedade civilizada", disse. E prosseguiu: "Em segundo lugar, há a morosidade do trânsito em julgado de decisões judiciais. Fossem as decisões rápidas — e isso é uma questão que se coloca — e não tivéssemos tantos casos, ninguém iria afirmar que esta Constituição não está sendo cumprida, inclusive em seu fundamento ético".

Para ele, no entanto, não é perpassando o problema que ele será resolvido: "Conforme bem demonstrou o ministro Celso de Mello em seu brilhante voto, não é, de forma alguma, restringindo ou constrangendo direitos fundamentais que teremos um Estado Democrático de Direito, no qual a segurança e a liberdade de todos, inclusive as do eleitor, serão garantidas". 

O ministro concluiu detalhando o seu voto de acordo com os vários dispositivos em julgamento:

1) pela procedência total da ADI 4.578, para declarar a inconstitucionalidade da alínea m;

2) pela improcedência da ADC 29, para declarar o caráter retroativo da LC 135/2010 e determinar sua aplicação apenas em relação aos fatos ocorridos após a sua vigência, respeitada a anualidade eleitoral prevista no artigo 16 da Constituição, tal como já afirmado pela Corte no RE 633.703;

3) pela improcedência parcial da ADC 30, para declarar a inconstitucionalidade da alínea n;

4) pela improcedência parcial da ADC 30, para declarar a inconstitucionalidade da expressão "ou proferida por órgão judicial colegiado", contida nas alíneas e e l;

5) pela procedência parcial da ADC 30, para, aplicando a técnica de decisão da interpretação conforme a Constituição, fixar que a alínea o é constitucional desde que interpretada no sentido de que somente as hipóteses de demissão diretamente relacionadas a atos de improbidade administrativa podem constituir causas de inelegibilidade;

6) pela procedência parcial da ADC 30, para, aplicando a técnica de decisão da interpretação conforme a Constituição, fixar que a alínea g é constitucional desde que interpretada no sentido de que os Chefes do Poder Executivo, ainda quando atuem como ordenadores de despesa, submetem-se aos termos do inciso I do artigo 71 da Constituição;

7) pela procedência parcial da ADC 30, para, aplicando a técnica de decisão da interpretação conforme a Constituição, fixar que as alíneas e e l — retirada a expressão "ou proferida por órgão judicial colegiado" — são constitucionais desde que sejam interpretadas no sentido de que seja possível abater, do prazo de inelegibilidade de 8 (oito) anos posterior ao cumprimento da pena, o período de inelegibilidade já decorrido entre a condenação não definitiva e o respectivo trânsito em julgado.

Clique aqui para ler o voto do ministro Gilmar Mendes sobre a Lei da Ficha Limpa.

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