Justiça Tributária

O que preocupa na Lei 12.741 é o guarda da esquina

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

17 de dezembro de 2012, 7h00

Spacca
O parágrafo 5º do artigo 150 da Constituição Federal ordena desde a sua promulgação há 24 anos que os consumidores devem ser esclarecidos sobre os impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. Mas só agora, no dia 8 é que foi sancionada a Lei 12.741 que regula o assunto.

A origem da lei está no trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, com participação da Associação Comercial de São Paulo e outras entidades, cujos estudos serviram de base para o PL 1.472/2007, calcado na iniciativa popular (CF artigo 61, parágrafo 2º), trabalhos esses que tiveram início em 2006. A justiça demora, mas a lei também.

A determinação constitucional é, sem dúvida, instrumento da Justiça Tributária, na medida em que procura tornar um pouco transparente o relacionamento entre o cidadão que paga os impostos e o governo que os arrecada. Mais uma vez verificamos que não basta termos direitos assegurados pela Carta Magna, mas temos que batalhar para que sejam viabilizados. 

Ao ver calculado na nota fiscal o quanto desembolsou como imposto, o cidadão aperfeiçoa sua percepção a respeito da carga tributária. Poderá o mecanismo ser útil a um exercício mais amplo da cidadania, especialmente quando o brasileiro adotar o hábito de exigir de seus representantes no legislativo que adotem atitudes para defesa dos interesses coletivos. Assim, espera-se, não receberão mais votos aqueles politiqueiros que, logo após a eleição, começam a pensar na única coisa que lhes interessa: a próxima eleição, os cargos, as verbas, enfim, a rapinagem de sempre.

A lei, que  só entra em vigor dentro de seis meses, já traz algumas dúvidas. O primeiro questionamento que pode ser feito é com a espécie e a quantidade de impostos que devem ser demonstrados nas notas ficais. Diz a lei que devem ser informados os valores pagos de ICMS, ISS, IPI, IOF, bem como o imposto de importação, PIS/Pasep e Cofins/Importação, quando se tratar de produto que tenha mais de 20% de componentes ou insumos importados.

Além dos impostos, a lei pretende que sejam discriminadas também as contribuições sociais (PIS e PIS/Pasep) bem como a Cofins e a Cide, esta última no caso de combustíveis. Cria-se ainda a obrigação de indicar o valor das contribuições previdenciárias de empregados e empregadores, quando o pagamento do pessoal for custo direto do serviço ou produto.

Vê-se pois que a lei não apenas regulou a ordem constitucional, mas ampliou seu alcance. Ainda assim não nos parece que sua constitucionalidade possa ser questionada, pois a lei ordinária pode definir a obrigação tributária acessória. 

Por outro lado, o texto legal admite a possibilidade da “informação do valor aproximado” e as alternativas de informação através de painéis ou meios eletrônicos dos “valores aproximados”. 

Note-se que a CF no citado parágrafo 5º menciona apenas "impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”, nenhuma referência fazendo sobre contribuições, sejam elas sociais(PIS, Cofins) ou de intervenção econômica (IOF, Cide).  Não parece razoável que algum contribuinte venha a omitir dos cálculos as contribuições, a pretexto de que não foram citadas no texto da CF. 

Certamente uma das preocupações dos comerciantes será com a fiscalização da obrigação. O artigo 5º da lei manda aplicar as penalidades do Código de Defesa do Consumidor a quem não cumprir as novas obrigações. Aliás, o consumidor foi amplamente protegido na CF, inclusive com uma cláusula pétrea (artigo 5º, XXXII) mais um artigo (170) e mesmo com um ADCT (artigo 48) que impôs prazo curto para que o congresso baixasse o código de defesa dos consumidores. Resumo da ópera: os constituintes quiseram proteger os consumidores, enquanto os contribuintes ficaram esquecidos por 24 anos.

Pois o artigo 3º da Lei 12.741 altera o artigo 6º do CDC, que passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

Tudo indica que o legislador não entendeu cabível uma interpretação literal do texto constitucional, deixando de fora o que não seja imposto no sentido estrito ou legalista. 

Quando se inseriu a ordem do parágrafo 5º do artigo 150 na CF, citaram-se os impostos,  não as contribuições (sejam quais forem) e menos ainda as taxas. O constituinte assim agiu porque sabia que apenas os impostos é que não possuem destinação específica. Somente eles é que servem exclusivamente para fornecer ao orçamento público os recursos destinados à consecução do bem comum. 

Em outra situação completamente diferente estão as contribuições e as taxas. São espécies de tributos, como os impostos também são. Mas enquanto a receita destes serve para qualquer coisa que a lei orçamentária fixar, a receita daquelas (taxas e contribuições) possuem destinação específica, vinculada.  

Taxas são devidas na prestação de serviços ou exercício do poder de policia, enquanto contribuições vão viabilizar programas sociais, regular mercados ou fazer face a obras públicas de que resultem valorização imobiliária.

O fato de que o Congresso tenha aprovado a inclusão de tributos que não são impostos para efeito de exigir sua presença no cálculo que constará do documento fiscal como se imposto também fosse tem lógica e se justifica ante o fato de que, embora são sejam tecnicamente impostos, aqueles tributos fazem parte do custo da mercadoria ou serviço, sendo suportados pelo consumidor, o cidadão. Esse é o espírito da coisa: o consumidor precisa saber com clareza qual é a parte da mercadoria ou serviço que vai para os sofres públicos. Não interessa muito essa firula de saber se é imposto, taxa, contribuição, etc. 

O artigo 5º da nova lei manda aplicar em caso de inobservância as normas do CDC, que são muito amplas, muito genéricas, podendo dar margem a subjetivismos e até mesmo a ações ilícitas. 

O artigo 56 do CDC traz um enorme elenco de medidas punitivas, inclusive de natureza penal. Ainda recentemente um comerciante chegou a ser detido pela policia civil, porque comercializava uma mercadoria cujo rótulo omitia determinada informação. Abriu-se inquérito, liberando-se o empresário de imediato, mas fregueses de sua loja viram a polícia levando o empresário para prestar depoimento. Não foi uma boa propaganda para a loja, claro. 

Trata ainda o mesmo artigo da aplicação de multa, apreensão, inutilização e até cassação do registro do produto, proibição de fabricação, cassação de licença do estabelecimento, interdição, intervenção administrativa etc. Faltou apenas dizer em açoitar, enforcar, fuzilar ou esquartejar alguém.

Pior: diz o CDC (cujas normas punitivas serão aplicadas) que "as sanções previstas (…) serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento administrativo”.  

Ou seja: escancara-se a porta do abuso, do arbítrio e possivelmente da corrupção, caso não se faça uma regulamentação ponderada, sensata, que torne a lei exeqüível sem se tornar mais uma dor de cabeça para os comerciantes. Precisamos pressionar nossas entidades de classe para que cessem as eventuais comemorações sobre a lei, que é boa e tratem de buscar uma regulamentação eficaz e justa. Afinal, não nos preocupa a decisão do Congresso e da presidente ou o decreto do ministro. O que nos assusta é o que possa fazer com a lei o guarda da esquina.

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    é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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