Senso Incomum

Roxin "não sabe nada" e o TJ-SP confirma minha tese

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27 de dezembro de 2012, 7h00

Spacca
Algumas coisas são bem intrigantes. Semana passada li em um jornal a opinião de um importante professor de Direito de uma importantíssima Instituição de Ensino sobre a aplicação da tese do “domínio do fato”. Disse o catedrático que a teoria não era nova, que sempre foi e continuará sendo usada e que ela não justifica a condenação sem provas e não houve nenhuma deturpação que tivesse levado à condenação de José Dirceu. E complementou: A tese do Domínio do Fato está no Código Penal brasileiro. Qualquer pessoa que concorre responde pelo resultado.

Lendo o conceito acima, pus-me a pensar, sorvendo uma chávena de chá: “Esse Roxin não sabe nada mesmo”. Ao invés de construir a teoria do domínio do fato, deveria ter vindo estudar Direito aqui em Pindorama. Bastaria ter lido nosso Código Penal e… bingo: qualquer pessoa que concorrer para o crime responde por ele. Ele não precisaria ter escrito, em 1963, o livro Autoria e Domínio do Fato (Täterschaft und Tatherrschaft. Hamburg: De Gruyter, 1963; 8. ed. Berlin: De Gruyter, 2006; em espanhol, Autoría y dominio del hecho en Derecho Penal, por Cuello Contreras/Serrano González de Murillo, Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2000). Esse Roxin… Perdeu tanto tempo… O professor de Direito da importantíssima Instituição “deixou claro” o que é a Tatherrschaftstheorie. Falando sério: por se pensar que teorias sofisticadas como a do Domínio do Fato são “coisas simples” é que a dogmática jurídica “perdeu” nesse julgamento (não esqueçamos também que um dos advogados disse que, desde 2005, já sabia que seu cliente seria condenado… O que eu não entendo é: por que, então, o defendeu?).

Sigo nessa linha. Da série “eu sabia” ou “eu avisei”, escrevo para dizer que “eu avisei e eu acertei”. Lembram-se de minha Coluna “Aqui se faz, aqui se paga ou ‘o que atesta Malatesta’”, onde alertei para o perigo dos efeitos colaterais da decisão da AP 470? Pois leiam. E depois retornem a este texto.

Pronto (como nas gravações de 0800, lá localizei o seu prontuário — diga-me, caro leitor: tecle 1, para saber se o ordinário se presume; tecle 2, para saber se só o extraordinário se prova; tecle 3, para saber se indícios são suficientes para provar um fato; tecle 4, para saber se fatos notórios não necessitam ser provados; ou tecle 5, para voltar ao menu principal; ao final, concorra a um dos seguintes livros: Domínio do fato simplificado e A lógica das provas simplificado de Malatesta).

De volta, vamos à notícia que a nossa ConJur publicou no passado dia 19 de dezembro12: Fatos notórios não precisam de prova”, decide TJ-SP. Que fantástico, não? O que são fatos notórios? O que o juiz disser que é? Seria a síndrome do Malatesta? Ou o “fator Malatesta”? “O ordinário se presume”?

Vejamos um trecho da notícia:

O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou nesta quarta-feira (19/12) o bloqueio de R$ 21 milhões da empresa de investimentos Blue Stone por conta de dívida contraída pelo empresário Naji Robert Nahas nos anos 80, depois da quebra da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). A disputa envolve propriedade de terreno apresentado por Nahas como garantia em outra briga judicial. Para o relator do caso na 5ª Câmara de Direito Privado do TJ, desembargador Erickson Gravazza Marques, "as pedras sabem" que o empresário é o verdadeiro dono do terreno e está envolvido com a empresa, e "fatos notórios não precisam ser comprovados" (…) Em seu voto, o relator reconheceu que a apelação — movida por empresário que cobra uma dívida de Nahas — é baseada em indícios, mas afirmou que eles devem ser levados em conta diante de sua contundência. “Afinal, fatos notórios não precisam de prova”, concluiu, ao dizer que está mais preocupado com a “verdade real dos fatos” do que seu colega, James Siano. Para Gravazza, Siano ficou mais preocupado com a “verdade processual”.

Alguém diria (ou dirá): “Que bom! Foi um peixe grande. Efetivamente, o domínio do fato e o Malatesta são contra as elites.” Portanto, “que bom que esteja sendo usado para pegar gente graúda”. Claro. Ainda estamos sob o efeito do julgamento do mensalão. Só que esse fato de São Paulo é um daqueles que, pelo personagem famoso (Nahas), recebe atenção da imprensa. Preocupa-me, no entanto, o que não está sendo denunciado. Tenho notícia de que, em várias ações penais “onde não estão envolvidas gente do andar de cima”, estão aplicando teses como “fatos notórios não necessitam de prova”, “fatos ordinários podem ser presumidos”, “quem, de qualquer modo participou, é responsável”, etc.

Ora, qualquer brasileiro também gostaria de ver todos os canalhas e escroques deste país devidamente punidos. Entretanto, penso que os democratas, preocupados com as garantias processuais, não querem fazer isso a qualquer custo. Até porque a próxima vítima pode ser você. É o antigo efeito Orloff: “Eu sou você amanhã.

Vingando a tese do desembargador paulista acima explicitada, o caso Bruno nem necessitaria ir a júri. Parece notório que a Elisa está morta. Até as pedram sabe(ri)am. Também a questão da embriaguez no volante. É fácil de ver. E assim por diante. O Direito Penal, assim, vira “responsabilidade objetiva”. Você é culpado até provar o contrário, tese presente, aliás, em juristas famosos como Manzini…

Veja-se o perigo do que é “notório”: Se a revista Veja publica que Marcos Valério disse algo, fica notório… (ou não é assim?) Logo, não necessitaremos provar? E o que são indícios? O fato de alguém estar molhado aponta para indícios de chuva… Mesmo que esteja chovendo, ainda assim me parece que há que se provar que o acusado “andava mesmo na chuva” (embora quem ande na chuva é para se molhar). Metafórica e simbolicamente, tais questões são bem profundas, pois não? A decisão de São Paulo é mais contundente pelo seu aspecto simbólico do que pelo seu aspecto “real”, bem assim como advertia Castoriadis, em seu Instituição imaginária da sociedade: O gesto do carrasco é real por excelência, mas simbólico em sua essência!

Não há dúvidas de que, em tempos de mensalão, todos querem “mostrar serviço” e pegar mais um “notório” peixe grande, certo? O problema é o modo como estamos a fazer isso, pois certamente afetará muito mais os brasileiros comuns (os patuléus) do que os extraordinários, quer dizer, os "peixes grandes"!

O mesmo juiz que hoje pega o “peixe grande”, amanhã irá atrás do “peixe pequeno”, constante alvo do sistema penal de terrae brasilis. Umberto Eco já tratou disso em O nome da rosa (sou um felizardo: nos anos 80, fiz um semestre todo estudando Eco no mestrado), obra extremamente interessante para tratarmos desta questão, especificamente sobre os chamados fatos notórios e incriminadores e sua ligação com a polissemia das palavras… Isso fica evidente na passagem da noite do quinto dia, quando Bernardo de Gui — o grande inquisidor — promove o julgamento dos acusado da morte de Severino, o qual desde o início já possui severos vícios “processuais”, devidamente destacados pelo Abade e por Guilherme de Baskervile (uma emulação de Guilherme de Ockham, levada a cabo no romance por Eco, com o exato intuito de revelar algumas das faces do nominalismo), além do irreparável pressuposto de que os acusados eram de pronto culpados, dois integrantes da choldra da época, efetivamente (o pobre Salvatore, possuidor de doença congênita e a aldeã — que sequer entendia qualquer palavra que se pronunciava durante seu próprio julgamento — pela qual se apaixonou Adso, contador da estória e aprendiz de Guilherme) e o principal alvo, Remigio de Varagine, verdadeiro adversário político da situação, para o qual apenas era-necessário-o-processo-para-que-sua-punição-fosse-minimamente-legitimada.

Há um trecho da obra de Eco que demonstra de maneira indelével como a prática ora noticiada pela ConJur não é novidadeira, especialmente quando Bernardo de Gui contesta afirmações de desconhecimento da natureza dos fatos delituosos noticiados e consequente inocência proferidas por Remigio de Varagine, como se estas fossem comprovações de sua incriminação:

"A minh’alma é inocente e não sei o que vós pretendeis quando falais em deprecação herética", disse cautamente o celeireiro.

"Estais vendo?" exclamou Bernardo voltando-se para os outros juízes. "Todos iguais! Quando um deles é detido, apresenta-se em juízo como se sua consciência estivesse tranquila e sem reforços. E não sabem que esse é o sinal mais evidente de sua culpa, porque o justo, no processo, se apresenta inquieto! Perguntai-lhe se conhece a causa porque eu ordenei a sua detenção. Tu a conheces, Remigio?"

"Senhor", respondeu o celeireiro, "ficaria contente de sabê-la por vossa boca".

"Eis", exclamava no entanto Bernardo, "a típica resposta do herege impertinente! Percorrem sendas de raposas e é muito difícil pegá-los em falta porque a comunidade deles admite o seu direito a mentir para evitar a devida punição”.

E mais não preciso dizer. Apenas queStat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus…

Outra obra que muito bem retrata a situação dos indícios como “verdadeiro” fundamento probante de uma decisão é a de Eduardo Sacheri, chamada La pregunta de sus ojos, especialmente no momento em que são acusados e imediatamente tidos como culpados, dadas os “claríssimos indícios” que restavam disponíveis, os dois obreiros bolivianos que trabalhavam próximos ao local onde ocorrido o assassinato sobre o qual gira toda a novela, a qual rendeu um belo filme, chamado no Brasil de “O segredo dos seus olhos" (há também um programa Direito e Literatura sobre este livro de Sacheri, assim como sobre O nome da rosa).

Até as pedras daquela obra (entenderam? Obras, obreiros, pedras… Lacan se divertiria com esses significantes) “sabiam” que os bolivianos eram os culpados. No entanto…

Pois é. Prossigo. Venho insistindo há muito numa questão prosaica, sem que isso lhe tire a sofisticação teórica. Trata-se da necessidade de que os julgamentos sejam sempre por princípios, e não por presunções ou por raciocínios teleológicos. Já muito escrevi sobre isso. O Direito Processual Penal não se coaduna com enunciados do tipo “primeiro vejo se é culpado para depois encontrar as provas (ou os indícios)”. Trata-se de um raciocínio falacioso, repetindo um princípio de araque do processo penal, que não resiste a trinta segundos de filosofia: o tal “princípio da verdade real”.

Com isso, quantos acusados acabam tendo negado os seus Habeas Corpus e quantos acusados são condenados indevidamente? Quero dizer que o processo penal tem uma feição de radicalidade. Mesmo que se saiba que alguém é culpado, se não existirem provas não dá para condenar. E se alguém for preso e, diante do auto de prisão em flagrante, o juiz disser, singelamente, que “o flagrante prende por si”, não dá para fazer raciocínios teleológicos… Só tem um caminho: conceder o HC.

Alguém dirá: “Mas o indiciado merece ficar preso…”. E eu respondo, garantisticamente: “É o custo da democracia”. Juiz que não sabe decretar preventiva nem pode ser juiz. E o cidadão não pode pagar por isso. Outro alguém dirá: “É, mas a sociedade é quem pagará o preço, porque terá mais uma marginal solto”. E eu respondo, de novo e pacientemente: “Azar o da sociedade; quem mandou ter um juiz assim?” Isso é que nem na política. Elegemos mal, todos pagamos. Faculdades ruins formam péssimos profissionais. Neste caso, por que não aplicamos a tese de que “quem de qualquer modo concorre para o resultado, também é responsável pelo crime? Vamos processar o professor de Direito Processual Penal que ensinou mal ao juiz que não sabe decretar, fundamentadamente, uma prisão preventiva? Ou vamos processar a banca do concurso? Quem será “Der Mann hinter” (o homem de trás, que sabe de tudo?) No limite, poderemos processor a editora que publicou os livros utilizados pela banca, etc.

Afinal, todos não tinham o “domínio do fato”? “Todos sabiam…”

Ah, e quem usar livros simplificadores, também deverá ser responsabilizado… por qualquer coisa que acontecer no Direito no futuro. Está “claro” no artigo 29 do Código Penal!

*Coluna alterada às 16h17 do dia 2 de julho de 2013.

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