Senso Incomum

No mensalão, morto não conta...Mas desconta!

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13 de dezembro de 2012, 7h49

Spacca
Há uma coisa na teoria do Direito contemporâneo que se chama coerência e integridade. Andam, assim, praticamente juntas. Uma decisão deve ser coerente com o que vem sendo decidido e a integridade é o que mantém o sistema coeso. No fundo, a integridade a coerência recuperam o conceito de tradição. Ou seja, o Direito deve ter DNA. Assim como a nossa relação com o mundo deve ter uma espécie de “DNA hermenêutico”. Não posso sair por aí trocando o nome das coisas. Somos, digamos assim, constrangidos pela tradição. Eu não digo o nome das coisas com as quais lido no cotidiano  porque “quero”, mas, sim, porque disso nem me dou conta, uma vez que estou nesse constrangimento, no sentido de que “não disponho das coisas”.

Por isso, no Direito também não posso “dispor dos conceitos”. Quando digo determinada coisa — mormente no plano de uma decisão — isso gera uma cadeia discursiva com a qual não posso romper “só porque quero”. Só posso romper com esse “vínculo de sentido” a partir de uma fundamentação consistente e com um ônus: Uma vez rompido, inicio outro. E disso se extrai o DNA. Nas próximas decisões, terei que decidir desse (novo) modo.

Digo isso para mostrar minha perplexidade (minha perplexidade é carinhosamente hermenêutica) com a absolvição de três acusados do mensalão, sob o argumento de que um quarto membro — esse número que é condição de possibilidade para o conceito de QUA-drilha — morreu. Logo, sem esse quarto membro, não há essa QUAdrilha.

Mas, vamos à decisão, fácil de entender, até porque brevíssima. A lavra do voto é do ministro Marco Aurélio: 

No tocante a Pedro Correa Andrade Neto, João Claudio Genor e a Enivaldo Quadrado, temos no processo apenas três acusados. O mesmo raciocínio que me levou a não reconhecer a quadrilha no que houve o desmembramento do processo, permanecendo apenas dois, leva-me a ter como descaracterizada a quadrilha ante o fato de não podermos julgar presente a extinção da punibilidade, […] leva-me a considerar o fato de que ficou manca a quadrilha no que teria sido falecido José Janene. Não posso concluir que José Janene, já que não está em julgamento, seria integrante de uma quadrilha. Se não posso assentar essa premissa, ela fica reduzida ante o pronunciamento do tribunal a apenas três integrantes. Por isso evoluo para acompanhar a divergência no tocante ao crime de formação de quadrilha quanto a Pedro Correa Andrade Neto, João Cláudio Genor e Enivaldo Quadrado”. (transcrito do Youtube)

Quais são os efeitos colaterais dessa posição? A partir de agora, até mesmo um crime qualificado por concurso de agentes, em havendo a morte de um deles, já não se poderá acusá-lo pela qualificadora. O crime ficou “manco” (para usar a expressão do ministro Marco Aurélio) pela morte de um corréu. No caso específico do mensalão, é difícil compreender porque a morte de um dos quadrilheiros teria o condão de tornar “manco” esse crime. Quer dizer que, em um assalto cometido entre cinco pessoas, os quais poderiam ser acusados também por quadrilha, em havendo a morte de dois deles durante o tiroteio no banco, não poderemos imputar aos sobreviventes o crime de quadrilha, porque não poderemos “assentar essa premissa”, para usar as palavras do voto? Frise-se que o réu José Janene morreu não durante o crime, mas durante o desenrolar do processo. Duas coisas prosaicas: uma, no Direito Penal, o que vale para aferição do crime (e de sua classificação legal) é a data do fato em que ocorreu ou se exauriu;  mais: uma quadrilha pode ser formada, inclusive, com a presença de um menor (ele conta para chegar ao número cabalístico quatro). Aliás, não faz muito, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal negou HC para um acusado de roubo, que tentava provar a inexistência de coautoria, em razão de que o aludido “co-réu” era inimputável (menor). Para o ministro Dias Toffoli, trata-se de caso novo, sem precedentes, mas votou no sentido de denegar a ordem: “O fato de o crime ter sido cometido por duas pessoas, uma delas menor inimputável, não tem o condão de descaracterizar que ele foi cometido em coautoria”, afirmou. O ministro lembrou também que, no caso do crime de formação de quadrilha, a participação do menor entra na contagem dos partícipes para a sua caracterização. O entendimento do relator foi seguido por unanimidade. 

Mas, o que deve ser ressaltado nesse case? O que deve ser lembrado é que o ministro Marco Aurélio, na ocasião, assim se pronunciou:  “Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir” (…) "A majorante apenas requer a participação de mais de uma pessoa no crime”, concluiu. Correto: Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.  Por isso, com todas as minhas sinceras vênias (para usar uma expressão muito presente nas seções do STF), no caso de José Janene, também não cabia ao intérprete distinguir… Ou seja, a lei não disse, em nenhum momento, que a morte de um dos membros da quadrilha —restando, assim, apenas três — teria o condão de afastar o tipo legal. 

Esse é um dos problemas sérios do Direito em terrae brasilis. A sua fragmentação e o seu pragmaticismo. O que é ser um pragmaticista? Ou um pragmático? É quem proferir decisões ad hoc. Resolve um problema, mas não se dá conta de que pode estar criando centenas de outros. Afinal, uma Suprema Corte irradia seus efeitos — mormente no plano simbólico — para todos os demais componentes do sistema jurídico. Assim, quantos processos poderão sofrer esse influxo proveniente do voto do ministro Marco Aurélio? Por que um patuleu qualquer não poderá ser beneficiado, em hipóteses quetais, quando morre o quarto integrante da quadrilha, em circunstâncias similares ao caso José Janene? E nos casos de coautoria? Vale a tese do voto do ministro?

Ou o voto serviu apenas para esse caso? Só que caímos em outro problema: A ideologia do caso concreto. Sempre se disse que o Direito é uma “questão de caso concreto”. É verdade. Só que o Direito não é um sistema fragmentado onde podem ser encontrados casos concretos incongruentes entre si. Um sistema não se faz com partes isoladas. Cada uma delas tem, digamos assim, uma “função”.

Assim, o Direito brasileiro enfrenta dois problemas: De um lado, há um conjunto de juristas (e julgadores) que buscam resolver os casos baseando-se em conceitos pré-prontos (prêt-à-porters), partindo de deduções. A produção dos manuais é forte nesse sentido, porque é uma autêntica fábrica de conceitos, como “legítima defesa não se mede milimetricamente”, “a palavra da vítima nos crimes de estupro é de crucial importância” etc. Nestes casos, há uma verdadeira (ou falsa, é claro) volta a um passado remoto, em que os sentidos estavam na essência das coisas ou que as palavras refletiam essa essência. Essa postura parte da tese de que existem máximas de verossimilhança no cotidiano, aplicáveis aos fatos da vida… Ora, não está errado dizer que “legítima defesa não se mede milimetricamente”. O que acontece é que essa “máxima” pode não ser verdadeira no caso concreto. Entretanto, o que se faz é pegar o caso, torcê-lo (amassá-lo) e “enfiá-lo” dentro do conceito. Com isso, o conceito “esconde” o caso concreto. Essas práticas são muito comuns em face do aumento da cultura simplificadora que se vê por aí. Uma fábrica ficcional de “respostas-antes-das-perguntas”. Pura “metafísica jurídica”.

Mas há outro grupo que, ao contrário dos primeiros que partem “de cima para baixo”, parte de “baixo para cima”, como se fosse possível fazer induções interpretativas. Trazem resquícios fortes de realismo jurídico. Partem do “fato” (sic) e depois “aplicam a lei”, como se fato e lei pudessem ser cindidos. Neste ponto, realismo jurídico e pragmati(ci)smo andam de mãos dadas (claro que, na maior partes das vezes, de forma inconsciente). Isto faz com que o “fato”, uma vez sofrido o acoplamento, tenha o sentido construído de baixo para cima. Logo, a “parte de cima”, a lei, o tipo penal, etc, fica sem importância. Exatamente como no caso do falecido José Jatene. O fato de sua morte adquiriu plenipotenciaridade, obnubilando o conceito de quadrilha, que sempre existiu, independente de sua morte (que ocorreu apenas durante o processo). É, enfim, a coisa escondendo o seu conceito.  

Um olhar hermenêutico sobre o Direito afasta essas duas teses (vistas de modo simples, podem ser chamadas de dedutivas e indutivas — estou sendo generoso, é claro!). De há muito que a contemporânea teoria do direito avançou para além disso. Gadamer, por exemplo, inovou ao mostrar que não há uma cisão entre interpretar e aplicar. Na verdade, sempre aplicamos (applicatio). Eu não interpreto para compreender, e, sim, compreendo para interpretar. Assim, antes de examinar o evento morte do acusado Jatene, há um todo compreensivo que se apresentava desde o início. Do todo para a parte, da parte para o todo, completando, assim, um círculo virtuoso (e não vicioso). O que não podia ter sido feito é “isolar” esse evento morte, fazendo com que ele “exterminasse” o evento objeto da controvérsia, isto é, o de que, ele e mais três, formaram uma quadrilha. Sua morte — perda lamentável, é claro — não pode ter o condão de alterar um evento que já se dera e já se incorporara no âmbito da compreensão dos intérpretes envolvidos no julgamento. 

Não é possível atravessar o abismo gnosiológico do conhecimento e depois retornar para construir a ponte pela qual já se passou (se cheguei do outro lado, é porque lá já estive; então passei pela ponte… que não pode ser construída depois que já por ela passei). Trata-se de uma aporia; um dilema sem saída. Deduções ou induções nos pregam peças. No caso em pauta, o Supremo Tribunal Federal já chegara do outro lado da ponte. Tardiamente, construiu-se uma ponte pela qual a maioria já passara… 

A dúvida que fica é: Quanto tempo levará para que os manuais elaborem esse novo conceito prêt-à-porter decorrente desse julgado? E como ele ser(i)á? Arrisco um palpite: “Se com a morte de um ou mais integrantes da quadrilha não restar o número mínimo de quatro, o crime não estará configurado”. Parece bom, não? Ou: “A exigência do número mínimo de integrantes do crime de quadrilha se aufere no final do julgamento”. “N” variações serão possíveis.  

De todo modo, tem-se, inexoravelmente, depois de cada aplicação “indutiva”, a formação de um conceito, a partir do qual acontecerão novos julgamentos “dedutivos”. Uma coisa sempre leva à outra e vice-versa…! A dogmática jurídica (re)constrói-se assim. Em um mix de pretensas deduções e induções…!

Numa palavra final: Já escrevi muito sobre o que seja “a aplicação da lei” ou da “aplicação da letra da lei” (sic — seja lá o que isso quer dizer). Reporto-me a um conjunto de colunas sobre isso, como “E a Professora me disse” (clique aqui para ler). O que quero dizer é que, com Elias Diaz, na democracia, falamos de outra legalidade: “A legalidade constitucional”. Isso significa afirmar que os limites semânticos (não há norma sem texto e não há texto sem norma) acabam sendo importantes. Isso vale tanto para o caso da caracterização do crime de quadrilha como para a delimitação da competência da Câmara para cassar os mandatos dos parlamentares. Está na Constituição. E a Constituição tem uma “congruência prática”, pois não? Mais do que isto, ela deve ser analisada a partir dessa “congruência”. Por isso, os dois dispositivos que tratam da matéria (artigo 15, III e 55, VI, da CF) não são contraditórios, mas, sim, congruentes entre si. Quem declara o término (extinção) do mandato é o Parlamento. E não o Judiciário (nota: esta coluna foi escrita antes da definição do quinto voto a respeito).

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