Direito Comparado

Carlos Cossio, um gigante desconhecido no Brasil

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

5 de dezembro de 2012, 15h53

O Direito é conduta em interferência intersubjetiva. O ordenamento jurídico tem plenitude lógica. A coação não integra a essência da norma jurídica. Direito é liberdade. O homem é livre para violar a norma, cuja estrutura é disjuntiva: é possível que haja a prestação ou a não prestação, e, neste último caso, poderá ser aplicada a sanção. É necessário distinguir entre justiça e legitimidade, quando se analisa a norma.

Toda conduta humana é relevante para o Direito. O ato de se usar uma gravata azul ou regimental é tão jurídico quanto o cometimento de um furto ou de um homicídio. A diferença está em sua localização nos campos da licitude, no primeiro caso, ou da ilicitude, no segundo. O Direito realiza-se cotidianamente no campo da licitude. A grande maioria dos atos jurídicos são lícitos. O ilícito, que é muito importante, não pode ocupar a centralidade no estudo do Direito.

O Direito não é explicável adequadamente pela teoria imperativista. Não há ordens imperativas, cogentes, que não podem ser violadas. O Direito é essencialmente violável. A elaboração democrática da norma dá-se nos parlamentos, que representam o povo. É o povo quem ordena a si mesmo, logo, não há um destinatário da norma jurídica, salvo se pensar que o ordenante seja o ordenado. A neutralidade científica é um dogma superado. Ela se perdeu no momento em que a valoração “entrou” para a normatividade, qualquer que seja o valor que se tenha em conta.

Em linhas gerais, e com as escusas pelos riscos nos quais se incorre quando a exposição é sumária, as frases acima expressam o pensamento do jusfilósofo Carlos Cossio (1903-1987), pai da Teoria Egológica do Direito e fundador da Escola Jurídica Argentina, que contou com expoentes como Genaro Carrió e Enrique Aftalión, além de seus representantes no Brasil, como A. L.Machado Neto e Arnaldo Vasconcelos.[1]

Cossio teve reconhecimento internacional. Manteve longa correspondência epistolar com Hans Kelsen. Por sua iniciativa, Kelsen visitou a América Latina, especificamente, Uruguai, Argentina e Brasil, tendo proferido célebres conferências em Buenos Aires, com intensos debates entre esses dois grandes filósofos do Direito do século XX.

A respeito dessa jornada, que ocorreu em 1949, “como adverte Oscar Sarlo, a viagem teve por objetivo recuperar terreno para a Teoria Pura, então submetida a fortes questionamentos pela nascente Teoria Egológica do Direito, fundada pelo grande jusfilósofo argentino Carlos Cossio, que também fora o responsável pela elaboração do estudo introdutório da tradução argentina da ‘Teoria Pura do Direito’ e o principal divulgador das ideias kelsenianas até então”. A presença de Kelsen em Buenos Aires foi acompanhada da expectativa de que ele se “converteria” à Escola Egológica, o que não ocorreu.[2]

A merca perspectiva de que algo assim ocorresse, a adoção por Kelsen dos postulados teóricos de um jurista latino-americano, é um indicativo simbólico da relevância de Carlos Cossio para a Teoria Geral do Direito e para a Filosofia do Direito. Observando-se o recorrente “complexo de inferioridade” dos brasileiros (e talvez de grande parte dos chamados “terceiro-mundistas”) em relação aos valores, à cultura e ao pensamento jurídico europeus, é importante dar a conhecer o elevado nível de desenvolvimento teórico a que chegou o subcontinente americano na primeira metade do século XX.

Como informa Arnaldo Vasconcelos, “[e]m Buenos Aires, na primeira de suas famosas conferências na Faculdade de Direito, em 1949, depois reunidas, com os textos de Carlos Cossio, no livro Problemas Escogidos de la Teoría Pura del Derecho — Kelsen elogia a alta cultura jurídica da Argentina, cujos sábios doutrinadores se encontram à frente ‘em muitos domínios da Jurisprudência, sobretudo no da teoria exata do Direito’”.[3]

Os pontos de divergência entre Cossio e Kelsen, a despeito da origem comum de seus postulados teóricos, são bastante relevantes. Seu exame expõe o grau de contribuição original de Carlos Cossio na questão do ilícito. É de ser atentar para a circunstância de que se deve a Kelsen a entrada do ilícito no Direito. Sim, o ilícito era como a mão esquerda de Deus, nunca referida em qualquer versículo bíblico. Era sabido que o ilícito existia, mas não se considerava jurídico, pois se confundia a juridicidade com a retidão, a correção, a algo reto (ao contrário do torto, daí se usar no idioma inglês a expressão Torts, para se referir à Responsabilidade Civil).

Outro exemplo está no Código Civil de 1916, cujo anteprojeto foi elaborado antes da obra fundante do que viria a ser a Teoria Pura do Direito, o famoso (e centenário) livro kelseniano Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatz (Principais problemas da teoria do direito público, desenvolvidos a partir da teoria da norma jurídica). Seu artigo 81 era continente da célebre definição de ato jurídico: “ Todo o ato licito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”. A contrario sensu, o ato ilícito não seria jurídico, conforme as lições de Arnaldo Vasconcelos:

“Outra colaboração recebida por Kelsen para ampliação e aperfeiçoamento da teoria pura veio de Carlos Cossio, seu mais próximo discípulo sul-americano, ele mesmo autor de uma expressiva Teoria Egológica do Direito, de feição fenomenológica-sociológica. Cossio, ao tempo em que se emparelha ideologicamente com Fritz Sander, discípulo rebelde de Kelsen, marca ele próprio, através dessa postura, sua divergência fundamental com o mestre. Enquanto para Kelsen a ciência jurídica deve dedicar-se ao estudo do Direito entendido exclusivamente como norma, para Cossio a conduta humana em interferência intersubjetiva é que lhe constitui o objeto. Demais, Cossio altera a ordem lógica dos elementos da estrutura normativa idealizada por Kelsen, colocando o juízo do lícito em primeiro plano e o do ilícito, em segundo. Com a alteração, Cossio quis privilegiar o momento jurídico da liberdade, enquanto Kelsen pretendeu destacar a importância ímpar do ilícito como uma única via de acesso ao Direito. Como se pode observar, são posições diametralmente opostas, tendentes a antes a afastar seus defensores, do que a aproximá-los”.[4]

Esse “gigante” da Filosofia do Direito, nascido no início do século XX, conheceu o zênite e o nadir da República Argentina, uma das nações mais ricas do mundo na primeira metade da centúria, com uma elite culta e cosmopolita. Ele foi um dos líderes da reforma universitária argentina, durante seu período de estudante de graduação e de pós-graduação. Lecionou na Universidade Nacional de la Plata e, depois, na Universidade de Buenos Aires. Um homem elegante, conhecido por sua didática ímpar, Cossio, como a maior parte de seus contemporâneos na vida acadêmica, engajou-se politicamente, no caso, no nascente movimento justicialista, o conhecido peronismo. Essa adesão ao ideário de Juan Domingo Péron custou-lhe a cátedra universitária e deu causa a longos anos de obscuridade nos meios culturais argentinos.

No Brasil, o grande divulgador de Carlos Cossio foi A. L. Machado Neto, que introduziu os estudos cossianos na jovem Universidade de Brasília. Machado Neto, à semelhança de Cossio, foi perseguido pela ditadura militar e teve sua atividade acadêmica interrompida. A importância da teoria egológica, infelizmente, não se refletiu no número de estudos específico sobre seus postulados ou sobre a biografia de seu fundador.[5]

Além de A. L. Machado Neto, o nome de Arnaldo Vasconcelos, professor de Teoria Geral do Direito da Universidade Federal do Ceará (até sua aposentadoria) e do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza (sua atual instituição), é uma referência obrigatória em qualquer estudo sobre a Teoria Egológica no Brasil.[6] A obra de Arnaldo Vasconcelos é marcada pela erudição, pelo estilo conciso e elegante, que não dispensa o rigor da confrontação das ideias e, quando necessário, o reconhecimento das qualidades do pensamento sob exame crítico.[7] Graças a Arnaldo Vasconcelos, o último (?) grande cossiano brasileiro e que é um dos expoentes da fase áurea da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, no último quartel do século XX, o pensamento de Carlos Cossio conseguiu manter-se com grande vigor e deixou sua marca na formação de toda uma geração de juristas e, ainda hoje, se conserva por intermédio de seus discípulos.[8]

No início do século XXI, resgatar a obra de Carlos Cossio é uma homenagem a nós mesmos, os latinoamericanos, e também é reconhecer a possibilidade da construção de uma Teoria e de uma Filosofia do Direito com pretensões de originalidade e com ambição de se equiparar às grandes correntes internacionais. Mais que tudo, é um convite a ser mais do que uma nota de rodapé na obra de jusfilósofos europeus ou norte-americanos.


[1] Seguem as referências de algumas das mais importantes obras de Carlos Cossio: COSSIO, Carlos. Ciência do direito e sociologia jurídica. Tradução e estudo preliminar A.L. machado neto. Brasilia: Universidade de Brasilia, Instituto Central de Ciencias Humanas, Setor de Direito, 1965; COSSIO, Carlos. La teoria egologica del derecho y el concepto juridico de libertad. 2. ed. Buenos Aires : Abeledo-Perrot, 1964; COSSIO, Carlos. Teoria de la verdad jurídica. Buenos Aires :    Losada, 1954; COSSIO, Carlos. La valoracion juridica y la ciencia del derecho. Buenos Aires: Arayu, 1954; COSSIO, Carlos. La plenitud del ordenamiento jurídico. 2. ed.   Buenos Aires: Losada, 1947; COSSIO, Carlos. El derecho en el derecho judicial. Buenos Aires :G. Kraft, 1945. 

[2] DIAS TOFFOLI, José Antonio; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Hans Kelsen: o jurista e suas circunstâncias (Estudo introdutório para a edição brasileira da “Autobiografia” de Hans Kelsen. In. KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen.Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto.  4. ed. Rio de Janeiro: Forense,  2012. p. XLVIII e ss.

[3] VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito : repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro : Forense,     2003. parágrafo 42.

[4] VASCONCELOS, Arnaldo. Op. cit. parágrafo 104.

[5] São exemplos desses poucos estudos, cujo número é incompatível com a relevância da obra de Carlos Cossio: CHIAPPINI, Julio. Carlos Cossio (1903-1987). Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 33, n. 1/2, p. 41-47 2004/2005; SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Carlos Cossio e a teoria egológica do direito. Revista de doutrina e jurisprudência / Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, n. 66, p. 22-45, maio/ago. 2001; FERREIRA, Geraldo Sobral. A Teoria da imprevisão na visão egológica de Carlos Cossio. Revista da Procuradoria Geral do Estado da Bahia, n. 3, p. 73-86, jan./jun. 1978/1979; MACHADO NETO, A. L.                   Algumas contribuições de Carlos Cossio a uma eidética sociológica. Revista Brasileira de Filosofia, vol 26 n 103 p 275 a 296 jul/set 1976. Evidentemente, Carlos Cossio é referência em diversas obras de divulgação e manuais de Teoria Geral do Direito, de Introdução ao Estudo do Direito e de Filosofia do Direito. No entanto, se observada apenas a produção de artigos e monografias específicas sobre a Teoria Egológica, o resultado é contrastante com o impacto da obra de Cossio nos estudos jurídicos do século XX. Ressalve-se o trabalho (quase) solitário de Arnaldo Vasconcelos na produção de artigos e na organização de obras coletivas, com publicação na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e em edições locais, que põem em relevo o marco teórico cossiano.   

[6]João Alfredo de Sousa Montenegro (História das ideias filosóficas da Faculdade de Direito do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1996) refere-se ao  normativismo de Arnaldo Vasconcelos  (p 149) e ao problema das normas quanto à fonte (p. 159).  É uma ausência sentida a não referência ao nome de Arnaldo Vasconcelos no rol de expoentes do pensamento jurídico-filosófico contemporâneo do Nordeste brasileiro, do qual constam (merecidamente) A.L. Machado Neto, Lourival Vilanova, Nelson Saldanha, Cláudio Souto, Sílvio de Macedo, Marília Muricy Machado Pinto (grande continuadora do trabalho de Machado Neto) e João Maurício Adeodato (jurista com renome internacional) (cf. NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 19. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. parágrafo 152). 

[7] Citam-se como exemplos mais representativos: VASCONCELOS, Arnaldo.Direito, humanismo e democracia. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006; VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica.              6. ed. São Paulo : Malheiros, 2006; VASCONCELOS, Arnaldo.              Teoria pura do direito : repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de Janeiro : Forense, 2003. Na segunda edição desse último livro, vê-se o exemplo da maneira elegante com que Arnaldo Vasconcelos expõe suas dura críticas ao pensamento kelseniano: “Posso, assim, parafraseando Santo Agostinho, afirmar que as fortes críticas aqui formuladas se dirigem mais exatamente contra as posições doutrinárias de Kelsen, e nunca contra a pessoa humana do jusfilósofo que, com seu extraordinário cabedal de conhecimentos, marcou de modo indelével o inteiro espaço da cultura jurídica do século passado. Por isso, ler Kelsen significará sempre tomar contato direto com a filosofia contemporânea do Direito” (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria pura do direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. XIII-XIV).  

[8]  Essa “fase áurea” é assim denominada pelo elevadíssimo nível dos docentes que a integraram, quase todos com renome nacional, ao exemplo de Agerson Tabosa (Direito Romano), Hugo de Brito Machado (Direito Tributário, ainda em atividade), Raimundo Bezerra Falcão (Hermenêutica Jurídica, ainda em atividade), Paulo Bonavides (Direito Constitucional, ainda em atividade), Fran Martins (Direito Comercial), Wagner Turbay Barreira (Direito Civil), Bomfim Viana (Direito Comercial)  e Fávila Ribeiro (Direito Eleitoral), para se citar apenas alguns deles, cujo legado se mantém com a contribuição dos atuais professores dessa centenária Escola de Direito.

 

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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