Embargos Culturais

Crítica em Gregório de Matos é restrita a seu tempo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

12 de fevereiro de 2012, 8h29

Gregório de Matos hostilizou o modelo judiciário de sua época, o século XVII. Nascido na Bahia, de família abastada, Gregório ocupou cargos importantes na vida burocrática. Seu espírito satírico e irreverente custou-lhe demissão e desterro para Angola. Mais tarde, ao voltar ao Brasil, foi proibido de ficar na Bahia. Gregório de Matos morreu em Recife. O diplomata e filósofo José Guilherme Merquior resumiu sua trajetória:

“Filho de senhores de engenho na Bahia, irmão do pregador Eusébio de Matos, colega em Coimbra de Botelho de Oliveira, Gregório só voltou ao Brasil perto dos cinquenta, e só viveu no país, adulto, pouco mais de quinze anos; entretanto, sua obra, parece ter sido toda escrita na terra natal. Largou elevado cargo religioso para casar com uma viúva, mas não demorou a abandonar família e trabalho (advocacia), num impulso Boêmio bem semelhante ao que tomaria, nos Velhos Marinheiros de Jorge Amado, o famoso Capitão Vasco Moscoso de Aragão…”[1]

Merquior, com aquela lúcida racionalidade de que nos falava Miguel Reale[2], focalizou Gregório de Matos no que o poeta baiano mais se caracterizou: sua impulsividade. O que, no entanto, não obscurece sua genialidade. Há também testemunho crítico de José Veríssimo, patrono de nossa crítica literária:

“Muito vaidoso, como devem geralmente ser poetas e literatos, era-o extremamente do seu título de doutor, do seu saber jurídico, da posição que tivera no Reino, e até de ser branco.”[3]

Gregório de Matos tinha consciência de ser letrado. E gostava da posição. Muito. Uma quase casta, nos dizeres de Stuart B. Schwartz, historiador de nossa burocracia:

“Os letrados, ou graduados pela universidade, chegaram a proeminência no século XIV, depois das Cortes de Coimbra de 1385. Em meados do século XV sua posição era quase igual à dos cavaleiros e fidalgos, apesar destes últimos não quererem admitir o fato. Em meados do século seguinte os letrados começaram a assumir algumas características de casta e, através de casamentos e ligações familiares, tornaram-se um grupo autoperpetuador que ocupava a maior parte dos cargos judiciais e muitos dos cargos administrativos do governo.”[4]

Na medida em que Gregório de Matos criticou os letrados, (ainda que ele mesmo fosse um deles), é que se pode constatar, por parte de um beneficiado, a insurgência contra o próprio benefício. Gregório de Matos, que ganhou a alcunha de Boca do Inferno, não poupou tribunais, Justiça, o rei, os letrados, o doutor, a corrupção, as fontes do Direito, o procedimento, a produção legislativa, as provas, o comércio jurídico, as iniquidades. Sua produção poética pode ser matéria substancial para uma problematização cultural do Judiciário. Vejamos.

Ao falar da cidade do Salvador, o Boca do Inferno atirava contra a Justiça. Escreveu ele:

“Que falta nesta cidade? Verdade. Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponha Vergonha. (…) E que justiça a resguarda? Bastarda É grátis distribuída? Vendida! Quem tem, que a todos assusta? Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta.”[5]

A Bahia, no tempo de Gregório de Matos Guerra, seiscentista, cabeça da América Portuguesa, vivia permanente vigilância inquisitorial, da qual foi vítima, de certa forma, o Padre Antônio Vieira. Segundo estudiosa de nossos costumes e instituições coloniais:

“Em meados do século XVI, teve início, antes mesmo da chegada do governador-geral, a perseguição àqueles que incorriam nos crimes punidos pela Inquisição. Data de 1546 a inquirição que o vigário da vila de Porto Seguro tirou, com o padre Manoel Colaço e o juiz ordinário Pero Anes Vicente, sobre as ‘heresias e blasfêmias’ proferidas por Pero do Campo Tourinho, donatário da capitania de Porto Seguro. Alguns indivíduos que testemunharam, uns nobres, outros plebeus, foram apontados por Tourinho como seus inimigos: ‘estavam mal com ele por ele bradar com eles que não queriam trabalhar e lhes repreendia seus vícios’ (…) Foi também dito que seus escravos e criados trabalhavam nos dias santos, pois, segundo Tourinho, apenas se deviam guardar os domingos; e que defendia não serem necessárias muitas confissões (….)[6]

Gregório de Matos imputava à Justiça a bastardia, o comércio, a injustiça. Para o poeta baiano, a Justiça viera do nada, era vendida e, pior, não era justiça, era injusta. Ao emprestar à Justiça três nefastos epítetos (bastarda, vendida, injusta), o poeta barroco imprimiu, literariamente, aspecto de seu desencanto para com o Direito. Destilava muito desconforto com a época em que vivia. Para o Boca do Inferno, a Justiça protegia a poderosos. E denunciava:

“O Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre sustentar: diz, que antes o quer furtar por manter a negra honra, que passar pela desonra, de que lhe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei, esta é a justiça, que manda El-Rei.”[7]

Os advogados também não eram poupados:

“Os letrados peralvilhos citando o mesmo doutor. a fazer de Réu, o Autor comem de ambos os carrilhos: se se diz pelos carrilhos sua prevaricação, a desculpa, que lhe dão, é a honra de seus parentes e entonces os requerentes, fogem desta infame grei: esta é a justiça, que manda El-Rei.”[8]

No excerto acima reproduzido, Gregório de Matos Guerra, ao escrever que os letrados comem de ambos os carrilhos, talvez quisesse que se entendesse que advogados recebiam de ambos os lados, daí a prevaricação que insinuava. Mais adiante, consignou o temor das pessoas pelas coisas do foro, uma vez que e entonces os requerentes, fogem desta infame grei.

Gregório de Matos insinuou também corrupção, a propósito da relação dos padres com a Justiça. Não nos esqueçamos de que peita dá ideia de suborno, a propósito de um antigo tributo que pagavam os que não eram fidalgos. Escreveu o Boca do Inferno:

“Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso, não lhe chameis Religioso, chamai-lhe embora de Frade: e se o tal Paternidade rouba as rendas do Convento para aludir ao sustento da puta, como da peita, com que livra as suspeita, do Geral, do Viso-Rei: esta é a justiça, que manda El-Rei.”[9]

O poeta baiano, que conhecia o procedimento judicial como advogado, também criticava aspectos da prática forense:

“No que toca aos juramentos, de mim para mim me admiro por ver a facilidade, com que os vão dar a juízo. Ou porque ganham dinheiro, Por vingança, ou pelo amigo, E sempre juram conformes, Sem discreparem do artigo… Dizem, que falam verdade, Mas eu pelo que imagino, Nenhum, creio, que a conhece, Nem sabe seus aforismos.”[10]

Não só as testemunhas, mas também as partes recebem críticas numa passagem ácida:

“E quando chega a apertá-los o tribunal dos resíduos, ou mostram quitações falsas, ou movem pleitos renhidos.”[11]

Talvez, segundo anotou Sergius Gonzaga, em Manual de Literatura:

“A prisão, as prováveis torturas, o degredo e a volta convencional do exílio aquebrantaram o espírito desse poeta demolidor. E deixaram bem claro que a crítica e a liberdade intelectual nunca seriam aceitas pelos impérios de além-mar.”[12]

A escritora Ana Miranda baseou-se na vida e nos escritos de Gregório de Matos para compor uma biografia romanceada do poeta, onde se verifica desencanto para com o Direito. Escreveu Ana Miranda:

“No outro sobrado vizinho habitava um letrado. O que se poderia dizer de um homem como aquele? Os letrados peralvilhos da colônia faziam réus se tornarem autores e obtinham mercês de ambos. Tal homem prevaricava e, quando chamado a responder por seus atos, dizia fazê-los em honra dos parentes. Havia, na semana anterior, revogado uma sentença com dinheiro e com abraços.”[13]

Gregório de Matos denunciou o Judiciário, valendo-se da poesia para matizar descrença, desencanto, visão crítica, para com o Direito. No entanto, deve-se registrar, seria absolutamente injusto tomarmos as críticas de Gregório de Matos Guerra para com as instituições dos dias de hoje, no nosso contexto. Tomarmos suas observações como absolutamente atuais seria equívoco conceitual de anacronismo e de falsa percepção presente para com um fato pretérito.

Por isso, leviano seria tomarmos as críticas de Gregório de Matos Guerra como pertinentes num contexto atual. De fato, as acusações do Boca do Inferno devem ser matizadas no tempo em que ele viveu. Utilizá-lo como guia para problemas contemporâneos é medida epistemológica que mais cria problemas do que os resolve. É essa uma das questões conceituais mais complexas que afeta ao movimento direito e literatura.

Há limites para a argumentação literária. Não se pode, simplesmente, transcrever excertos e fragmentos, colocando-os em outros contextos, com o objetivo de se comprovarem premissas, cuja demonstração transcende à própria afirmação. Colhe-se do argumento muito mais do que ele possa conter.

Afirmar-se que o Judiciário e a Advocacia de hoje guardam alguma semelhança com o Judiciário criticado por Gregório de Matos é aleivosia que revela a fragilidade da argumentação de fundo literário na avaliação de nossas instituições. Est modus in rebus…

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONZAGA, Sergius. Manual de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

GUERRA, Gregório de Matos. Obra Poética. Rio de Janeiro: Record, 1992.

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides, breve história da literatura brasileira. Rio de janeiro: José Olympio, 1977.

MIRANDA, Ana. O Boca do Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

REALE, Miguel. Figuras da Inteligência Brasileira. São Paulo: Siciliano, 1994.

SCHWARTZ, Stuart B.. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: perspectivas, 1979.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916.


[1] José Guilherme Merquior, De Anchieta a Euclides, breve história da literatura brasileira, pág. 20

[2] Miguel Reale, Figuras da Inteligência Brasileira, pág. 165.

[3] José Veríssimo, História da Literatura, pág. 90.

[4] Stuart B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, pág. 11.

[5] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, ´´págs. 56 e 57

[6] Maria Beatriz Nizza da Silva, Bahia, a corte da América, p. 92-93.

[7] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, pág. 35.

[8] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, pág. 36.

[9] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, pág. 37.

[10] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, pág. 43.

[11] Gregório de Matos Guerra, Obra Poética, pág. 46.

[12] Sergius Gonzaga, Manual de Literatura Brasileira, pág. 21.

[13] Ana Miranda, O Boca do Inferno, pág. 33.

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