Ambiguidades e riscos

Conciliação deve se preocupar com a qualidade dos acordos

Autores

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

  • Ludmila Teixeira

    é advogada mestre em Direito e Constitucionalismo pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.

31 de agosto de 2012, 14h00

Há algum tempo no Brasil vem ganhando destaque a defesa da utilização da conciliação e dos meios alternativos de resolução de conflitos, com a finalidade de reduzir as taxas de congestionamento do Judiciário e promover soluções mais rápidas, dentro do marco da socialização processual[1] e do discurso sintetizado no relatório geral do Projeto Firenze de acesso à Justiça (1973-78), elaborado por Cappelletti e Garth.

Defende-se assim, sempre em perspectiva ideológica socializadora, a profusão de técnicas alternativas de resolução de conflitos (ADR — Alternative dispute resolution), a difusão da cultura da conciliação como busca da paz social e programas vocacionados à conciliação, como o atual “conciliar é legal”.[2]

Realmente, conciliar seria legal e legítimo se tal opção fosse escolhida pelas partes, no exercício de sua autonomia privada, devido às peculiaridades de seu caso, e não dimensionada como única hipótese de solução rápida de seu caso ou, mesmo, imposta pelo magistrado mediante a coação de uma futura decisão desfavorável.

Como lembra Proto Pisani, a tendência de se privilegiar meios conciliatórios seria benéfica desde que não se consubstancie numa oportunidade em que o economicamente débil seja constrito a renunciar ao direito ou a se submeter a transações iníquas ou abusivas.[3]

Ao comentar esse movimento pró-ADR no Direito norte-americano (berço da utilização mais recente deste), Fiss informa: “[…] a história da solução de controvérsias na qual se baseia a ADR implicitamente exige que pressuponhamos uma igualdade relativa entre as partes litigantes. Trata o acordo como uma antecipação do resultado da decisão em juízo e pressupõe que seus termos são simplesmente produto das preferências das partes. Na verdade, entretanto, o acordo é também um produto dos recursos que dispõem cada um das partes para financiar o processo judicial, sendo certo que tais recursos são, frequentemente, distribuídos de maneira desigual. Diversas ações judiciais envolvem não uma disputa entre dois vizinhos pela propriedade de uma porção de terra, mas, por exemplo […] consistem em reclamações trabalhistas movidas contra grandes corporações, nas quais são pleiteadas indenizações por lesões relacionadas ao trabalho. Nesses casos, a distribuição de recursos financeiros […] irá, invariavelmente, contaminar o processo de negociação e, consequentemente, o acordo ofenderá a concepção de justiça que procura tornar os recursos das partes fator irrelevante.”[4]

Aponta, ainda, o autor que a disparidade de recursos entre as partes pode influenciar o acordo de várias formas, até mesmo pela necessidade de obtenção dos valores em discussão.

Nestes termos, o movimento pró-conciliação deve se preocupar mais com a perspectiva qualitativa (menos com a quantitativa), de modo a perceber as peculiaridades e diferenças de cada caso concreto.

Verifica-se, assim, que existem situações em que os acordos são impostos, mesmo quando sejam inexequíveis, para permitir a pronta “resolução do caso”, com adequação à lógica neoliberal de produtividade.

E não se podem olvidar as situações em que o cidadão aceita a renúncia da quase integralidade de seus direitos para obter algum direito imediatamente em face de uma necessidade premente.

A ocorrência de uma conciliação endoprocessual deve resultar de um fluxo discursivo que respeite a autonomia privada das partes, e não de uma imposição que gerará um possível resultado: acordos inexequíveis e antissociais que busquem tão-somente a obtenção de um dado no plano estatístico de casos “resolvidos” ou que ofereçam uma falsa sensação apaziguadora e de adequação constitucional.

Todas essas situações não guardam nenhuma vinculação com uma efetiva socialização e nem mesmo, com a defendida, democratização processual. Somente se adequam a uma lógica funcionalista e perversa, que certamente deve ser problematizada discursiva e incessantemente.

Especialmente, a utilização da pré-cognição (precognizione – pre trial) judicial, tão debatida no discurso processual de Direito estrangeiro e que se torna a tônica da produtiva aplicação em massa de decisões (neoliberal), deve ser analisada e polemizada.

As ações do juiz jamais poderão ser estratégicas no sentido de obter sucesso mediante a busca de produtividade, mas, sim, performativas, ou seja, vocacionadas ao entendimento e à aplicação normativa do direito, preocupando-se em decidir em espaço-tempo suficiente e em perspectiva constitucional.

Em primeiro lugar, é prudente situar os movimentos reformistas corporificados na “informalização” e no processo de “desjudicialização” na ambiência de um direito profundamente pela crise da normatividade social. Essas tendências atacam o formalismo, a resolução jurisdicional dos conflitos, incentivam a emergência de “novas juridicidades” e um amplo conjunto de reformas pensadas com o objetivo de superar os dilemas da exaustão da capacidade de regulação jurídica.

Neste ponto, é de se festejar dispositivo do CPC projetado, ora em tramitação na Câmara dos Deputados, que proíbe qualquer tipo de conduta de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

Geralmente, quando se fala em meios alternativos de composição de litígios, como já dito, o exemplo americano é a primeira referência. No entanto, existe uma diferença substancial no modo como essas atividades são tendencialmente desenvolvidas na experiência americana e brasileira. Lá as iniciativas são predominantemente[5] desenvolvidas por entidades da sociedade civil (como clínicas de conciliação social). No Brasil, todavia, cada vez mais estas atividades (como, por exemplo, a conciliação extrajudicial) vêm sendo absorvidas pelos próprios tribunais, que, a fim de atender estas novas funções, se socorrem dos recursos advindos de outras searas estatais (o Ministério da Justiça, em especial), com o fomento da participação dos tribunais.

Ademais, no exemplo americano, se busca a resolução consensual mediante um amplo conhecimento dos riscos e dos fundamentos pelas partes e seus advogados na fase pré-processual (pre trial), quando aqui vem se apostando cada vez mais na busca do acordo obtido pela ignorância das mesmas partes.

Estas últimas informações sugerem as seguintes questões: a) a permeabilidade do Judiciário a tais modelos alternativos de resolução de disputas estaria a sinalizar a intenção renovatória de uma justiça de todo menos burocrática e mais próxima do jurisdicionado? b) trata-se de um desvio na lógica centralizadora e uniformizante que há muito domina o sistema de justiça ou, paradoxalmente, o apelo aos recursos alternativos corrobora com a reprodução de um modelo ainda mais focado nas ideias de eficácia, atuação estratégica e segurança?[6]

É importante esclarecer que aqui não se dirige uma crítica apressada a todos os mecanismos de informalização da Justiça que se apresentem como uma possível ferramenta, seja para otimizar o sistema judicial ou para incentivar a participação da sociedade nos problemas que lhes afetam diretamente. Insurge-se apenas contra a parcialidade de todo discurso que festeja as virtudes redentoras do fenômeno sem ressalvar suas ambiguidades e riscos.

Cumpre notar, no enredo dessas transformações, algo mais significativo que a abertura institucional do Judiciário aos impulsos contextuais. A própria opção pelos recursos e procedimentos informalizantes, e, especialmente, a seleção de quais as áreas contempladas revela uma escolha artificiosa. Mais precisamente, não se pode subestimar a capacidade, por exemplo, que um “filtro da litigiosidade”[7] possui para subministrar, na triagem de causas de maior/menor importância, com/sem repercussão, repetitivas/singulares, de alta/baixa intensidade (etc.) verdadeiras opções políticas, nem sempre democráticas.

Pontue-se que não foi nosso objetivo aqui criticar a utilização das técnicas, mas tão só provocar uma postura crítica no leitor acerca do fenômeno, de modo a evidenciar alguns dos riscos do uso impensado destes métodos alternativos.


[1] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.

[2] O movimento encabeçado pelo Supremo Tribunal Federal, desde 26/08/2006, seria legítimo no caso em que na sua aplicação fosse respeitada a autonomia privada dos participantes da conciliação. Ocorre que na prática, inúmeras vezes, é utilizada para a imposição de “acordos” inexeqüíveis e anti-sociais.

[3] PROTO PISANI, Andrea. Il codice di procedura civile del 1940 fra pubblico e privato. Il Foro Italiano, Parte V, Roma, p. 87, 2000. 

[4] FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 124-125. 

[5] Predominantemente, frise-se. Segundo os estudos de Jerold Auerbach sobre o desenvolvimento dos métodos alternativos nos EUA, a partir da década de 1960, o empoderamento das comunidades passou a ser um ponto de destaque na reforma política do Judiciário. “Foram criados os Neighborhood Justice Centers, centros instalados nas comunidades locais com a finalidade de desenvolver formas de resolução de disputas de acordo com suas necessidades. Embora tais centros representassem em teoria uma forma alternativa de resolução de disputas, muitos deles foram rapidamente incorporados aos tribunais sob o pretexto de preencher as lacunas e tornar mais eficiente a prestação jurisdicional Além disso, apesar dos métodos alternativos em sua origem destinarem-se indistintamente a todas as classes sociais, verificou-se que a linha da pobreza era o fator determinante de sua clientela”. AUERBACH, Jerold S. Justice without law? Resenha de Vilson Marcelo Malchow Verdana. In: AZEVEDO, André Gomma; BARBOSA, Ivan Machado (orgs). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. v. 4. Brasília: Grupos de Pesquisa UnB, 2007, pp. 439-61.

[6] Segundo Laura Nader, em pesquisa embasada em estudos etnográficos, estaríamos a vivenciar, a respeito da informalização judiciária, o avanço de uma ideologia da harmonia e o abandono gradual da cultura da litigiosidade. NADER, Laura. The life of the law: anthropological projects. Berkeley: University of California Press, 1999.

[7] Como sugere Kazuo Watanabe, uma política pública judiciária de tratamento adequado dos conflitos se concretizaria com a adoção de um filtro da litigiosidade, capaz de selecionar as causas propensas à resolução consensual. Com isso, se estaria a assegurar ao Judiciário a redução de conflitos reais e potenciais; ao jurisdicionado, o acesso à ordem jurídica justa; e à sociedade o amadurecimento de uma “nova cultura” da pacificação. WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em: http://www.tj.sp.gov.br/EstruturaOrganizacional/SegundaInstancia/OrgaosJulgadores/SecaoDireitoPrivado/Doutrina/Doutrina.aspx?Id=1011. Acesso em 10.09.2011.

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