Direito Cambial

Documento eletrônico é incompatível com título de crédito

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29 de dezembro de 2012, 7h00

A era da informática operou uma transformação na sociedade. Dentre as mudanças que poderiam ser citadas, chama a atenção o gradativo abandono do suporte físico papel para registro das relações intersubjetivas. Em contrapartida, os títulos de crédito, de origem medieval, dispõem de regime jurídico absolutamente arraigado ao papel.

Título de crédito é instituto que encontra definição no texto do Direito Positivo. Segundo o Código Civil, artigo 887, trata-se de “documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido”. Em verdade, o que o legislador do Código Civil fez foi adotar a clássica definição do italiano Cesare Vivante[1], para quem “título de crédito é um documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”.

Título de crédito representa, portanto, uma relação creditícia. É a prova de uma relação jurídica, mais especificamente de uma relação jurídica creditícia, envolvendo prazo e confiança. Sua peculiaridade reside no fato deles terem sido concebidos e criados para facilitar a circulação do crédito. Em outras palavras, os títulos são dotados de regime jurídico hábil a garantir a negociabilidade — ou seja, a circulação do crédito.

Para transferir o crédito representado pelo título basta, em alguns casos, a sua tradição. A cartularidade, assim, facilita a negociabilidade do crédito, eis que, dispensando maiores formalidades, sua circulação poderá ser feita pela entrega do título a terceira pessoa.

Como o credor comprova a sua qualidade de credor apresentando o título, é necessário que essa apresentação seja feita por meio da via original do título. Com isso, no Direito Cambial, a via autenticada não faz a mesma prova que o original, já que o detentor da cópia autenticada pode não portar a via original.

Título de crédito é documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele previsto. É imprescindível portar o original do título para exercício do direito literal nele mencionado. Mas o que significa direito literal? A literalidade impõe a necessidade de serem lançadas no título todas as informações pertinentes às correspondentes relações jurídico-cambiais. Endosso, aval, quitação parcial, tudo deve constar na própria cártula. Instrumentos apartados ao título, ainda que válidos, não serão oponíveis ao portador do título de crédito. Ou seja, tratando-se de títulos de crédito, vale aquilo que neles estiverem lançados.

Somada à cartularidade e à literalidade, a autonomia das obrigações cambiais vem consagrar um regime jurídico estruturado para garantir a circulação do crédito aposto na cártula. É preciso portar o original do título de crédito para o exercício do direito literal (que deve estar escrito) e autônomo nele mencionado. As obrigações cambiais são autônomas, não guardando relação de dependência com as demais (nem com as antecedentes nem com as subsequentes).

A autonomia das obrigações é tida como o mais importante dos princípios do Direito Cambial, por ser autêntica garantia para a efetiva circulação do título de crédito, ao assegurar ao tomador do título que a relação jurídica deste com aquele que lhe transmitiu a cártula não será contaminada por eventuais vícios nas relações jurídicas anteriores.

Deste modo, um título de crédito pode representar um sem número de operações, desde sua emissão até seu adimplemento, sendo que elas não se comunicam, na medida em que não há relação de dependência uma a outra. Os princípios e as regras do Direito Cambial criam, portanto, um regime jurídico hábil a garantir a circulação dos títulos que, em geral, circulam mediante endosso.

Alguns títulos, por sua vez, exigem que o credor lance em um registro próprio o nome do credor, são os títulos nominativos. Nestes, o titular do título é aquele cujo nome esteja nos registros do emitente. Não é difícil perceber que se trata de drástica restrição à circulabilidade, bem como ao próprio princípio em comento.

A emissão do título e os inúmeros endossos que podem nele constar representam, cada um, uma diferente relação jurídica que não guarda relação de dependência com as demais. Há sempre uma relação subjacente à criação do título e à sua circulação. Compra e venda, mútuo, prestação de serviço, locação, enfim, os títulos de crédito surgem de relações jurídicas que são a sua causa.

Colocado o título em circulação, não afetará o portador do título se a relação jurídica que originou sua emissão seja viciada. Trata-se da inoponibilidade de exceções pessoais ao terceiro de boa-fé que, juntamente com a abstração, decorre do princípio da autonomia das relações cambiais. Sendo as relações cambiais autônomas, são elas abstratas em relação à sua causa, desprendendo-se desta no exato momento em que o título é posto em circulação, daí que o devedor da cártula não pode opor exceções pessoais ao terceiro de boa-fé portador do título.

Nas relações intersubjetivas incontáveis eventos ocorrem a todo instante, sendo que alguns desses eventos podem ser relatados em linguagem competente e capturados. É através do documento que se faz essa “captura”.

Percebe-se, então, que o papel não é a única forma de registrar os eventos humanos, estes podem, igualmente, ser construídos por meios eletrônicos, constituindo os denominados documentos eletrônicos, que são aqueles acessíveis e interpretáveis por meio de um equipamento eletrônico (aparelho de videocassete, filmadora, computador, etc.), podendo ser registrados e codificados por sistema analógico ou digital.

Caso seja registrado e codificado por meio de sistema digital, fazendo uso dos dígitos binários ou bits (bit = binary digit, os dados são codificados usando 0 ou 1 e são transmitidos como uma série de pulsos elétricos), se estará diante de um documento digital. Neste caso, o documento e seu conteúdo serão acessados por meio de sistema computacional. Assim, todo documento digital é eletrônico, mas nem todo documento eletrônico é digital.

A autenticidade e autoria dos documentos eletrônicos, imprescindível para a sua aceitação, podem ser garantidas através da assinatura digital. Neste sentido, os aspectos de autenticidade, integridade, confiabilidade e veracidade são assegurados à assinatura digital. Tem-se, então, que por meio do uso e aplicação da assinatura digital, mantém-se incólume o necessário elemento confiança ínsito a ideia de crédito.

Outro ponto interessante no que toca aos documentos eletrônicos, e com repercussão ao tema ora proposto, diz respeito aos conceitos de original e cópia. Antes, é preciso advertir que cópia de documento eletrônico não é o mesmo que cópia eletrônica de documento, esta última é a reprodução eletrônica de documento materializado. Por exemplo, um instrumento contratual firmado em papel que posteriormente é escaneado (digitalizado), esta última versão é a cópia eletrônica daquele documento.

Tomemos de exemplo esse arquivo, fruto da digitalização do instrumento de papel; uma vez inserido no ambiente computacional, ele pode ser copiado infinitas vezes e cada uma de suas novas versões será exatamente igual a versão primitiva. Ou seja, no âmbito dos documentos eletrônicos não é possível aplicar a concepção de documento original e cópia, como comumente se faz quando se trata de documento de papel — que perde características ao ser copiado.

Voltando a questão dos títulos de crédito, é na Idade Média que se encontram suas origens históricas. Os títulos de maior importância, ou ao menos sobre os quais a doutrina mais se debruça, são regulados por leis publicadas, na sua maioria, há mais de quarenta anos. Para se ter uma ideia, a Convenção de Genebra é de 1930.

De lá para cá, é inegável a alteração das relações sociais, principalmente a partir do avanço tecnológico provocado pelos computadores e a disseminação deles entre as pessoas.

A concepção clássica dos títulos de crédito é toda baseada na sua materialização em documentos de papel, num contexto social absolutamente distinto do vivido atualmente, pois, nos dias de hoje, gradativamente a sociedade tem deixado o papel de lado.

Como ficam os títulos de crédito, tradicionalmente ligados a sua materialização em uma cártula de papel, frente a todas essas alterações sociais? Seu regime jurídico é compatível com os documentos eletrônicos? Estão fadados ao desuso ou inviabilizarão a migração dos recursos tecnológicos para tal área do Direito?

Como o documento eletrônico admite que sejam nele lançadas as informações pertinentes às correspondentes relações cambiais, é compatível o título eletrônico com o princípio da literalidade.

Título de crédito é documento necessário. Ou seja, é preciso a apresentação do documento para o exercício do direito. Porém, esse documento tem que ser necessariamente papel? Documento é algo que registra e relata determinado evento. O registro e relato podem ou não ocorrer através do suporte físico papel, mas não exclusivamente através dele.

Os documentos eletrônicos são assim chamados não por outra razão, mas por serem autênticos documentos, ou seja, algo que representa um fato. A diferença é que é necessário um meio eletrônico para acessá-lo. Além disso, tanto quanto o documento de papel, o eletrônico igualmente pode ser assinado, o que garante sua autenticidade e autoria. Quanto a isso, há compatibilidade entre título eletrônico e o princípio da cartularidade.

O problema surge quanto à presunção que advém da conduta de portar o título. Segundo o princípio da cartularidade, credor é aquele que porta a cártula. Contudo, tal disposição não é conciliável com os documentos eletrônicos.

Isso porque, nos documentos eletrônicos restam comprometidas as ideias de original e cópia, pois o original pode ser infinitamente reproduzido, sendo que cada reprodução, ou seja, cada nova via, consistirá também em via original, já que guardará exatamente os mesmos elementos e características da versão que lhe deu origem.

Assim, se podem existir infinitos originais, como presumir que quem porte o título original seja seu legítimo credor? Esta é uma barreira insuperável, ao menos até que surja (se é que surgirá) um aparato tecnológico que faça reconhecer com precisão o “arquivo original”.

Outro insuperável óbice à aplicação integral do princípio da cartularidade é a impossibilidade de resgate do título de crédito eletrônico, fazendo com que a única forma segura de quitação seja por meio do recibo — e não, simplesmente, através da devolução da cártula.

O mesmo se diz em relação ao princípio da autonomia das obrigações cambiais, que prevê a ausência de dependência entre as diversas relações que vão se sucedendo ao longo da cadeia de circulação do título. Como os títulos eletrônicos admitem inúmeras vias originais e não permitem o resgate de sua versão original, não há alternativa à circulação segura a não ser a sua escrituração. Será credor não o sujeito que necessariamente for detentor do título, mas aquele cujo nome constar no registro do devedor.

Essa característica dos documentos eletrônicos, além de implicar na aplicação mitigada do princípio da cartularidade — já que não se presume credor aquele que porta o título, nem é possível fazer o resgate deste, elimina a incidência do princípio da autonomia das obrigações cambiais, na medida em que a circulação do título somente pode ser feita mediante instrumento de cessão civil de crédito, devidamente registrado perante o devedor.

Feita a cessão e registrada esta perante o devedor, cai por terra a aplicação do princípio da autonomia das obrigações cambiais, na medida em que tais relações, além de revelar sua relação subjacente, guardarão relação de dependência uma a outra. Os terceiros portadores do título, não mais poderão alegar desconhecimento das relações subjacentes, haja vista o imprescindível contato com o devedor da cártula.

Porém, a inaplicabilidade de algum princípio ou a aplicação mitigada de outro, não importa em falência do instituto. Aliás, resta evidente ser admitido no Brasil a emissão de títulos eletrônicos, conforme regra expressa prevista no Código Civil — artigo 889, parágrafo 3º (“O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”).

Contudo, dadas as restrições impostas pela própria natureza do documento eletrônico, inadmissível sua transferência mediante endosso ou mera tradição, o que faz com que os títulos eletrônicos sejam sempre títulos nominativos, pois é impossível transferi-los sem que se faça o registro perante o devedor.

A propósito, vale acrescentar ser inaplicável ao título de crédito eletrônico (nominativo pela sua própria natureza) a regra prevista no artigo 923[2], do Código Civil, eis que, como já afirmado, dada a possibilidade de existência de inúmeras vias originais, não há como garantir circulação segura do título eletrônico, senão por meio do seu registro perante o devedor. Caso contrário, não conseguirá este identificar com precisão quem é o legítimo credor da cártula, pois inúmeros serão os sujeitos que poderão comparecer perante ele portando a via original do título. Assim, ainda que tal ato venha a ser chamado de endosso, terá ele natureza de cessão de crédito.

Se hoje o título eletrônico, como foi aqui proposto, é título nominativo, por exigir registro perante o devedor, e impróprio, por não se sujeitar inteiramente ao princípio da cartularidade e não se submeter ao princípio da autonomia das obrigações cambiais, a tendência é que, no futuro, ele deixe de ser visto de tal maneira (como título “im”próprio).

O avanço tecnológico e da própria sociedade de consumo exigirá uma ruptura de paradigmas, mudando toda a concepção que a doutrina clássica insiste em dar aos títulos de crédito. Isso implica dizer que a forma de classificá-los em próprios e impróprios, os princípios aplicáveis, e sua própria definição, deverão ser revistos.

Decorrente desta discussão, tem-se que título de crédito eletrônico, portanto, não é documento necessário ao exercício de direito literal e autônomo nele mencionado, mas, apenas, documento necessário ao exercício de direito literal nele mencionado.


[1] VIVANTE, Cesare. Instituições de direito comercial. trad. de J. Alves de Sá sobre a 10. ed. Lisboa: A. M. Teixeira & Cia. Ltda., 1910, p. 136.

[2] Código Civil: Art. 923. O título nominativo também pode ser transferido por endosso que contenha o nome do endossatário.

§ 1.º A transferência mediante endosso só tem eficácia perante o emitente, uma vez feita a competente averbação em seu registro, podendo o emitente exigir do endossatário que comprove a autenticidade da assinatura do endossante.

§ 2.º O endossatário, legitimado por série regular e ininterrupta de endossos, tem o direito de obter a averbação no registro do emitente, comprovada a autenticidade das assinaturas de todos os endossantes.

§ 3.º Caso o título original contenha o nome do primitivo proprietário, tem direito o adquirente a obter do emitente novo título, em seu nome, devendo a emissão do novo título constar no registro do emitente.

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