Os princípios e a sereia

Relativização dos princípios justifica tudo

Autores

  • Leandro Correa de Oliveira

    é advogado doutor em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ) mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) professor dos cursos de graduação pós-graduação e mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

  • Edson Vieira da Silva Filho

    é professor da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Mestre pela Universidade São Francisco (USF) e pela UFPR. Doutor pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) e pós-doutorando pela Unisinos.

12 de dezembro de 2012, 6h00

Faça-se a luz! E a luz foi feita. E como era boa foi separada das trevas…

E das trevas do medievo faz-se a luz e ela ilumina com força que lhe empresta a razão cartesiana o longo caminho da modernidade, que aposta na plenitude do verbo feito à imagem e semelhança dos mandamentos divinos, regras humanas a serem interpretadas a partir do modelo exegético. Assim as construções legais se mostram plenas e solidas, com a perenidade e completude próprias da antiga legitimação das leis, antes divinas e agora sustentadas pelas regras, dotadas da plenitude da recém inaugurada razão positivista.

Tanto por hábito como por adequação citamos com freqüência João Uchoa de Cavalcanti Neto que em Direito, um mito nos lembra que o princípio é sempre um ponto arbitrário, escolhido pelo autor, uma vez que sempre existe algo antes do princípio. Escolhemos como ponto de partida, arbitrário, mas não aleatório, o século XVIII e o império das regras como formadoras do ordenamento jurídico, bem como a escola da exegese como sendo a apta a uma leitura adequada da lei, da lei vista então como completa, sem lacunas, obscuridades e contradições. Alfa e Omega, tudo ou nada, princípio e fim.

No princípio era o verbo, (de)formado por uma razão ideal, afastado das impurezas, paixões e ideologias que maculam o mundo concreto onde os fatos ocorrem e com o qual rompeu. Para entendermos as coisas do mundo valendo-nos das regras ideais e resolver as contradições hermenêuticas advindas de tal ruptura levamos as coisas do mundo concreto para o mundo das idéias onde reside o direito.

A adequação da norma ao caso concreto, sua interpretação e aplicação (cindidas para o futuro desgosto de Heidegger) abandonam a dualidade de planos: o fato, real (concreto) e o direito, abstrato (ideal). Assim, abandonada a dualidade de planos, elas se dão em um plano único, o plano ideal. Logo, se ele (o direito) é criado no mundo das idéias, os fatos também devem ser compreendidos lá e lá o direito deve ser aplicado, o que se faz por intermédio de um processo assemelhado ao usado por aliens que interessados em nos interpretar e em interpretar nosso mundo (nos conhecer, mas em uma perspectiva objetificante).

Tais seres valem-se da prática da abdução. Primeiro nos tiram de nosso mundo concreto —onde somos de fato— pelo processo da abdução.

Uma vez retirados do mundo concreto, e levados para um ambiente laboratorialmente controlado os tais aliens estudam os seres do nosso mundo, interpretam-nos, obtém suas respostas e depois de tal processo (de conhecimento) resolvem-nos e devolverem-nos para nosso mundo.

Imitando tal método criamos o modo adequado de se tratar das questões de fato quando tornam-se em questões de direito (pedimos perdão a Castanheira Neves pela heresia). Ao invés da abdução valemo-nos da subsunção. E as respostas passam a ser dadas antes que as perguntas sejam feitas.

A lei em tese, geral e abstrata, identifica o ente (coisa ou caso) concreto que se encaixa em seu enunciado com perfeição, o retira do seu lugar de existência no mundo das coisas e o leva para o plano das idéias. Lá o resolve, devolvendo-o em seguida à sua origem, violado e adulterado pelo processo a que é assujeitado em que ele se adequa ao intérprete, assujeitador dos fatos à sua razão construída aprioristicamente.

Mas se no princípio era o verbo (ou a regra), depois do verbo vem o princípio, quando Dworkin nos dá a notícia de que o direito, até então enclausurado em um modelo de regras, constituído por verdades plenas e reducionistas, ganha novo fôlego e a partir de então precisamos buscar caminhos para (re)conhecer o direito, velado até então pelas palavras que o limitavam para que melhor servisse aos seus senhores (que se alternam ao longo dos tempos).

Como que descrevendo o reconhecimento do direito como um sistema de regras e princípios, Gilberto Gil fala da novidade que veio dar à praia, na qualidade rara de sereia, metade o busto de uma Deusa Maia, metade um grande rabo de baleia. Acontece que em um país de modernidade tardia a novidade refletia um paradoxo: alguns desejavam seus beijos de deusa, outros desejavam seu rabo para a ceia. Oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual, de um lado esse carnaval, de outro a fome total… E Gil conclui que: a novidade que seria um sonho, o milagre risonho da sereia, virava um pesadelo tão medonho, ali naquela praia, ali na areia, a novidade era a guerra, entre o feliz poeta e o esfomeado, estraçalhando uma sereia bonita, despedaçando o sonho pra cada lado.

Se antes eram as regras agora temos os princípios, se antes eram as leis, agora temos as Constituições, se antes o monopólio da leitura exegética do direito era sagrado agora é questionado por diversos ângulos e pelas mais variadas matrizes teóricas. A proposta de nosso artigo não é dizer qual é o caminho adequado para que o modelo jurídico que (re)conhece os princípios como algo que antecede, forma, limita e orienta o verbo. Isto representa a incorporação da viragem lingüística e a superação do esquema representacional, do qual o positivismo é produto.

Há um perigo, já identificado no passado por Kelsen, para quem, ao apostar numa teoria pura pretendia que as razões de validade de uma norma não se confundissem com os valores em que o aplicador crê, sob pena do jurista travestir-se em político. E como é difícil a superação do positivismo jurídico. Tão difícil que o corifeu do modelo tem de ser invocado para a crítica.

Levemos os direitos a sério para que os princípios não sofram do mesmo paradoxo que a sereia sofreu ao deparar-se com o volume de demandas próprias do Estado Social Democrático de Direito e o baixo índice de constitucionalidade de países de modernidade tardia, repletos de contradições históricas que se repetem como se inexoráveis. Os princípios (constitucionais) de que tratamos não são os substitutos dos velhos princípios gerais de direito, aptos a autorizarem o decidir como se quer.

A noção, portanto, de concretização dos direitos segundo um viés relativista, com a utilização de um arsenal teórico de várias matizes ou talvez por uma certa incompreensão de certas teorias, pode abrir perigosamente aos tribunais os interstícios da política, dos direitos e dos valores, o que, numa palavra, significa o aumento do espaço de discricionariedade com o escopo de assegurar uma suposta justa realização da Constituição por meio de uma elite intelectual não eleita, guardiã de uma ordem objetiva de valores a ser ponderada.

Autores como Lenio Streck e Canotilho veem na ponderação de bens e interesses um dos grandes problemas para a autonomia do direito, onde o juiz acabaria por se tornar solipsisticamente o intérprete privilegiado de uma ordem objetiva de valores, restando a teoria do direito aprisionada ainda num esquema jurídico-filosófico ultrapassado (o esquema representacional), que acabaria por permitir, como se dava no velho positivismo jurídico, o julgamento como um ato de vontade (Wille Zur Match), em detrimento da vontade de Constituição (wille zurverfassung).

Não é por acaso que o chamado "Estado Ponderador" vem sendo identificado como um dos grandes problemas para teoria do direito, estreitando a relações funcionais entre o Poder Legislativo e o Poder Judicário, tornando tênue a linha que demarca a conformação política com o balanceamento equitativo entre o conflito de bens, o que inegavelmente amplia a margem de discricionariedade.[1] Para Canotilho "o poder judiciário faz política quando se proclama como o ‘poder de defesa dos direitos dos cidadãos contra as orientação das instituições político-representativas e quando se assume como o ‘poder de revelação dos valores fundamentais da comunidade".[2]

A relativização dos princípios, a contenção de sua efetividade ou a sua validação aleatória como mandados de otimização ou como objetos passíveis de ponderação nos redirecionam a um altíssimo grau de discricionariedade (nos devolvendo talvez ao calcanhar de Aquiles do positivismo exegético) onde pode-se dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e onde tudo se acoberta na proteção de superprincípios que a tudo justificam e tudo explicam. Se o verbo foi o princípio não podemos esquecer, por exemplo, da viragem ontológico lingüística de Wittgenstein e suas consequencias.

Muito se percorreu no caminho de se buscar uma aplicação adequada do direito em terrae brasilis (expressão que emprestamos de Lenio Streck), mas ainda há muito a andar para que não vejamos a novidade despedaçada na praia, pois é onde ela ainda encontra-se.


[1] CATTONI, Marcelo. Constituição e processo: entre o direito e a política. Belo Horizonte: Fórum. Canotilho. Judicialismo e política – tópicos para uma intervenção, 142.

[2] CATTONI, Marcelo. Constituição e processo: entre o direito e a política. Belo Horizonte: Fórum. Canotilho. Judicialismo e política – tópicos para uma intervenção, 143.

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