Competência subsidiária

Só em colegiado o CNJ deveria instaurar processos

Autor

  • Luís Roberto Barroso

    é advogado professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Universidade de Yale. Doutor e Livre-docente pela UERJ. Professor Visitante da Universidade de Brasília (UnB) da Universidade de Poitiers (França) e Universidade de Wroclaw (Polônia). Visiting Scholar na Universidade de Harvard.

1 de fevereiro de 2012, 13h07

Juízes, diferentemente do chefe do Executivo e dos membros do Legislativo, não são eleitos para os cargos que ocupam. Assim é pelo mundo afora, onde boa parte das democracias reserva uma parcela do poder político para ser exercida pelo Judiciário, composto de agentes públicos que não colhem nas urnas o fundamento de legitimidade de sua atuação. Juízes se legitimam pela virtude e pela independência. A virtude deve se materializar no conhecimento técnico adequado, na sensibilidade para captar o que é certo e justo, bem como na integridade pessoal. A independência, por sua vez, se concretiza na ausência de subordinação aos outros Poderes ou a agentes econômicos e sociais poderosos.

Ao criar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Constituição conferiu a ele, dentre outras atribuições, o controle do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Por outro lado, a mesma Constituição atribuiu competência disciplinar aos tribunais, aos quais cabe fiscalizar e sancionar, quando seja o caso, magistrados e servidores a eles vinculados. É dessa dualidade de poderes que resulta a tensão entre o CNJ e os tribunais. Em rigor, há duas questões controvertidas que se encontram presentemente submetidas ao Supremo Tribunal Federal (STF). Uma difícil e outra fácil. A primeira – e fácil – consiste em saber se o CNJ, órgão administrativo, pode quebrar diretamente o sigilo fiscal e bancário de juízes e servidores do Judiciário, sem prévia autorização de órgão jurisdicional. A resposta afigura-se claramente negativa, na linha da jurisprudência reiterada do STF.

A segunda questão – a difícil – consiste em determinar se a competência do CNJ deve ser subsidiária à atuação disciplinar dos tribunais ou se, ao contrário, pode ser concorrente. Em linguagem mais simples, cuida-se de saber se o CNJ deve ou não aguardar a atuação (ou a omissão) do tribunal de origem antes de poder agir. O texto da Constituição não é categórico a respeito, sendo necessário um exercício de interpretação para determinar o seu sentido. Em um primeiro momento, doutrinadores, advogados (eu, inclusive) e ministros do STF entenderam que a competência deveria ser subsidiária: o CNJ poderia determinar aos tribunais a instauração de processo disciplinar, fixar prazos, rever as decisões proferidas e mesmo avocar processos em curso. Mas não instaurá-los diretamente. Tal ponto de vista se baseava, dentre outras razões, na impossibilidade material de o CNJ fazer o varejo da fiscalização de juízes e serventuários da Justiça pelo Brasil afora, o que ainda o afastaria do seu papel igualmente relevante de órgão de planejamento e aprimoramento institucional do Judiciário.

Porém, é impossível deixar de reconhecer que o debate público ocorrido após os pronunciamentos em favor da competência meramente subsidiária trouxe novas luzes e nuances ao tema. A moderna interpretação constitucional não se funda apenas em textos normativos abstratamente considerados, mas deve levar em conta sua interação com a realidade fática e com as demandas sociais. Daí se admitir a possibilidade de uma outra solução, constitucionalmente adequada e socialmente desejável, construída a partir do diálogo entre as instituições interessadas, entidades da sociedade civil e a opinião pública em geral. Tal solução pode ser assim enunciada: como regra, a competência do CNJ deve ser subsidiária à atuação dos tribunais; porém, por deliberação majoritária e fundamentada de seus membros — e não por iniciativa unilateral de um conselheiro —, o CNJ pode decidir pela atuação direta, instaurando investigação. A lógica é simples: uma vez que a Constituição preservou a competência originária dos tribunais, a decisão do CNJ de se superpor a eles deve ser uma manifestação do órgão em seu conjunto.

Quando a resposta para um problema não se encontra pré-pronta no ordenamento jurídico, o intérprete deve construir argumentativamente a melhor solução, que deverá ser aquela compatível com o texto legal, moralmente boa e politicamente legítima. Muros são ruins, mesmo para ficar em cima. Pontes unem. A interpretação aqui proposta reafirma a autoridade do CNJ como instituição, sem depreciar o papel dos tribunais. A Justiça tratando a si própria com os atributos que deve ter: virtude, independência e moderação.

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