Diário de Classe

É grande a dívida do Congresso com a Constituição

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29 de dezembro de 2012, 7h00

Spacca
Quem acompanhou as notícias da semana passada, que marcaram o apagar das luzes do atual período legislativo, certamente se surpreendeu com o problema envolvendo a votação do veto sobre a distribuição dos royalties do petróleo e o “entupimento” da pauta do Congresso em virtude da não apreciação de vários outros vetos presidenciais. A questão teve lugar a partir de uma liminar concedida pelo ministro Luiz Fux que impedia o descumprimento da ordem cronológica de análise dos vetos. Foi espantoso descobrir, do dia para a noite, que encontravam-se pendentes de análise e votação 3.059 vetos. Alguns deles dormitando há 12 anos nas gavetas empoeiradas do Legislativo, aguardando um momento “oportuno” para entrarem na pauta de votação.

E o que dizer das patéticas imagens divulgadas pelo jornal Folha de S.Paulo da quinta-feira, dia 20 de dezembro, que retratavam os imensos caixotes de madeira que serviram, de forma improvisada, como urnas para receberem as cédulas, não menos patéticas, de mais de 400 páginas, organizadas, segundo a notícia, pelo próprio Palácio do Planalto, nas quais os votos já vinham — previamente — assinalados?

Surrealismo político: isso tudo aconteceu em uma única sessão (uma verdadeira impostura), que tinha por finalidade analisar todos os 3.059 vetos de uma só vez para, assim, “limpar” a pauta, abrindo a possibilidade de análise da questão dos royalties (uma perplexidade: se foi considerado possível analisar, em uma única assentada, todos os vetos pendentes, por que o Congresso não o fez antes? Melhor ainda: por que não o fez cumprindo o prazo determinado pela Constituição?).

Não se trata, aqui, de criticar um fato já tão decantado em blogs, artigos de jornais e comentários no rádio e na TV. Aliás, a situação é escandalosa de tal forma, que não é preciso um grande esforço reflexivo para demonstrar todos os equívocos e descaminhos jurídicos que nela se encontram plasmados.

Trata-se, na verdade, de pensar algumas consequências que se projetam como possibilidades no horizonte desse acontecimento. Em primeiro lugar, acredito que os professores de Direito Constitucional espalhados Brasil afora ficarão ruborizados ao cruzar com os seus alunos na volta do próximo semestre letivo. Evidentemente, eu me incluo nessa conta. Nas aulas sobre o processo legislativo, discutimos e frisamos o procedimento constitucional para a superação do veto pelo Congresso Nacional. Lemos em sala de aula os malfadados parágrafos 4o e 6o do artigo 66 da CF. Cobramos em diversas avaliações o seu conteúdo. Repetimos várias vezes: “o veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento; caso seja ultrapassado o referido prazo, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final”. Como ficaremos, agora, diante de tais notícias? Seremos acusados de ficcionalismo jurídico?

Claro, sempre há a saída de dizer, como Karl Loewenstein, que vivemos sob a égide de uma Constituição nominal. Mas isso não seria um retrocesso? De 1988 para cá tivemos um significativo avanço no que tange ao Direito Constitucional. Muitos livros publicados. Teses que articulam sofisticadas teorias. E, por que não dizer, uma significativa melhora na concretização de diversos direitos fundamentais. Tudo isso para regredirmos, agora, em face de um problema formal, de simples cumprimento de prazos?

Veja o grau de constrangimento provocado pela “descoberta” dessa irregularidade congressual.

E o pior: não será a primeira vez! No início do ano, no julgamento da ADI 4.029, coincidentemente também de relatoria do ministro Fux, outra irregularidade congressual foi posta às claras. No caso, discutia-se a constitucionalidade da Lei 11.516/2007, originária da conversão da Medida Provisória 366/2007, que criara, por sua vez, o Instituto Chico Mendes. Dentre outras questões, discutia-se o descumprimento do parágrafo 9o do artigo 62 da CF que estabelece a necessidade de criação de uma comissão mista de deputados e senadores para examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário das respectivas Casas legislativas. Verificou-se que a referida comissão sequer havia sido criada. E pior: outras tantas medidas provisórias foram convertidas em lei sem a observância do parágrafo 9o do artigo 62 (mais de quatro centenas delas, desde a edição da Emenda Constitucional 32/2001).

No julgamento da referida ADI, o Supremo Tribunal operou, para o caso em análise, uma limitação de efeitos na pronúncia da nulidade, mas frisou a situação de inconstitucionalidade em que incorreu o Parlamento durante a conversão daquela medida provisória em lei. Por outro lado, a Corte deu um piparote no Congresso, ao alertar que — dali por diante — o descumprimento do parágrafo 9o do artigo 62 seria tratado de forma mais dura pelo Poder Judiciário, provavelmente com a pronúncia imediata da nulidade nos casos de futuros descumprimentos.

E querem saber de uma incrível coincidência? Tanto o parágrafo 9o do artigo 62, quanto o parágrafo 6o do artigo 66, tiveram sua redação determinada pela Emenda Constitucional 32/2001. Ambos tinham por finalidade diminuir a atividade legislativa do Executivo e preservar a autonomia do Legislativo. Ironicamente, ambos os dispositivos vêm sendo ignorados, desde então, pelo próprio Poder Legislativo!

Não é necessário muito esforço para perceber que essas situações geram instabilidade e insegurança quanto às disposições normativas que compõem o tecido jurídico brasileiro. Em face do nosso sistema de controle de constitucionalidade, situações claras de inconstitucionalidade formal como essas narradas acima podem ser reconhecidas pelo juízo singular em qualquer ação ou processo, pela via do controle difuso.

Já na quinta-feira desta semana, foi noticiado que o Congresso deixou para 2013 a votação da lei orçamentária anual. Colocou-se na conta da polêmica sobre os vetos a necessidade dessa medida. Assim sendo, encerrou-se a sessão legislativa, sem a votação do orçamento. Tal adiamento foi justificado sob o argumento de que, desse modo, seria evitada a “judicialização” do orçamento da União.

Também pudera: a intenção era votar uma lei que, por motivos óbvios, necessita de votação no Plenário de cada uma das Casas do Poder Legislativo, no âmbito de uma comissão que tem por finalidade examinar questões urgentes durante os períodos de recesso do Congresso. Evidente que os partidos que se sentissem preteridos nessa votação estariam legitimados para ajuizar as medidas judiciais cabíveis. Protegidos, inclusive, pelos respectivos regimentos internos. De se ressaltar, ainda, que, mesmo os projetos de lei que dispensam, na forma do regimento, a votação em plenário, podem ter sua votação impedida, no âmbito das comissões, caso haja recurso de um décimo dos membros da respectiva casa (art. 58, § 2o, I da CF). Absolutamente temerária, pois, a solução da questão no modo como havia sido proposto inicialmente.

De todo modo, anuncia-se agora que, para ajustar as necessidades de investimentos e, ao mesmo tempo, não paralisar a atividade dos ministérios, 33% das matérias previstas pela lei orçamentária serão regulamentadas por medida provisória. Contudo, a pergunta que fica é: por que a referida medida provisória não poderia sofrer o mesmo processo de judicialização?

Alguém poderia redarguir: haveria, no caso, a presença dos requisitos da relevância e urgência. Pois é… mas seria uma situação artificial, criada pela própria inércia congressual. Uma situação que, em certo sentido, trisca a inconstitucionalidade. Note-se: o parágrafo 2o do artigo 57 da CF estabelece que a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação da lei de diretrizes orçamentárias. Por certo, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual são coisas distintas. Todavia, a regra do parágrafo 2o do artigo 57 indica o óbvio: o Parlamento não pode interromper seus trabalhos sem que as matérias relacionadas ao orçamento sejam resolvidas. Isso, justamente, para evitar que eventuais problemas relativos ao orçamento possam levar à paralisação da máquina pública ou, no limite, a crises institucionais. Daí que, uma questão se apresenta como inevitável: a Constituição tolera o encerramento da sessão legislativa sem que seja ultimada a votação da lei orçamentária anual? Sou tentado a responder de forma negativa. Mais uma inconstitucionalidade, pois, a ser debitada na conta do Congresso.

E por falar em crises institucionais, a discussão — já démodé, uma vez que estava na ordem do dia há longínquas duas semanas — acerca da perda dos mandatos dos parlamentares envolvidos na AP 470, criou, segundo o entendimento do presidente da Câmara dos Deputados, uma crise entre o Legislativo e o Judiciário. Em pesquisa recentemente divulgada, apurou-se que a população confia mais no Poder Judiciário do que no Poder Legislativo. Algo que confirma a tese de autores que escrevem para as democracias europeias, de que o Judiciário aparece no horizonte do imaginário popular como uma espécie de “guardador das promessas”, nas palavras de Antonie Garapon.

Evidentemente que todas essas situações de flagrante descumprimento da Constituição por parte do Congresso, não ajudam em nada para o Legislativo melhorar sua imagem perante a opinião pública. A dívida do Congresso para com a Constituição é muito grande. Por isso é que sempre aparece alguém para cobrar uma fatura. Aliás, como dizia Guilhermo O’Donnell ainda no início da década de 1990: a eficácia de um Estado Democrático mede-se, também, pela capacidade de suas instituições cumprirem suas próprias burocracias. Uma exigência mínima. Os exemplos acima descritos dão amostra de que, nem mesmo essa exigência mínima, tem sido cumprida pelo Congresso Nacional.

Por óbvio, a independência do Poder Legislativo e sua preservação diante das injunções indevidas, não apenas do Judiciário, mas também do Executivo, devem constar da agenda daqueles que se preocupam com a solidificação da democracia e das instituições. Todavia, não podemos nos calar diante de fatos incontestes: continuando como está, o próprio Congresso terá que admitir sua responsabilidade e colocar a sua obra na berlinda do Judiciário (seja quando este último exerce o controle de constitucionalidade dessas inconstitucionalidades formais que lançamos acima; seja quando o mesmo Judiciário é chamado para resolver um conflito entre os poderes Legislativo e Executivo).

Em suma: para que o Parlamento possa bradar, legitimamente, pela defesa de sua independência e autonomia, a primeira tarefa a ser realizada é acomodar as suas ações no manto da constitucionalidade. Um Congresso inconstitucional é uma contradição insolúvel no contexto de uma democracia constitucional. Tanto no âmbito da teoria quanto no âmbito da práxis.

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