Senso Incomum

Ah, as palavras e as coisas na Sereníssima República

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6 de dezembro de 2012, 7h00

Spacca
Dia desses em uma aula para os alunos de uma disciplina especial do curso de graduação em Direito da Unisinos, os alunos perguntaram: Professor, o que quer dizer o enunciado “mato no peito”? Refleti a respeito, procurando disfarçar a circunstância de ter sido pego de surpresa. A questão, efetivamente, mostrava-se complexa. Mas, tinha de enfrentá-la. Duela a quien duela, para usar um castellano castiço.

Entonces, comecei escrevendo na lousa o verso de Hilde Domin: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort.” Embaixo, a explicação: “Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra…”! E complementei: Sim, no início era assim. Mas, depois, palavra e coisa se separaram. E, com certa melancolia, acrescentei: E nunca mais se encontraram…

A partir desse poema, fiz uma reconstrução da história institucional da filosofia, da linguagem e do direito. Dos sofistas até os nossos dias. A voo de pássaro, contando histórias, para ganhar a atenção dos meninos e meninas do segundo período do curso. Essa tarefa não é fácil. Quando escrevi o poema na lousa com la tiza, já notei a impaciência da ala dos fundos da aula. O que teria isso a ver com o enunciado “mato no peito”? “Esse professor, por certo, está tentando enrolar a gente”, deviam estar pensando.

Sigo. Caminhante. Y haciendo el caminho al andar, com Antonio Machado.

Se palavras e coisas jaziam juntas e depois se separaram, parece que a grande dificuldade é encontrar um “ponto de estofo” para a atribuição dos sentidos, que não podem depender nem das coisas e nem do intérprete (atribuidor de sentidos). Isto é, não devemos acreditar em uma “colagem” entre texto e sentido do texto ou entre palavra e coisa e, tampouco, em um livre “dar sentido”. Sem realismo, nem idealismo; nem objetivismo, nem subjetivismo. Isso para ser bem sencillo.

No caminho dos gregos até a viragem linguística (preocupo-me mais com o que se chama de “giro ontológico-linguístico), algumas paradas podem ser feitas no campo da analítica. Embora entenda que as teorias analíticas lato sensu se mostrem insuficientes para dar conta da complexidade do Direito na contemporaneidade, reconheço que dá para fazer interessantes discussões com os atos de fala (Searle), a relação conotação-denotação, os usos pragmáticos da linguagem, etc. Aliás, isso é velho para quem trabalha teoria crítica no Direito. Hoje, até a empedernida dogmática pedestre já “descobriu” que a lei contém imprecisões linguísticas…

Assim, o “segundo Wittgenstein” pode ser muito importante para deslocar o problema dos sentidos da sintaxe e da semântica para (o nível (d)a pragmática. Ou seja, Wittgenstein descobriu, de forma ruptural, que o sentido está no uso dos enunciados. Assim, dizer que a água ferve a 100º não é falso e nem verdadeiro; depende do contexto de uso. Do mesmo modo, uma lei que proíba fazer topless na praia terá um sentido absolutamente invertido se aplicado em uma praia de nudismo… Quem é a da crítica do Direito “brinca” com isso desde os bons tempos de Warat no Brasil.

O que quero dizer — e poderia fazer esse recorrido por dezenas e dezenas de páginas — é que o enigma do poema de Domin longe está de ser resolvido. A teoria do direito cometeu vários equívocos na tentativa de superar o formalismo próprio do positivismo clássico (ou primitivo). Várias posturas coloca(ra)m no lugar do juiz boca-da-lei um “juiz dos princípios”, “um juiz dono da lei”, um juiz da ponderação”, etc. No meio disso, não esqueceram de colocar um pé (ou nunca tirar) do velho positivismo fático, forma rebuscada de chamar o realismo jurídico, coisa muito comum e que pode ser encontrada nos pronunciamentos de juízes e tribunais (por exemplo, a frase caracterizado: “o direito é aquilo que os tribunais dizem que é”). E assim a coisa foi. E vai.

Chegamos, assim, entre sístoles e diástoles, ao caos. Cada um “dá sentidos” como quer. Já que palavras e coisas estão cindidas, a ordem parece ser: “Esbaldemo-nos no ‘paraíso do estado de natureza da atribuição de sentidos’”. Basta ver como o próprio sistema jurídico construiu uma resposta darwiniana a esse caos, estabelecendo as súmulas vinculantes e repercussão geral. Parece que não deu certo. Mas disso já sabemos. Mas nem isso dá certo para segurar o “dizer qualquer coisa”!

Se eu fosse buscar na literatura um modo de tentar metaforizar esse “estado de natureza hermenêutico” que se instaurou no Direito e nos “operadores” (odeio essa palavra), convocaria — como de fato convoco — o nosso Flaubert, Machado de Assis, com seu conto A Sereníssima República, na qual o Cônego Vargas relata sua descoberta: “aranhas falantes, que se organizaram politicamente”. O Cônego lhes ofereceu um sistema eleitoral a partir de sorteio, onde eram colocadas bolas com os nomes dos candidatos em sacos. O inusitado ocorreu quando da eleição de um magistrado: “Nebraska contra Caneca”. Em face de problemas anteriores — grafia errada de nomes de candidatos nas bolas — a lei estabeleceu que uma comissão de cinco assistentes poderia jurar ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Feito o sorteio, saiu a bola com o nome de Nebraska. Ocorre que faltava ao nome a última letra. Mas as cinco testemunhas resolveram o problema. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado. Trouxe um grande filólogo, um bom metafísico, que apresentou a sua tese: “Em primeiro lugar, não é fortuita a ausência da letra “a” do nome Nebraska. Não havia carência de espaço. Logo, a falta foi intencional. E qual a intenção? A de chamar a atenção para a letra “k”, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, na mente, “k” e “ca” é a mesma coisa. Logo, quem lê o final lerá “ca”; imediatamente, volta-se ao início do nome, que é “ne”. Tem-se, assim, “cané”. Resta a sílaba do meio “bras”, cuja redução a esta outra sílaba “ca”, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas… Aí está a prova: a primeira afirmação mais as silabas “ca” às duas “Cane, dando o nome Caneca.”

Não se sabe se a tese do grande filólogo colou, mas uma coisa se fez: Eliminaram a possibilidade desse tipo de parecer! Nunca mais o chamaram. E ninguém desse jaez!

Continuo. E, ao contrário do poema, sin volver la vista atrás!

Pois é. De fato, não se pode atribuir qualquer sentido às palavras. E, portanto, às coisas. Já não é suficiente, hoje, invocar os atos de fala, os usos contextuais, etc. É muito pouco — e pobre, do ponto de vista filosófico — invocar as vaguezas e ambiguidades dos textos legais. Alguns enunciados até que tem “salvação”, como, por exemplo, “chamar alguém de cão”, que, longe de ser uma grave ofensa, pode ser um elogio (cão é um animal fiel, etc.). O enunciado “chove lá fora”… pode ser uma mentira sem conserto, mas, se o enunciado é pronunciado por um professor ensinando o funcionamento do neopositivismo lógico (empirismo contemporâneo), basta colocar a palavra “não” que o problema estará resolvido.

Há “regiões” intermediárias, como é o caso de um grupo de juristas (qualquer semelhança com a realidade, não é mera coincidência) discutindo se prevalece a “vontade da norma” ou o “espírito do legislador”. Neste caso, há que se discutir se “norma tem vontade”. Eu, por exemplo, tenho uma tia chamada “Norma”, que tem sempre boa vontade para fazer saborosos bolinhos de chuva… Portanto, eu saberia dizer qual a “vontade da norma”… Já o espírito do legislador eu deixaria para quem tem essa expertise de invocação transcendental… De todo modo, há que ter muito cuidado, porque não existe um Nomoteta ou um Onomaturgo (dador de nomes platônico) na contemporaneidade, com o que podemos dizer que as palavras não refletem a essência das coisas (e nem delas podemos extorquir sentidos). Fomos condenados a interpretar. E a fazer pilhérias, nos momentos propícios ou quando “a ré não se ajuda”. Quem é a ré, aqui? Simples: A cotidianidade das práticas jurídicas e a politica. Ouve-se cada coisa…[1]

Ou seja, foi bom que as aranhas expulsassem aquele “metafísico” filólogo, que fazia fantasmagorias com a linguagem. Caso contrário, poderíamos provar, por exemplo, que o enunciado “eu mato no peito” poderia apenas querer dizer “eu cometo homicídio na região central do tórax” ou, ainda, alguém que canta, por partes, a música que homenageou Garrincha, em que o cantor diz “mato (a saudade) no peito” driblando a emoção… Ou dois homens disputando a quantidade de pelos na região peitoral, em que um diz “eu chego a ter mato no peito” (mais difícil essa, é claro — aqui, teríamos que pedir auxílio ao metafísico do conto da Sereníssima República, do nosso Flaubert brasileiro).

Mato é verbo. E também substantivo. Prefiro o substantivo. Como a palavra “lenha”. “Mato” pode ser “lenha”. Porque lenha era o antigo nome que se usava para dizer “floresta”. Como no poema heideggeriano, traduzido por Ernildo Stein:

“Lenha é um antigo nome para floresta. Na floresta há caminhos que o mais das vezes, invadidos pela vegetação, terminam subitamente no não-trilhado. Eles se chamam caminhos da floresta.

Cada um segue um traçado separado, mas na mesma floresta. Muitas vezes parece que um se assemelha ao outro. Contudo, apenas assim parece. Lenhadores e guardas da floresta conhecem os caminhos. Eles sabem o que quer dizer estar num caminho da floresta”.

Na nossa Sereníssima República, faltam bons lenhadores e bons guardas da floresta. De novo invocando Heidegger — e me reporto ao meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, cuja primeira edição é lá dos anos 1990 — é necessário estabelecer uma “clareira” (Lichtung) no mundo jurídico. Clareira vem do verbo “clarear”. O adjetivo “claro” (licht) é a mesma palavra que “leicht” (leve), lembra-nos Heidegger.

Daí que clarear algo significa tornar algo leve, livre e aberto, como, por exemplo, tornar a floresta, em um determinado lugar, livre de árvores. A dimensão livre (e leve) que assim surge é a clareira (die Lichtung). A clareira “é o aberto para tudo que se apresenta e ausenta”. É o clarear da clareira que institui a possibilidade de a floresta manifestar-se “como” floresta. E, como muito bem diz Heidegger,

para além do que é, não longe disso, mas anterior a isso, existe ainda algo que acontece. No centro dos seres como um todo ocorre um espaço aberto. Há uma clareira, uma iluminação… Este centro aberto é… não rodeado pelo que é…; em vez disso, o próprio centro de iluminação engloba tudo o que é… Apenas esta clareira garante e certifica aos seres humanos uma passagem para aqueles entes que não somos nós próprios, e acesso ao ser que nós próprios somos” (Gesamtausgabe, v. 5: Holzwege. Frankfurt am Main, Klostermann, 1977, p. 39-40).

Sim, a clareira é essa região na claridade da qual pode aparecer tudo o que é. A clareira (Lichtung) é essa abertura para a claridade, essa “região livre”, desbastada, um terreno tornado livre, enfim, um espaço desbravado, liberto de suas árvores, que pode, agora, receber e reenviar a luz.

A clareira é o espaço que possibilita(rá) olhar em volta. A clareira vem a ser, nesse sentido, a condição de possibilidade da própria floresta. Abrir uma clareira é, assim, propiciar a alétheia (a não ocultação, “o isto aí que foi arrancado da ocultação”) no campo jurídico.

Olhei o relógio e aula estava no fim. Ainda deu tempo de dizer: Sim, precisamos abrir uma clareira… em nossa SERENÍSSIMA REPÚBLICA!

Saí esperançoso de que os alunos — aqueles que desligaram o Facebook e não ficaram bulinando o Iphone durante a aula, enfim, sem trocadilho, aqueles não “mataram a aula” — tenham entendido um pouco da relação entre palavras e coisas.

E que tenham se dado conta da profundidade do enunciado objeto da pergunta…!


[1] Nos últimos tempos, tenho sido acompanhado, em aulas ou conferências, por estagiários albinos, que carregam várias placas, com os dizeres “ironia”, “sarcasmo”, “irritação”, “humor”, etc. Dependendo da reação da plateia, eles levantam as tais placas. Com um lembrete que faço aqui: também isso que eu disse pode necessitar de uma placa, dizendo “que a própria explicitação de que algo é ironia ou um sarcasmo” pode também ser uma ironia ou sarcasmo de segundo nível. O perigo é o sarcasmo do sarcasmo do sarcasmo… o que demandaria uma espécie de parada arbitrária necessariamente útil, como no Trilema de Münschausen, tão bem trado por Hans Albert. Não explico esse autor, aqui. Com certeza, haverá alguém que o fará, em alguma Coluna próxima…

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