Mercado de trabalho

Inclusão de pessoas com deficiência é dever do Estado

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19 de dezembro de 2012, 7h00

O presente artigo tem o propósito de difundir alguns aspectos da inclusão social relativos à inserção no mercado de trabalho das pessoas com deficiência, assim entendidas, nos termos do artigo 1, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ex-vi do Decreto Legislativo 186/2008 e do Decreto 6949/2009, como aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (sic)

Desde logo, dois argumentos juridicamente relevantes são erigidos, em escala planetária, a partir dessa nova concepção universal acerca do quadro das deficiências sobre o perfil da condição humana: 1) não se tratam mais de meras contingências ou variáveis puramente clínicas ou patológicas, mas essencialmente sociais, a dizer, ínsitas à própria natureza individual da pessoa (com deficiência), atributo de identidade inteiramente guarnecida pela dignidade humana que a notabiliza na sociedade e como tal é protegida pelas Constituições dos Estados de Direito e democráticos; 2) que o princípio ancilar da igualdade merece uma segmentação binária entre pólos que se complementam, a saber: (2a) igualdade jurídica (de todos perante a lei, que deriva do advento das teorias liberais do século XVII) e (2b) igualdade material (relacionada com semelhantes oportunidades com que todos [desenho universal] possam legitima e validamente exercer a própria cidadania em plenitude assim no exercício de direitos quanto no cumprimento de deveres). No caso brasileiro, em particular, ensina José Afonso da Silva que a Carta Política (artigo 5º) busca aproximar os dois conceitos de isonomia ou igualdade pela sua menção associada a vedações quanto aos diversos discrímens que por ventura possam vir a ser construídos, idiopática ou preconceituosamente, contra os direitos da pessoa humana. (Silva, José Afonso da [2009]: Comentário contextual à Constituição. 6ª edição. Malheiros Editores. São Paulo, p. 72)

Convém esclarecer, por outro lado, que a luta por igualdade não pode sedimentar um território em que a ideia de sujeito de direito fique corrompida por uma falsa obsessão identitária, substituindo-se uma tragédia social por outra. Realmente, esta é a lição de Alain Touraine: El mayor peligro actual es, sin embargo, aquel que ya he mencionado, a saber, que la idea de sujeto sea corrompida por la obsesión de la identidad. Es falso, em nombre de la idea de sujeto, defender um derecho a la diferencia (Touraine, Alain [2006]: Un nuevo paradigma para comprender El mundo hoy. Paidós. Buenos Aires, p. 125). As diferenças e, pois, as desigualdades sociais devem ser entendidas como males a serem superados, mediante a necessária urgência, não como contingências naturais ou empíricas que determinam a condição humana e social das pessoas em geral.

Para a perfeita compreensão do gênero humano em sociedade vale, sim, substancialmente, a dignidade de todos e de cada um.

Com efeito, a sociedade brasileira vive um momento sem precedentes. Em que pese ser o Brasil um dos ainda poucos países que dispõem de uma legislação específica, e de grande significado técnico, as pessoas com deficiência continuam a sofrer as tragédias da exclusão social entre nós, sobretudo aquelas que compõem as classes economicamente mais desfavorecidas. Sobre isto, dizem Ana Paula Crosara de Resende e Flavia Maria de Paiva Vital, o seguinte: Para corroborar esta afirmação basta proceder à análise da baixa presença de pessoas com deficiência em setores básicos que promovem inclusão formado pelo acesso à escola, pelo acesso ao trabalho, pelo acesso ao meio urbano e rural, aos transportes e pelo acesso aos serviços de saúde e reabilitação. (Resende, Ana Paula Crosara; Vital, Flavia Maria de Paiva (assinam o texto introdutório e coordenam os comentários) [2008]: A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência: versão comentada. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Presidência da República. Brasília, p. 19)

Desse modo, a Nação brasileira está sendo chamada a colmatar os princípios e regras que emergem da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York e depois, entre nós, ratificada na forma do artigo 5º, parágrafo 3°, da Constituição Federal, com equivalência de emenda constitucional, autoaplicável e inderrogável, sequer pelos procedimentos de revisão da Carta, dado que a Convenção trata especificamente de Direitos Humanos. As disposições convencionais em foco constituem, portanto, cláusulas pétreas.[1]

Esse esforço de crescimento social e político, mediante a eliminação de barreiras dentre as quais a pobreza se destaca em países periféricos, sinaliza para a inclusão e o sentimento constitucional inclusivo que assume papel substancioso no exercício da cidadania democrática e participativa — conquanto implicar-se com o outro não é mais somente como que uma expressão filantrópica, assistencialista, mas uma atitude afirmativa que corresponde à vida social contemporânea, de igualdade e Justiça para todos. Sobre isto, Agnes Heller, para quem: Sentir significa estar implicado em algo. E acrescenta: Não é que haja ação, pensamento, fala, busca de informação, reação e que tudo isso esteja ‘acompanhado’ por uma implicação no processo; na verdade, trata-se de considerar a própria implicação como fator construtivo inerente ao atuar, pensar etc.; trata-se de considerar a implicação como estando incluída em tudo isso, por via de ação ou reação. (apud Verdú, Pablo Lucas [2004]: O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Editora Forense. Rio de Janeiro, pp. 52,53)

Quando a implicação se refere a cláusulas fundamentais da sociedade politicamente estabelecida, então essa implicação traduz um sentimento: o sentimento constitucional. E se esse sentimento trata de questões relacionadas com a inclusão, como a igualdade de todos perante a lei, guardadas as semelhantes condições para um determinado exercício jurídico, temos, então, o que no mesmo sentido se pode convencionar como sentimento constitucional inclusivo. Esse sentir envolve, ademais, três perspectivas: o sentir sobre o que é o Direito; o sentir sobre o que deve ser o Direito posto; e o sentir sobre qual a atitude a adotar — obediência/infração — perante o Direito posto. (Verdú: opus citatum, p. 54)

Para um país que pretende superar dificuldades históricas ligadas às desigualdades sociais, convém que se estabeleçam, outrossim, o quanto antes, as bases para uma Teoria Inclusiva consistente e eficaz.[2] Isto pressupõe uma comunicação adequada entre as instâncias de governo e a sociedade, suas instituições e cada cidadão, em particular, sem exclusão de ninguém. Essa tecitura em permanente construção proporciona a eliminação das distorções no sistema jurídico e na gestão pública e privada das rotinas, protocolos e programas que devem ser empenhados na defesa dos segmentos sociais vulneráveis.

Sobre isto, lamentavelmente, sobretudo os tribunais do país, mas não somente os tribunais, ainda parecem gravemente refratários a esse pioneirismo, enquanto se ressentem, na mesma obsolescência, da falta de pessoal judicial e auxiliar qualificados o bastante para o exercício sensível da Teoria da Inclusão e de suas práticas, notadamente no que tratam dos direitos e da promoção das pessoas com deficiência. Nada obstante: Os interesses presentes no cotidiano social tendem cada vez mais a ser definidos em função de grupos locais ou mesmo com mobilização nacional, objetivando a integração por meio da provocação do Judiciário ou ainda pela agressão ao modelo de acomodação social imposto pela moldura estatal. (Silva, Leonio José Alves da [2011]. Omissão administrativa e direitos das pessoas com necessidades especiais. Livro Rápido-Elógica. Olinda, p. 84)

Disso resulta um autêntico ciclo vicioso entre a existência de uma plataforma normativa digna de encômios (o Brasil é um país bem aparelhado normativamente), porque incorpora as diretivas universais em torno da matéria, mas se mantém um quadro de perplexidades empíricas na execução de suas regras, ora por desconhecimento desses fundamentos jurídicos ora por falta de vontade política dos órgãos e agentes públicos e, de resto, das instituições privadas que formam o socius na contemporaneidade. Esse quadro de ineficiência no atendimento sobranceiro e rigoroso das cláusulas pétreas que dizem respeito à promoção efetiva, e não meramente retórica ou simbólica, dos direitos das pessoas com deficiência no país reflete o preconceito, como resquício primitivista da sociedade, ainda arraigado nos corações e mentes de muitos. Sobre constitucionalização simbólica como problema (alopoiese do sistema jurídico) da modernidade periférica, Marcelo Neves: …a sociedade mundial de hoje é multifacetada e possibilita a aplicação do esquema “centro e periferia” em vários níveis. Parece-nos, porém, que a distinção entre modernidade central e periférica é analiticamente frutífera, na medida em que, definido-se a complexificação social e o desaparecimento de uma moral material globalizante como características da modernidade, constata-se que, em determinadas regiões estatalmente delimitadas (países periféricos), não houve de maneira nenhuma a efetivação adequada da autonomia sistêmica de acordo com o princípio da diferenciação funcional, nem mesmo a criação de uma esfera intersubjetiva autônoma fundada numa generalização institucional da cidadania, características (ao menos aparentes) de outras regiões estatalmente organizadas (países centrais). (Neves, Marcelo [1994]: A constitucionalização simbólica. Editora Acadêmica. São Paulo, pp. 148, 149)

Aspectos gerais
Nos últimos anos o Governo Federal, mediante a adoção de políticas públicas afirmativas, passou a empreender esforços decididos e dispensar atenção especial à defesa da emancipação das populações excluídas, dentre as quais se inserem as pessoas com deficiência no Brasil, quase sempre sujeitas, socialmente, a tratamentos incompatíveis com a sua dignidade, objeto de proteção constitucional. Variando num espectro de puro desprezo até ao assistencialismo, a condição física, intelectual, sensorial ou múltipla que divirja do senso comum tem gerado comportamentos que não são normalmente condizentes com a igualdade e o respeito que é devido a todo e qualquer cidadão, sujeito de direito interno e internacional. As pessoas com deficiência, embora vergastem algum tipo de limitação ou dificuldade, ínsita à sua própria existência pessoal, guarda potenciais que progressivamente vão sendo revelados de modo que possam, em igualdade de condições, contribuir para o crescimento do país e a elevação de nossa sociedade aos píncaros civilizatórios.

A propósito, a diversidade é o marco mais significante da humanidade e é fonte permanente de construção de valores, direitos e obrigações. Atendendo a esses postulados, o Governo, de então, através do Ministério do Trabalho e Emprego, editou uma cartilha que facilitou enormemente a compreensão da legislação aplicável à matéria que, entre nós, é fecunda, mas ainda pouco efetivada, embora ainda apresente alguns equívocos decorrentes da desatualização em face da norma convencional específica mais tarde editada e internalizada em nosso sistema, conforme mencionado (clique aqui para ler).

Esse quadro tem mudado, haja vista crescente adoção de políticas públicas no mesmo sentido. Sobre isto, vale lembrar o Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (“Viver sem Limites”), recentemente editado pela presidente Dilma Rousseff, que envolve em torno de 15 órgãos do Governo Federal, além dos estados, do Distrito Federal e do municípios. Deverão ser criados, pelo menos, algo em torno de 150 mil vagas para os cursos do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Além do mais, esse Plano tem um orçamento previsto de um aporte de R$ 7,6 bilhões até 2014. Não é pouco, mas é preciso estimular a sociedade a produzir projetos no sentido da aplicação desses recursos de um modo racional e exaustivo (clique aqui para ler)

Nada obstante, ainda falta bastante até que nos posicionemos em um status que se possa compreender como ótimo nesse campo. O primeiro passo é garantir conhecimento aplicado, o qual legitima toda ação social e política. O Governo Federal vem sinalizando nessa trilha. Cabe à sociedade deixar-se contaminar pelo sentimento constitucional inclusivo, conforme descrito anteriormente, o qual resgata a felicidade individual e coletiva de um modo global, e não exclui a ninguém, antes aponta para um futuro de mais felicidade e menos sofrimento para todos.

Pois bem, tentarei compilar algo do que foi pontificado na antes mencionada cartilha de informação legislativa sobre os direitos das pessoas com deficiência no Brasil, dentre os quais se destaca o direito ao trabalho que traduz uma garantia constitucional, conforme preceituam os artigos 6º, caput, 7º, inc. XXXI, 170, inciso VIII, e o artigo 193, da Constituição Federal. Todos esses dispositivos fundamentais estão justificados em face da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948): Toda pessoa tem direito ao trabalho, a livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego (artigo 23, item 1).

Do mesmo modo, tais dispositivos constitucionais encontram justificação na Ordem Moral estabelecida para as sociedades mais evoluídas, conforme a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1891), reproduzida, aliás, em medida significativa, recentemente, na Encíclica Caritas in Veritate do Papa Bento XVI (2009), a saber: A exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual.

Como se pode perceber claramente da história recente da civilização ocidental, os direitos sociais foram positivados tardinheiramente, e cumprem um doloroso calvário de dissensões, incompreensões e querelas ideológicas, situações, por vezes até primitivas e absolutamente sem sentido, discriminatórias, até que se tornassem instituições permanentes nos Ordenamentos Jurídicos do concerto das Nações civilizadas.

Por tudo isto, a valorização do trabalho, no dizer erudito do ministro Maurício Godinho Delgado, do TST: é um dos princípios cardeais da ordem constitucional brasileira democrática. Reconhece a Constituição a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social. (Delgado, Maurício Godinho [2010]: Curso de Direito do Trabalho. LTr. São Paulo, passim)

O quadro estabelecido
O Brasil conta com mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE-2010). Essas pessoas, porém, não circulam nas ruas, nas escolas comuns, nos locais de lazer e cultura e muito menos têm acesso ao trabalho. É hora, portanto, de reverter esse quadro. Os problemas que daí decorrem refletem na baixa escolaridade desse grupo, grande dificuldade de inserção social, de constituição de vínculos familiares para além dos lares paternos e maternos. Esse muro institucional pode e deve ser rompido por meio do comprometimento de todos.

As empresas devem, assim, cumprir fielmente a lei em questão, esforçando-se para implantar programas de formação profissional, flexibilizando as exigências genéricas para a composição de seus quadros, de modo a, objetivamente, abrir suas portas a esse grupo social em evidente estado de vulnerabilidade.

Sobre isto, a Convenção 159/83, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 51, de 28 de agosto de 1989, o que lhe outorgou força de lei (supralegalidade). Assumiu, por isso, importância primordial. Representando a posição mais atual da OIT, seu princípio basilar esteia-se na garantia de um emprego adequado e na possibilidade de integração ou reintegração das pessoas com deficiência na sociedade.

Em 13 de dezembro de 2006, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), reunida em Nova Iorque, aprovou a Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, primeiro documento de direitos humanos do século XXI e o oitavo da ONU. Foi internalizada no Brasil na condição equivalente a emenda constitucional pelo Decreto Legislativo 186/2008, depois promulgada pelo Decreto Federal 6.949/2009, que a promulgou juntamente com o seu Protocolo Facultativo, pelo qual fica reconhecida a autoridade do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU para tomar conhecimento de violações à norma convencional em relação às pessoas nela compreendidas e o poder para adotar providências.

Como situá-los no contexto da atividade produtiva?
O conceito de pessoa com deficiência que está, ademais, contemplado no artigo 2º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência implica grande reversão paradigmática na concepção jurídica do sujeito a quem se destina o referido instrumento internacional. É que, além do aspecto clínico comumente utilizado para a definição em apreço, concernente à limitação física, intelectual ou sensorial, ou múltipla, inclui-se nesse âmago gnosiológico a questão social, para estabelecer-se o alcance da maior ou menor possibilidade de participação dessas pessoas em sociedade.

As políticas internacionais de incentivo ao trabalho das pessoas com deficiência, que lutam por essa razão em desvantagem, em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Irlanda, Holanda, Reino Unido, Argentina, Peru, EEUU, Japão, China, dentre outros, envolvem providências que vão desde a reserva obrigatória de vagas até incentivos fiscais e contribuições empresariais em favor de fundos públicos destinados ao custeio de programas de formação profissional, no âmbito público e privado, objetivando, justamente, à compensação das limitações desses grupamentos sociais, os quais não podem se manter à margem do socius. Aliás, lembra Sebastião Geraldo de Oliveira que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma dentre dez pessoas no mundo apresenta algum tipo de limitação para a prática dos atos de sua vida civil, inclusive para as questões relativas à empregabilidade. (Oliveira, Sebastião Geraldo de [2011]: Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6ª edição. LTr. São Paulo, p. 161).

E constata, mais adiante, que a pessoa com deficiência costuma ser discriminada antes mesmo de pensar em inserir-se no mercado de trabalho. Diz o autor: Apesar dos notáveis progressos ocorridos, na maioria das vezes ele não tem formação adequada às suas limitações, não dispõe de condução acessível para se locomover, não conta com edifícios de fácil acesso, não desperta a simpatia nos entrevistadores; ao contrário, muitas vezes suscita rejeição. Até o papel artístico numa telenovela ou filme é representado por atores sem deficiência que se esforçam para exibir a deficiência que não possuem…(op. cit., p. 393)

Parece evidente que o fenômeno sinaliza para um quadro cronificado de discriminações, sempre odiosas, conforme o que está prescrito na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (leia-se Pessoas com Deficiência), ratificada pelo Brasil, nos termos do Decreto 3.959, de 08 de outubro de 2001, e pela qual foi definido que discriminar, em síntese: …significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte as pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.

Além disso, segundo esclarece o ministro Joaquim Barbosa Gomes, do Supremo Tribunal Federal, em obra tida como referência na bibliografia nacional especializada, as ações afirmativas, em um primeiro momento, instigaram e encorajaram as autoridades públicas, sem as obrigar, a tomar decisões em prol de grupos flagrantemente excluídos, considerando a raça, cor, sexo e origem nacional das pessoas, fatores que, até então, consideravam-se irrelevantes. A pressão organizada desses grupos evidenciou as injustiças e impulsionou o estímulo a políticas públicas compensatórias de acesso à educação e ao mercado de trabalho. Nas décadas de 1960 e 1970, diante da constatação da inoperância das normas de mera instigação, e tendo em conta o aumento da pressão dos grupos discriminados, adotaram-se cotas rígidas, obrigatórias, que vieram a compor nas escolas, no mercado de trabalho e em outros setores da vida social um quadro mais representativo da diversidade dos povos. (Gomes, Joaquim Barbosa [2001]: Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Renovar. Rio de Janeiro, pp. 35,38.)

Dessa forma, o artigo 93 da Lei 8.213/91, ao fixar, para as empresas com cem ou mais empregados, o percentual de 2% a 5% de contratação obrigatória de pessoas com deficiências habilitadas, ou reabilitadas, está a exercer ação afirmativa decorrente de lei, e cuja implementação depende das próprias empresas, muito embora sob estreita e rigorosa fiscalização dos órgãos do Estado. Trata-se de implementar uma iniciativa de combinação de esforços entre o Estado e a sociedade civil. As cotas são, hodiernamente, uma ferramenta necessária à elevação dos vulneráveis sociais, a exemplo do que sucede com as pessoas com deficiência, cujos potenciais são comumente negligenciados pelos fatores de mercado, não raramente orientados por espectros preconceituosos que materializam discriminações de diversos matizes e frustram a produtividade da sociedade como um todo por óbvias razões idiopáticas.

Lamentavelmente, inúmeros juízes no Brasil não pensam assim com desvelo em face da causa inclusivista, e também se ressentem da possibilidade de que juízes cegos, por exemplo, possam ascender, por suposta inapetência funcional, aos cargos judiciais. Sobre isto, a reserva de vagas para pessoas com deficiência, ainda que vigente o artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal, bem como do artigo 37, parágrafo 1º, do Decreto 3.298/1999, que regulamenta a Lei 7.853/1989, não costumava aparecer nos editais de concurso público para ingresso nessas carreiras. A omissão, como que folclórica, bizantina, revelava inteiro desconhecimento da participação exponencial e da qualificação com que homens elevados e muito laboriosos como Ricardo Tadeu Fonseca, desembargador do TRT da 9ª Região, com sede em Curitiba-PR, se desincumbe de suas responsabilidades funcionais. Então escolhido em razão da sensibilidade inclusivista do presidente Lula, oriundo do quinto constitucional[3] de uma passagem anterior pelo Ministério Público do Trabalho, igualmente exponencial e amplamente participativa, passou a integrar a segunda instância da Justiça do Trabalho como um pioneiro, quando já seria tempo de que essa inserção de pessoas com deficiência viesse a se tornar um lugar comum, também nos Tribunais, inclusive nos Superiores, dentre os quais o Supremo Tribunal Federal! Mesmo o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle central e externo do Poder Judiciário e da Magistratura no país, somente editou uma Resolução no mesmo sentido da norma constitucional em maio de 2009 (art. 73, Resolução 75/2009), revelando-se também tardinheiro na percepção de um problema tão insubstituível e urgente para os destinos da pátria brasileira. Ainda hoje as repartições de Justiça no país se ressentem da falta de acessibilidade plena para todos.

A inclusão social é, pois, a palavra-chave a nortear todo o sistema de proteção institucional da pessoa com deficiência no Brasil. Implica a idéia de que há um débito social secular a ser resgatado em face das pessoas com deficiência; a remoção de barreiras arquitetônicas e atitudinais — comunicacionais, inclusive! — acarreta a percepção de que os obstáculos culturais e físicos são opostos pelo conjunto da sociedade e excluem essa minoria do acesso a direitos fundamentais básicos. Cabe, portanto, à sociedade agir, corrigir-se, combinando esforços públicos e privados para a realização de tal finalidade integradora da totalidade de seus membros (desenho universal: a maioria é o todo).

Nessa decorrência, a Lei 7.853/89 buscou traçar as diretrizes centrais a serem aplicadas ao tema em estudo (Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência), ao estabelecer que:

Art. 2º Ao Poder Público e a seus órgãos cabem assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem
seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos desta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
III — na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores público e privado, de pessoas portadoras de deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência.

Reserva legal de cargos ou “Lei de Cotas”
A legislação estabeleceu a obrigatoriedade de as empresas com cem ou mais empregados preencherem uma parcela de seus cargos com pessoas com deficiência. A reserva legal de cargos é também conhecida como Lei de Cotas (art. 93, da Lei 8.213/91). Desse modo, um quantitativo percentual é estabelecido formalmente para que as empresas contratantes não encontrem motivos para descumprir dita obrigação, que deve ser permanentemente fiscalizada. A empresa vai sempre precisar contratar de acordo com uma variável estabelecida em lei e não na vontade/conveniência do contratante.

A cota depende do número geral de empregados que a empresa tem no seu quadro, na seguinte proporção, conforme estabelece o artigo 93, da Lei 8.213/91:

I — de 100 a 200 empregados………………. 2%
II — de 201 a 500……………………………………… 3%
III — de 501 a 1.000………………………………….. 4%
IV — de 1.001 em diante………………………… 5%

Para fins de reserva legal de cargos, o que é pessoa com deficiência?
No Brasil há duas normas internacionais devidamente ratificadas, o que lhes confere status de leis nacionais, que são a Convenção 159/83 da OIT e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, também conhecida como Convenção da Guatemala, que foi promulgada pelo Decreto 3.956, de 8 de outubro de 2001. Ambas conceituam deficiência, para fins de proteção legal, como uma limitação física, intelectual, sensorial ou múltipla, que incapacite a pessoa para o exercício de atividades normais da vida e que, em razão dessa incapacitação, a pessoa tenha dificuldades de inserção social.

A Convenção de Nova York agrega o componente social à condição das pessoas com deficiência, que poderá ser física, intelectual, sensorial ou mesmo múltipla, consoante ficou ressaltado.

Nesse diapasão está o Decreto 3.298/99, cuja redação foi atualizada após longas discussões no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade), pelo Decreto 5.926/04.

Logo, há de ser atendida a norma regulamentar, sob pena de o trabalhador não ser computado para fins de cota, resultando muito provavelmente em falta a empresa, que deve estar também vigilante quanto a essa obrigação essencial, de índole pública e constitucional, para o exercício de suas atividades econômicas.

Pessoas reabilitadas, por sua vez, são aquelas que se submeteram a programas oficiais de recuperação da atividade laboral, perdida em decorrência de infortúnio (acidentes do trabalho). Há de ser atestada uma tal condição por documentos públicos oficiais, expedidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ou por órgãos que exerçam funções por ele delegada, enquanto instituição autárquica.

Para recordar o que já se descreveu, en passim, alhures, veja-se o conteúdo da norma em comento (Decreto 5.926/04):

Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I — deficiência — toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano; II — deficiência permanente — aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e III — incapacidade — uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

Ao fim
A denominação utilizada para se referir às pessoas com alguma limitação física, intelectual ou sensorial, além de múltipla, assume várias formas — todas preconceituosas — ao longo dos anos. O caráter dessa evolução é permanente e construtivista e sinaliza sempre para a dignidade humana. Entre nós, vinham-se utilizando expressões do tipo “inválidos”, “incapazes”, “excepcionais” e “pessoas deficientes” até que a Constituição de 1988, por influência do Movimento Internacional de Pessoas com Deficiência e mesmo do Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em seu 37º período de sessões, formalizado pela Resolução 37/52, de 3 de dezembro de 1982, incorporou, afinal, a expressão pessoa com deficiência, haja vista o advento da Convenção de Nova Iorque. Essa nomenclatura mais ajustada à dignidade das pessoas com deficiência, nem mais nem menos do que a qualquer outra, deve ainda ser objeto de inclusão em toda a legislação pátria, ainda desatualizada em grande parte, mesmo o texto constitucional. Para a atualização da Carta, é exigida a edição de emenda de revisão objetivando exatamente conferir à Constituição Federal o seu formato inteiramente de acordo com a nova disciplina da matéria, definida em escala universal.

Convém destacar que o item 2, do artigo 12, da norma convencional em foco, descreve que serão reconhecidos como legalmente capacitados em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida, aquelas classificadas como pessoas com deficiência. Logo, o acesso dessas pessoas não será medido, para todos os efeitos, em função de suas limitações, mas em razão de seu potencial assistido, que é um dever fundamental da sociedade e não uma obrigação das pessoas que apresentem algum tipo de limitação. Seu direito é, pois, o direito à igualdade de tratamento e de oportunidades para que possa florescer os seus talentos e realizar todo o seu potencial diante da vida e de suas circunstâncias. Disso depende a plena empregabilidade desses grupamentos sociais, direito fundamental que lhes assiste. Reconhece-se, assim, à pessoa com deficiência, o direito fundamental de exigir para si o implemento das condições sem as quais não terá possibilidade de acesso aos bens da vida e às respectivas responsabilidades.

Bem por isso, o país se ressente da falta de edição de um Estatuto dos Direitos das Pessoas com Deficiência, o qual já vem sendo gestado no Congresso Nacional e por tratativas da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, diretamente vinculada ao assunto.

Todas as nomenclaturas dispostas ao longo do tempo demonstram uma tendência transformadora no tratamento que vai da invalidez e incapacidade à tentativa de nominar a característica peculiar da pessoa, mas absolutamente sem estigmatizá-la, ou diminuí-la por causa disso. A expressão “pessoa com necessidades especiais” foi um gênero que continha as pessoas com deficiência, propriamente ditas, mas também os idosos, as gestantes, enfim, quaisquer situações que implicassem tratamento diferenciado. Igualmente se abandonou a expressão “pessoa portadora de deficiência” com uma concordância em nível internacional, visto que as deficiências não se portam, estão com a pessoa ou na pessoa, caracterizando-a existencialmente, o que tem sido motivo para que se use, atualmente, a justa forma pessoa com deficiência.

Esta é a denominação internacionalmente mais frequente, conforme demonstra Romeu Kazumi Sassaki, um dos maiores cultores da Teoria da Inclusão entre nós (Sassaki, Romeu Kazumi [2003]: Vida independente: história, movimento, liderança, conceito, reabilitação, emprego e terminologia. Revista Nacional de Reabilitação. São Paulo, p. 12,36).

E, de acordo com o que ensina o professor Francisco Lima, outro expoente brasileiro da cultura inclusiva, coordenador do Centro de Estudos Inclusivos da UFPE, entende-se que:

Pessoas com deficiência não são incapazes, muito embora possam apresentar limitações/restrições para esta ou aquela função. Destarte, uma situação restritiva hoje a esta ou àquela área da deficiência, para o exercício laboral, poderá não o ser amanhã, sendo suplantada, por exemplo, por meio da tecnologia.

Sob essa compreensão, a inclusão laboral não é fruto de uma identificação de postos próprios a certas deficiências, mas da busca de adequação dos postos às habilidades dos empregados qualificados para esses postos.

A inclusão não se alcança por uma receita pronta e acabada, porém, promove-se num “contínuo fazendo”, e não no preparar-se primeiro para incluir depois.

O mais importante, enfim, é lembrar aqui também o que diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1948): Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. (Lima, Francisco José de [   ]: Inclusão da pessoa com deficiência no ambiente social de trabalho: quebrando barreiras atitudinais para contratação. Seminário CELPE/CEI/UFPE)

Para concluir
De tudo o que aqui se expõe, constata-se não só a pertinência contemporânea do tema, mas sua importância institucional na construção permanente de uma sociedade mais justa, qualificada e condizente com o seu potencial de liberdade, emancipação e vida plena para todos.

Verifica-se também a absoluta indispensabilidade da política de cotas,enquanto persistirem pobreza e desigualdade social nas relações humanas, caso das sociedades de economia periférica.

Do mesmo modo, considera-se que toda análise qualitativa de meios e resultados, quanto à empregabilidade das pessoas com deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla depende, sobretudo, do exercício pleno da inclusão, enquanto pressuposto social de resgate das desigualdades e das injustiças cronificadas no socius. Essa atitude de incluir — ultima ratio — consiste em assegurar o acesso, a permanência e os recursos assistivos às pessoas com deficiência no respectivo espaço de trabalho.

Cumpre, pois, sem obsessão identitária, eliminar as deficiências, elidir as limitações, prevenindo-as, compensando-as ou reabilitando-as, em geral e, muito especialmente, no âmbito do trabalho, nunca, porém, com diminuição das pessoas com deficiência, as quais devem ter sua dignidade humana inteiramente respeitada.

A inclusão emancipatória das pessoas com deficiência, inclusive quanto à questão da empregabilidade, é dever da sociedade e do Estado e direito delas, enquanto persistirem as condições de desigualdade que marcam o perfil de países periféricos como o Brasil.


[1] Cláusulas pétreas são hipóteses de limitação absoluta ao poder de revisão constitucional.

[2] Incluir é verbo que dá ideia de pertencimento. Para tanto, pressupõe-se que alguém que não se encontre incluído, ou pertencido ao grupo do qual se acha, outrossim, excluído por qualquer motivo ou condição, se apodere das condições pelas quais essa inserção se tornará factível. Importa na superação de barreiras físicas e/ou atitudinais. As normas, protocolos, rotinas, programas de trabalho, princípios, ideias, vontades e sentimentos que se ligam, epistemologicamente, a esse objeto configuram uma base teórica interdisciplinar capaz de produzir eficácia aos modelos e regras que, apriorísticos, preconizam a igualdade de todos, conforme o princípio do desenho universal, mas carecem, ante a complexidade dessa construção, de adequada e crescente aplicação e obediência prática em direção ao ótimo.

[3] Quinto constitucional designa a proveniência não de carreira judicial de parcela dos membros dos Tribunais brasileiros.

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