Direito Comparado

O amor desapareceu do Código Civil brasileiro

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

19 de dezembro de 2012, 7h00

O  amor desapareceu do Código Civil. Sim, ele esteve presente no extenso período de 1917-2001, quando da vigência da codificação de Beviláqua. O amor, é verdade, havia entrado de maneira discreta, quase imperceptível, no título relativo às várias espécies de contratos. Veja-se: o amor não se aninhou no Direito de Família, muito menos, como seria de se esperar, como um dos deveres conjugais, quais sejam: a fidelidade recíproca; a conservação da vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência e o sustento, guarda e educação dos filhos (artigo 231, CCB/1916). Seu correspondente no Código em vigor, o artigo 1.566, mantém os deveres nominados, com acréscimo do “respeito e consideração mútuos”.

O legislador de 1916 não determinou que os cônjuges se amassem ou que amar fosse um dever reciprocamente implicado e exigível entre eles. Agora, devem eles respeitar-se e considerar-se. Respeitar, segundo os dicionários, é ter por outrem um sentimento tal que o leva a tratá-lo com “grande atenção, profunda deferência; consideração, reverência”, como se lê no Houaiss. É estimar, considerar, mas também obedecer, acatar, recear. O respeito, em seus extremos, vai da deferência até o medo. Nesse sentido, a consideração confunde-se com o respeito. O uso das duas palavras é uma simples maneira de pôr ênfase ao comando legal, que já se bastaria em si pela mera invocação ao respeito. 

O Código Beviláqua e o Código Reale insistem em algo que os tempos modernos (rectius, seriam pós-modernos?) consideram anacrônico: os cônjuges devem manter vida em comum, porém, “no domicílio conjugal”.  Os casais de nosso tempo, e muitos há que assim vivem, violariam o dever do artigo 1.566 do Código Civil se não tiverem o mesmo domicílio conjugal.  A doutrina tem rejeitado essa interpretação restritiva e contemplado as situações excepcionais de pessoas que, por razões ligadas à profissão, como militares ou representantes comerciais, necessitam viver em domicílios diversos.[1] 

Uma vez mais, o amor tratou de fugir deste escrito. Afinal, onde ele se “domiciliava” no Código Civil de 1916? Sim, é o caso de voltar a ele. Bem, o amor estava na gestão de negócios! Como são verdadeiramente insondáveis os desígnios do codificador. A gestão de negócios, na boa linguagem clássica, é a administração oficiosa de interesses alheios. Alguém atua no interesse de outra pessoa, sem mandato, sem representação, sem ordem expressa, apenas com o intuito de protegê-lo ou de conservar os direitos do dominus (como é chamada a pessoa em favor de quem o gestor interfere).

Imagine-se em uma excursão para um país estrangeiro, juntamente com outras pessoas que contrataram os serviços de uma operadora de turismo. Eis que um dos turistas (que você nem ao menos sabe direito o nome) tem uma síncope em frente à estátua de Rolando, na Cidade Livre e Hanseática de Bremen, na tarde livre da excursão. Você provavelmente vai ampará-lo, procurar ajuda médica, acompanhá-lo ao hospital, assumir diversos gastos e esperar até que alguém da operadora ou da família dele tome à frente dos problemas  e libere-o dessa situação. O dominus, ou dono, na linguagem do Código Civil de 2002, deverá ressarci-lo dessas despesas.

A doutrina não considerava a gestão de negócios um contrato, posto que estivesse colocada no título das várias espécies contratuais no Código de 1916. Atualmente, com melhor técnica, a negotiorum gestio está inserida no título dos “atos unilaterais”, especificamente nos arts. 861-875, o que é mais consentâneo com sua natureza, pois não há o prévio acordo de vontades. Caio Mário da Silva Pereira oferece uma perfeita síntese dos pressupostos necessários à gestão de negócios: “1) tratar-se de negócio alheio, pois que, se for próprio, é pura administração; 2) proceder o gestor no interesse do dominus, ou segundo a sua vontade real ou presumida; 3) trazer a intenção de agir proveitosamente para o dono; 4) agir oficiosamente, pois que, se tiver havido uma delegação, é mandato; 5) limitar-se a ação gestor a atos de natureza patrimonial (negócios), uma vez que os de natureza diferente exigem sempre a outorga de poderes”.[2]

Eis que esse trânsfuga, que é o amor, mais uma vez sai de cena discretamente de nosso texto. De fato, ele só é exuberante e chamativo nos gestos dos casais apaixonados ou quando paixão há em excesso. E, não se esqueça,  quando  também a paixão é excessiva em sua falta, o que se nota nas rumorosas brigas de alguns enamorados, que fazem questão, seja pela mímica, seja pela voz, de danificar o patrimônio comum ou perturbar o sossego dos que estão próximos.  Os advogados que atuam na área de Direito de Família bem o sabem: às vezes, as audiências com casais em processo de divórcio são mais pesadas e tristes do que uma equivalente numa vara criminal. Ali estão pessoas que se amaram e que parecem se odiar repentinamente.

Bem, voltemos ao Código. O gestor de negócios deve agir com diligência no trato das coisas do dono. E responderá por eventual prejuízo que lhe causar, desde que comprovada sua culpa (artigo 1.336, CCB/1916;  artigo 866, CCB/2002).  E se o dano causado ocorrer por um caso fortuito? A resposta encontrava-se no revogado artigo 1.338, a sede material do “amor” no Código de 1916: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesses deste por amor dos seus”. Na linguagem atual, correspondente ao artigo 868, diz-se não mais “por amor dos seus” e sim “ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus”.

Chega a ser anticlimática essa aparição do amor no velho art. 1.338 do Código Civil revogado. Se olharmos mais de perto, não é o caso de se falar em anticlímax. O gestor obrigar-se-ia ao ressarcimento, mesmo em hipótese típica de irresponsabilidade por caso fortuito, quando preterisse os interesses do dono ao agir “por amor dos seus”. A proteção, o amor, o cuidado, a prevenção e o desvelo de quem ama (um cônjuge, um filho ou um pai) arruinariam o gestor.  Explicava essa hipótese um dos  grandes clássicos do Direito Civil do século XX,  João  Manuel de Carvalho Santos: “Não que isso dizer que o gestor não possa abandonar a gestão, para tratar de interesses seus, quando estes estiverem sendo prejudicados, nos termos por nós já expostos, mas isso só será possível se tomar a cautela de avisar o dono do negócio, para que este assuma a direção do mesmo, ou nomeie procurador que o administre e o conclua”.[3]

Mais do que uma explicação técnico-jurídica para a preterição dos interesses de alguém em nome do “amor dos seus”, é de se perceber algumas interessantes nuances dessa opção legislativa, a qual faz recordar outra muito curiosa: a criação de uma pena privada para o ausente que retorna, após a sucessão provisória, e fica comprovado que “a ausência foi voluntária e injustificada”. Nessa circunstância, o Código Civil de 2002, inovador em relação ao Código de 1916, estabeleceu a perda, em favor do sucessor, de “sua parte nos frutos e rendimentos” (parágrafo único do artigo 33). Sobre isso, em outra oportunidade, faremos uma singular aproximação com a parábola bíblica do filho pródigo, que aparentemente foi “revogada” pelo codificador de 2002.

Voltemos às nuances. Bem, o legislador brasileiro, ao menos em normas constitucionais e legais, não é muito sensível a juridicizar o amor. Além do Código de 1916, que só conta em termos históricos, no ordenamento vigente, só conseguimos encontrar o amor no Decreto 3.087, de 21.6.1999, publicado no DOU de 22.6.1999, que “promulga a Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, concluída na Haia, em 29 de maio de 1993”. E ele não está propriamente nos artigos da convenção, mas em um de seus consideranda: “Os Estados signatários da presente Convenção, Reconhecendo que, para o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, a criança deve crescer em meio familiar, em clima de felicidade, de amor e de compreensão;(…) , acordam nas seguintes disposições”.  Reconheçamos. O exemplo não é dos melhores: o amor não figura como norma e o diploma, posto que internado por um decreto, é uma convenção internacional. 

Não é o caso de desistir. O amor aparece em um lugar insuspeito (ou jamais suspeitável, como queiram): o Estatuto dos Militares, a Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980, em cujo artigo 27, diz-se que “são manifestações essenciais do valor militar”, além de outras, “o amor à profissão das armas e o entusiasmo com que é exercida”. Outro exemplo polêmico, para se dizer o menos. A referência ao amor não é ao sentimento de alteridade, de “querer estar preso por vontade” ou de “um não querer mais que bem querer”, como definiu Luís Vaz de Camões, em seus célebres sonetos. O amor à profissão das armas, por mais nobre e respeitável que seja, não é o amor ao próximo. Embora, o casamento com  a profissão certa seja um dos matrimônios mais estáveis e felizes de que se tem notícia. 

Voltemos à pesquisa. As fontes legislativas esgotaram-se. É o caso de recorrer ao universo das instruções normativas, portarias e atos de igual dignidade. 

Na Portaria 413, de 7 de março de 2012, do Ministério da Justiça, instituiu-se “o emblema do Departamento de Polícia Rodoviária Federal”. Uma vez mais a decepção: o amor não aparece em qualquer de seus seis artigos, mas no anexo II, que apresenta a “descrição heráldica” do emblema. Ali se explica que um dos elementos do emblema é o “símbolo de vida, de atividade, da ciência, do amor patriótico, como também de manutenção de uma tradição viva”.

O amor patriótico é muito relevante, mas não é a espécie que se busca nesta exaustiva investigação. Além da portaria do Ministério da Justiça, nada mais foi encontrado. 

Atualmente, deseja-se alterar o dístico da bandeira do Brasil para lhe acrescer a palavra “amor”, além de “ordem e progresso”. De fato, o lema positivista original, de Augusto Comte, dizia: “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. No projeto de lei submetido ao Congresso Nacional, fez-se alusão a essa circunstância histórica para se defender a mudança do pavilhão nacional.

Por agora, é importante apresentar uma questão: por que o Direito (ou melhor, o ordenamento jurídico) é tão pouco receptivo à presença do amor em suas normas? Note-se que o “ódio”, por exemplo, aparece em nada menos que 16 documentos, o que se justifica pela circunstância de pretender reprová-lo como conduta humana.

Os conceitos metajurídicos estão de volta à moda nos últimos tempos. Falar-se em “sentimento”, “sensibilidade”, “paixão”, “compaixão”, “afeto”, “carinho” e “humanidade” em acórdãos, sentenças ou livros de doutrina  tornou-se algo bem visto.  Não se pode esquecer que, ao tempo de Justiniano, quando as tradições romanas desapareciam no Ocidente, tomado pelos bárbaros, a benevolentia, a caritas (que não é senão  o amor), a equitas e outras expressões que apelavam à metafísica ganharam enorme importância, a ponto de entrar para alguns textos jurídicos. 

A reflexão sobre o “amor” no Direito pode-se converter em um exercício de pieguismo ou assumir a forma de debates totalmente sem fundamentação teórica. Fenômeno extremamente comum na dogmática e na jurisprudência contemporânea, o que é lastimável. O Direito não se pode transformar em um “beco sem saída do senso-comum”.  Se conseguirmos fugir dessa armadilha, eis que há margem para algum tipo de (interessante) debate. 

Retomando a questão anteriormente proposta, sobre essa eloquente ausência do “amor”,  ela talvez possa ser respondida sob duas ópticas:

1. O Direito ocupa-se de direitos e deveres (ou obrigações) que são, em geral, correlatos. As relações amorosas não são exigíveis ou executáveis, daí os códigos de 1916 e 2002 não terem colocado o amor como um dever conjugal. Ama-se por “querer estar preso por vontade”. Afinal, o amor é “servir a quem vence o vencedor; é ter com quem nos mata lealdade”, recitando o soneto camoniano. 

2. A utilização do amor, em uma norma, pode ser desastrosa para o próprio amor, que se contaminaria com a imperfeição humana, a qual, por sua vez, contagiou o Direito desde seu nascimento, pois não há nada mais próximo das baixezas (e das grandezas), dos vícios (e das virtudes), da sordidez (e da magnanimidade) que o Direito. Cada porção de justiça é acompanhada de uma idêntica parte de injustiça. Fazer justiça é, muita vez, gerar uma injustiça. Com o amor, não é assim e não pode ser assim. 

Na próxima coluna, tentar-se-á expor como o Direito estrangeiro trata essa palavra tão intensa e significativa para o homem ocidental. E, evidentemente, desenvolver um pouco mais as hipóteses 1 e 2. 


[1] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 172; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; OLIVEIRA, Andréa Leite Ribeiro de. Domicílio no Código Civil de 2002. Revista Forense, v. 102, n. 388, p. 79-91, dez. 2006. p. 90.

[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14. ed. Atualizada por Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 3. p. 380.

[3] CARVALHO SANTOS, João  Manuel de. Código Civil brasileiro interpretado (principalmente do ponto-de-vista prático): Arts. 1.265-1.362. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,  1992. v. XVIII. comentários ao art. 1.338.

 

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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