Embargos Culturais

A retórica na tradição da cultura clássica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

5 de fevereiro de 2012, 8h31

A tradição cultural ocidental possui manifestações muito peculiares, a exemplo da Filosofia, da Literatura, do Direito, da Religião. Não se descarta a influência judaica, porém enfatiza-se o modelo conceitual greco-romano. O mundo no qual vivemos não transcende totalmente as linhas de pensamento tradicionais, como a filosofia socrática, o estoicismo, o epicurismo. Isso sem contarmos a invenção da política[1].

Somos, em grande dimensão, um desdobramento da polis ateniense e da civitas romana. Na chamada pós-modernidade (a aceitarmos o termo, vinculado a clientelas teóricas e políticas) velhos problemas condimentariam os novos tempos[2]. Exemplificando esse paradoxo entre o velho e o novo, surge a Retórica, arte liberal, associada à linguagem, ao discurso, ao pensamento, à ação, ao argumento.

Dona de implicação às vezes negativa (como a sofística e a dialética) a Retórica aproxima-se da Oratória (a arte de falar corretamente), da Gramática (a arte de escrever corretamente) e da Lógica (a arte de pensar corretamente). Matizada também como a arte da persuasão nos negócios práticos (e assim seria a arte do convencimento) a Retórica preocupa-se atualmente também com o ouvinte, isto é, com o destinatário da mensagem. É a obsessão com o auditório.

Assim, duvida-se da Retórica, invocando-se a verdade como seu instrumento de controle e a reação do ouvinte como seu referencial de aferição de eficiência. Há limites éticos para o uso da Retórica? Há perspectivas de intuição para se controlar o destinatário da mensagem? Seria ético o uso de tal (ou tais) perspectivas?

Uma tentativa de esboço de resposta para essas questões é motivo do presente artigo, que não esgota o assunto. Apenas se inventariam alguns autores e textos passíveis de reflexão.

Na tradição oral da Ilíada a Retórica manifestou-se também na voz de Aquiles que, indignado com a tomada da cativa Briseida por Agamémnon, não quis mais combater pelos gregos. O herói grego invocou sua mãe, Tétis, que o consolou e prometeu vingança[3]. O enredo da epopeia desdobra-se em duelos de fala, de convencimento. A Retórica é arma tão eficaz como a lança, a espada e o escudo dos hoplitas. As palavras matam, tanto quanto os venenos. E as palavras também salvam, tanto quanto as esperanças que vivemos.

Heródoto, na História, realçou o valor da Retórica, no livro V, ao discorrer sobre os efeitos do discurso dos espartanos, e o entusiasmo provocado nos aliados. Segundo o pai da História, o poder do discurso dissimulava erros, refazia alianças[4].

Tucídides, na História da Guerra do Peloponeso, obra escrita por volta de 400 a.C., tentou reproduzir com máxima fidelidade[5] o que teria sido dito pelos políticos e chefes militares em suas manifestações[6]. É a chamada eloquência ática. E foi o próprio Tucídides quem escreveu que
"Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos, quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio"[7].

Ao que consta, entendo na passagem acima citada uma crítica aos escritores de peças de teatro, que concorriam a prêmios. Os gregos primavam pela vaidade. Ao reproduzir (ou criar) falas de personagens históricos, Tucídides deu dimensão superlativa a aspectos retóricos. Certamente, ele escreveu com vistas à posteridade[8]. Ele não só compreendeu seu tempo, como também o fez compreendido pelos outros[9]. Chegou até nós. Impossível não deixar de lê-lo.

Na tradição romana, Virgílio, que escreveu a Eneida, explicitou modelos retóricos de excelência em sua obra. Confessou que estudou "para se tornar orador, segundo o desejo de todas as famílias que queriam lançar os descendentes numa carreira brilhante e rendosa"[10].

A Eneida é um poema épico, que tem como tema a fundação de Roma, escrito à época de Otávio Augusto, século I d. C., com os claros propósitos de potencializar o patriotismo romano. A narrativa é inflamada e a obra parece encomendada, numa época de conquista, de expansão territorial, dentro do plano de Augusto, a propósito das conquistas das fronteiras naturais[11].

A Eneida permite que constatemos aspectos políticos ligados à Retórica. Não há neutralidade. Não se verifica uma arte liberal enquanto arte pela arte. O que temos é a fala a serviço de um propósito, e essa parece ser, desde o início, característica mais marcante da Retórica.

Plutarco, que era grego, mas que visitou Roma pelo menos duas vezes[12], biógrafo, filósofo e moralista, produziu um dos mais completos apanhados sobre os oradores da antiguidade greco-romana, ao escrever "Vidas Paralelas".

São 23 pares de biografias, mais quatro delas isoladas, perfazendo o total de cinquenta trajetórias de vida. Os biografados são, entre outros, Sólon, Temístocles, Péricles, Alcebíades, Aristides, Demóstenes, Nícias, Alexandre, Mário, Pompeu, Marco Antônio, Bruto, César, Cícero.

Ao narrar, por exemplo, a vida de Tibério Graco, Plutarco discorreu sobre o empenho do tribuno romano pelos pobres, bem como sobre seus projetos de reforma agrária[13]. Comprova-se na retórica de Tibério Graco o vínculo entre o falar e a ação política. Tibério Graco é o modelo do político romano comprometido com o bem comum.

No que se refere à Grécia, a eloquência confirma aquela imagem de "República de Advogados"[14], das discussões na assembleia da Eclésia[15], isto é, o inequívoco poder significante da linguagem, que também marcou a tragédia, do ponto de vista literário[16].

Tácito, nos Anais, obra de História, escrita no início do século II d.C., segundo evidências[17], também nos deu conta da Retórica entre os romanos, a exemplo das discussões sobre o funeral de Augusto[18]. Leitura encantadora.

Além disso, a Retórica, enquanto talento, seria característica de homens com pureza moral, com ausência completa de egoísmo político[19]. Não nos esqueçamos de que Cícero, o "pai da pátria"[20], exemplo maior da gravidade comportamental romana, bem marcando as qualidades do orador. O problema é que a prática política posterior maculou o sentido do bem falar e da arte do convencer.

A Retórica reinava no Senado Romano, cuja autoridade e poder foram aumentados, no século I a.C., a expensas dos tribunos e da assembleia popular[21]. Até como reflexo dos embates, houve produção legislativa copiosa, num contexto de imaginação reguladora, ainda que absurdamente prática e racional, que tanto marcava o homem romano[22]. O Direito Romano é da assertiva prova incontestável.

Na antiguidade clássica, constata-se forte efervescência cultural, muitas vezes desdobrada em imaginárias discussões que se entabulavam em praças e jardins, locais por excelência do otium, o lazer consagrado à vida do espírito[23]. A Retórica em Roma é trilha para a compreensão das transformações havidas no meio social, o que, aliás, tema de um livro de Tácito, O Diálogo dos Oradores, onde se estuda a evolução e a decadência da eloquência[24].

É ao mundo greco-romano que a contemporaneidade deve o imenso legado do culto ao bem argumentar, centrado na Retórica, cujos limites entre ética e verdade foram problematizados, principalmente, na monumental obra de Platão.

 


[1] Chauí, Marilena; Introdução à História da Filosofia, pág. 21.

[2] Smart, Barry; A Pós- Modernidade, pág. 11.

 

[3] Homero; Ilíada, págs. 3 e ss.

[4] Heródoto; História, 2o.vol., pág. 45.

[5] Tucídides; História da Guerra do Peloponeso, pág. 28.

[6] Kury, Mário da Gama; Introdução a Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, pág. 15.

[7] Tucídides; op. cit., loc. cit.

[8] Bowra, C. M.; História de La Literatura Grieca, pág. 119.

[9] Kiito, H. D. F.; The Greeks, pág. 9.

[10] Paratore, Ettore; História da Literatura Latina, pág. 372.

[11] Homo, Léon; Nouvelle Historie Romaine, pág. 236.

[12] Harvey, Paul; Dicinário Oxford de Literatura Clássica, pág. 404.

[13] Schüler, Donaldo; Literatura Grega, pág.154.

[14] Durand, Matthieu de; História Abreviada da Grécia Antiga, pág. 138.

[15] Thorley, John; Athenian Democracy, pág. 31 e ss.

[16] Segal, Charles; O Ouvinte e o Espectador, in Vernant, Jean-Pierre (org.), O Homem Grego, pág. 190.

[17] Harvey, Paul; op. cit., pág. 36.

[18] Tacitus, The Annals, pág. 3.

[19] Mommsen, Theodor; História de Roma, pág. 176.

[20] Diakov, V. e Kovalev, S. (dir.), História da Antiguidade, Roma, pág. 240.

[21] Rostovtzeff, M.; História de Roma, pág. 116.

[22] Schiavone, Aldo; The Jurist, pág. 88.

[23] Grimal, Pierre; A Civilização Romana, pág. 185.

[24] Giordani, Mário Curtis; História de Roma, pág. 248.

 

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