Na prática

Por que limitar responsabilidade na empresa individual?

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16 de fevereiro de 2012, 16h11

O empresário tem, hoje, a segurança de que vigorará o princípio da limitação da responsabilidade para o exercício de atividades empresariais, pelo menos naquelas situações em que esse benefício lhe é formalmente concedido? A consideração, cremos, é relevantíssima, na medida em que sempre se intuiu ser o oferecimento de limitação de responsabilidade uma importante variável para o agregado da atividade empresarial e, por conseguinte, para o próprio desenvolvimento econômico – e a evolução histórica da limitação da responsabilidade pode ser tida como um indício nesse sentido. Não seria de se estranhar se grande parte dos sócios de sociedades empresárias respondesse àquela pergunta justamente de modo inverso: que, na verdade, tem-se, hoje, a certeza de que o princípio da limitação da responsabilidade não tem mais força na prática ou concreta aplicação.

Em primeiro lugar porque em diversos ramos do direito brasileiro se foi sucessivamente construindo um padrão legislativo e de decisões judiciais no sentido de que a limitação de responsabilidade não pode se antepor à satisfação de créditos que se julguem especialmente meritórios: seriam aqueles casos em que, por causa da natureza do crédito (e do seu titular), toma-se quase como uma questão de justiça social a imposição de que sempre alguém deverá pagar (se não a sociedade, então o sócio que a compõe).

O caso mais eloquente é sempre o do direito do trabalho, mas também assim se foi formulando no âmbito do direito tributário e no âmbito daqueles ramos em que a sociedade foi criando mais sensibilidade para as repercussões dos acidentes, como o direito ambiental e o direito do consumidor. Em segundo lugar, mesmo nas situações em que se está diante de relações meramente creditórias entre empresários, é tão difundida a aplicação, sob critérios que se querem objetivos, da desconsideração da personalidade jurídica, que, na verdade, o empresário tem, hoje, praticamente a certeza de que ele não terá a seu favor a limitação da responsabilidade que formalmente lhe é concedida.

Quer-se dizer: o sócio de uma sociedade limitada, ou mesmo o sócio de uma companhia fechada, já acostumado à freqüência com que deixa de vigorar o princípio da autonomia pessoal e patrimonial da pessoa jurídica, sabe, de antemão, serem enormes as chances de vir a ser pessoalmente imputado pelas dívidas da sociedade. Convém, en passant, mencionar que, não parece, de qualquer modo, que essa mudança de perspectiva – da segurança na limitação da responsabilidade para a quase certeza da sua ilimitação – tenha causado um arrefecimento do conjunto da atividade empresarial.

Nessa situação, para que, então, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, a Eireli, nova estrutura empresarial com o status de pessoa jurídica que vigorará a partir desse 8 de janeiro? A Eireli é a concretização de uma antiga exigência da classe empresarial, qual seja, a possibilidade de se exercer individualmente a atividade comercial com limitação de responsabilidade, questão objeto de uma das mais valiosas teses do direito comercial brasileiro, na monografia de Sylvio Marcondes Machado.

Mas, afinal de contas, qual o sentido de se anunciar a “vantagem” ou o “benefício” da responsabilidade limitada para a empresa individual justamente num contexto jurídico-social em que esse princípio tende a ser altamente desprivilegiado? Não seriam enormes as chances de acontecer com a Eireli – estrutura empresarial que se pretende limitadora da responsabilidade do seu titular, nas forças do capital separado (no mínimo sessenta salários mínimos vigentes no país) – o que já vem normalmente acontecendo com as demais estruturas empresariais por meio das quais ao menos formalmente se anuncia a limitação da responsabilidade do titular da atividade empresarial?

E não se trata, aqui, de imaginar falsos fantasmas: note-se que aquele que deveria ser o parágrafo 4º do artigo 980-A do Código Civil (“Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente.”) foi vetado justamente sob a alegação de que a expressão “em qualquer situação” poderia gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no artigo 50 do Código Civil.

Se, com antecedência, já se pode prever que, muito certamente, a separação patrimonial de que formalmente gozará a Eireli estará sujeita a fortes ataques vindos daquilo que já se diagnosticou como sendo a indiscriminada aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, para que servirá, então, a Eireli?

Noves fora a variável tributária, a motivação para que empresários individuais constituam Eireli – e aqui se faz um exercício de mera intuição – será não propriamente o acesso à responsabilidade limitada, mas, sim, a possibilidade de reconversão das sociedades fictícias (aqueles casos em que se assumiu a pluralidade de sócios apenas porque, ao menos até agora, o benefício formal da limitação da responsabilidade somente se poderia obter mediante a constituição de um ente coletivo, mas sem, que, de fato, quisessem os sócios fazer o exercício coletivo da atividade empresarial) em empresas individuais. A estrutura e a societária, ainda que fictícia, certamente exige mais complexidade e mais esforço organizacional se comparada com a Eireli. Há, inclusive, no Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Instrução Normativa do DNRC 117, de 22 de novembro de 2011), expressa previsão para os procedimentos de transformação do registro de sociedade contratual em Eireli.

E, ainda, pode-se também cogitar que assumirão a forma jurídica da Eireli não necessariamente aqueles que, hoje, já estejam registrados como empresários individuais ilimitadamente responsáveis: a exigência de capital mínimo equivalente a cem salários mínimos vigentes no país será um obstáculo para aqueles pequenos empresários que optam pelo exercício individual da empresa, e muitos dos empresários individuais permanecerão como estão, sob a forma do empresário individual.

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