Ideias do Milênio

Prosperidade não é sinômimo de crescimento econômico

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31 de agosto de 2012, 8h00

Entrevista concedida pelo cientista social Boaventura de Sousa Santos, ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.

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As ruelas da favela do Jacarezinho na década de 1970 eram estreitas, mas abriram caminho para um dos maiores sociólogos da atualidade. Depois de estudar as relações na comunidade carioca, ele conquistou a Europa e os Estados Unidos com o pensamento e de maneira independente lida com os conceitos políticos de esquerda e direita tentando fazer a ligação entre o que é estudado e o que é necessário fazer para melhorar as condições de vida das pessoas. Pós-colonialismo, democracia no século 21, cidadania no sentido mais amplo da palavra e a crise econômica que assola o mundo. Temas aparentemente desconexos mas que o português Boaventura de Sousa Santos consegue aproximar como poucos. Esse olhar abrangente, questionador e também esperançoso marcou a entrevista que o cientista social deu ao Milênio numa recente visita ao Brasil.

Marcelo Lins — O senhor é um crítico mordaz do capitalismo financeiro, do excesso de consumismo no mundo, do neoliberalismo que teve o seu momento de ouro nos anos 1990, mas o senhor também demonstra uma certa preocupação em criticar a sociedade capitalista ocidental diante do que o senhor chamou de heranças coloniais que nos perturbam ainda. Essas heranças subsistem ainda? Em que momentos o senhor as enxerga e como superá-las para fazer uma crítica mais fechada em relação ao sistema?
Boaventura de Sousa Santos —
Nós temos hoje que aceitar que as independências dos países que estiveram sujeitos ao colonialismo europeu aqui na América e um século depois na África e na Ásia foram países que se tornaram independentes mas nem por isso ficaram completamente autônomos. A grande diferença entre os países desenvolvidos hoje e os países menos desenvolvidos é que quando os desenvolvidos se desenvolveram não havia países mais desenvolvidos que eles. Portanto, eles não tiveram obstáculos que agora têm os países menos desenvolvidos, o G77 etc. e a China. Algumas países desenvolvidos travam de alguma maneira o desenvolvimento dos outros, e isso para mim é resultado de uma presença colonial ainda no nosso tempo. O relacionamento entre o norte e o sul não é apenas em termos de capitalismo, é ainda uma herança da superioridade colonial, racial até, por vezes, do norte em relação ao sul. E a Europa é um caso quase patético hoje. Por que um continente que não tem solução para os problemas que os senhores já tiveram aqui no Brasil, que outros países tiveram, está disponível para aprender com as experiências do mundo. Se a gente fala: “E como fez a Argentina? Como fez o Equador? E como fez o Brasil?” “Ah, isso são países que são menos desenvolvidos que nós.” Quer dizer, há um desprezo pelas outras experiências do mundo. Este desprezo só tem uma razão: é o colonialismo que ainda está na cabeça dos europeus e vai demorar muito tempo a tirar-se dela.

Marcelo Lins — Vai ficando claro também que uma história que é repetida e repetida muitas vezes para nós emergentes, que é: para chegarmos ao estágio em que chegaram Europa, Estados Unidos, os países desenvolvidos, temos que passar por todas as etapas que eles passaram. Então muitas vezes dizem: “Vocês não conseguiram isso, não dão valor às coisas porque não tiveram a guerra como tiveram os europeus”, “vocês não podem poluir porque vocês estão arriscando as últimas reservas. Nós sabemos que isso é ruim porque já destruímos ali”. Qual a saída? Com esses argumentos os emergentes ficam sem saída.
Boaventura de Sousa Santos —
Ficam sem saída se não assumirem plenamente que não há um modelo de desenvolvimento único. O neoliberalismo está a impor a todo mundo o mesmo tipo de desenvolvimento, mas nós já sabemos, porque a análise já está feita, que essa ideia das fases é falsa. Eles nunca chegarão por este mesmo modelo… Aliás, os próprios Estados Unidos e as Nações Unidas dizem: se os chineses adotassem o padrão de consumo dos Estados Unidos, precisávamos de três planetas. Isto está nas Nações Unidas. Ou seja, há aqui uma grande hipocrisia de querer que os países desenvolvidos mostrem o caminho como nem sequer o caminho deles é um caminho que pode ser trilhado por outros, e eles próprios estão a desviar-se desse caminho. O que é que se passa na Europa? O que estamos a assistir na Europa é o subdesenvolvimento da Europa desenvolvida. A Europa está a empobrecer, a Europa não está a avançar, portanto o desenvolvimento nem sequer é irreversível. Podemos ter reversão, que é o que estamos a assistir neste momento. As grandes maiorias da Europa estão a empobrecer. Portanto, eu penso que este discurso de que há um progresso linear e que é único e que todos tem que seguir o mesmo caminho é obviamente uma coisa completamente falsa, errada, perigosa, e que eu espero que cada vez mais os países do G77 e outros tenham em mente que isto foi realmente uma grande armadilha. Neste momento eles ainda não chegaram a esse ponto porque estão também muito envolvidos no próprio modelo neoliberal. O que eles estão a tentar por mais verdade no sistema, isto é, não nos venham dizer que não podemos subsidiar a nossa agricultura porque vocês subsidiam as vossas vacas muito mais do que nós subsidiamos as nossas. Portanto, acabar com a hipocrisia não é mal. Agora, é evidente que a ideia de que podemos ter padrões de consumo em que este objeto ou um celular ou o laptop que poderiam durar 20 anos estão programados pra durar três para permitir exatamente que este modelo se agilize. Esta obsolescência artificial dos produtos é uma coisa que nós temos que começar a lutar contra. E veja que a Europa que estava muito avançada, por exemplo, em transportes coletivos está a privatizá-los. A grande notícia é aumento no consumo, da venda dos automóveis. Devíamos era ter mais linhas de metrô, mais transportes coletivos, mais espaços verdes e outra forma de urbanismo. Pelo contrário. A crise é uma grande oportunidade para o capital financeiro pedir a privatização dos espaços.

Marcelo Lins — Em meio à crise que a Europa vive, e boa parte do mundo também, o discurso mais repetido tem sido esse. Só o crescimento pode nos livrar das mazelas da crise. Só o crescimento vai garantir mais empregos e vai garantir uma vida melhor para as nossas populações. Afinal de contas, essa fixação com o crescimento pode acabar revertendo em resultados negativos para a humanidade?
Boaventura de Sousa Santos —
Sem dúvida. Aliás, isso é hoje praticamente consensual. O que é estranho é que sendo hoje consensual nos documentos da ONU que esta forma de desenvolvimento assenta no crescimento infinito, com uma especialização da América Latina na sua condenação histórica a exportar natureza de alguma maneira a América Latina e o Brasil a voltarem ao setor primário, e, portanto, ao que nós chamamos a reprimarização da economia. Tudo isto está hoje já denunciado como sendo um mau caminho. É um caminho que leva ao desastre. E, portanto, teremos que encontrar outras formas de definir as sociedades, definir a prosperidade dos povos sem ter que assentar exclusivamente no crescimento, alterar as nossas maneiras de conceber o PIB de maneira que sejam consideradas tantas coisas que são importantes na nossa vida, na economia do cuidado, na vida familiar, comunitária, nas atividades culturais. Hoje, nada disso conta para o PIB. No entanto, a indústria armamentista que pode destruir a população com a sua produção é realmente é um grande contribuinte para o PIB de alguns países.

Marcelo Lins — Nós vimos nas recentes eleições tanto na Grécia quanto na França o fortalecimento de correntes mais extremistas do espectro político, tanto à direita quanto à esquerda, que tinham em comum uma defesa do nacionalismo de alguma forma. O senhor acha que essas correntes extremistas vão se encontrar em algum ponto.
Boaventura de Sousa Santos —
Eu penso que não. Eu acho que na Europa neste momento não é de agora que nós estamos vindo a assistir e certo ressurgimento da extrema direita. Na própria Noruega com as consequências do massacre que assistimos recentemente, na Holanda, por exemplo, e agora também na Grécia, um grupo neonazista e a frente nacional na França que teve realmente um crescimento. Agora, realmente, junto com esse crescimento também tem havido um crescimento de forças que eu não diria que são mais extremistas. Porque todas elas têm vindo a defender a democracia. Quer dizer, o que é novo hoje na Europa, com exceção desses partidos neonazistas, eles estão a defender com base no fortalecimento da democracia. O próprio Syriza na Grécia é um aprofundamento da democracia. Não estamos a falar de forças hostis que podem vir a dominar a cena política, hostis à democracia. E na França obviamente há o partido socialista, que é um partido de centro esquerda bastante moderado. Aliás, o Hollande é conhecido como o senhor normal, portanto é um homem realmente de muitos consensos. Mas neste momento a Europa deposita muita esperança nele no sentido de por um bocadinho de bom senso, de normalidade na vida política e fazer com que a Europa não perca o Euro. Eu tenho sido um adepto obviamente da federalização da Europa. Mais democracia é o que pode salvar a Europa a nível europeu.

Marcelo Lins — Então, na sua opinião atual, a profunda crise que abala a Europa não é suficiente para acabar com o sonho de uma Europa unificada e até eventualmente federalizada como o senhor diz?
Boaventura de Sousa Santos —
Nós estamos a assistir agora também ao problema da Espanha. Portanto, pode ser uma oportunidade para reforçar a Europa. Se os líderes realmente tiverem aquela memória que você há um bocado falou que é a memória da guerra. Quer dizer, a União Europeia foi criada por gente que não criou nacionalismo europeu porque viveu todos os perigos do nacionalismo europeu, que, ao contrário do nacionalismo na América Latina ou na Índia, normalmente foi reacionário e conservador e muito agressivo. E foi isso o grande impulso da União Europeia. Eu penso que nós precisamos, até porque alguma agressividade ao nacionalismo alemão já o começamos a sentir, embora seja um nacionalismo democrático, mas começamos a sentir. Não gostamos muito da maneira como a senhora Merkel por vezes se dirige aos países como a Espanha, a Grécia, Portugal e a Irlanda. Dá a impressão que… é algo que não gostamos de ouvir porque os mais velhos lembramos de muita coisa horrível que em nome disso foi feito no passado.

Marcelo Lins — Entre vários neologismos surgidos nos últimos anos na discussão sobre desenvolvimento sustentável, formas de buscar menos impacto para esse crescimento, um tem sido o da precificação dos recursos naturais. Quem defende o uso disso diz que é necessário que os países que têm grandes reservas seja no mar, seja de florestas, consigam estabelecer um preço pra isso para usá-la ou não usá-la. O senhor já fez duras críticas a essa ideia. Por onde passa a sua crítica?
Boaventura de Sousa Santos —
A minha crítica é que esses bens são bens como os da humanidade embora estejam sobre o controle dos Estados. Não são bens que devem entrar numa lógica de mercado, pois, como sabe, essa lógica de mercado que é transformar em bem de mercado aquilo que são serviços gratuitos da natureza como este mar maravilhoso, como o ar, como outras coisas que têm a ver com a nossa vida hoje. A própria Wikipedia é um bem comum, a internet etc. No caso da natureza é transformar tudo isso, que são serviços gratuitos se assim quisermos entender, um bosque que absorve os gases do efeito estufa, transformar isso num mercado. O que é que isso significa? Significa que quem vai dominar a gestão dos bens globais, desses bens que são fundamentais, a sustentabilidade, a vida no planeta, vai ser o capital financeiro porque eles vão ser sujeitos à especulação financeira. Nós estamos a assistir a especulação financeira nas commodities e nos bens alimentares. Imagina o que isto vai ser: transformar a natureza em mais um mercado? A gente tem que saber lidar com a natureza, como por exemplo, quando estamos a presenciar o mar. A gente não está a pagar uma quantia para ir tomar banho. Quando passeamos por uma floresta, não estamos a pensar: estou aqui num bem que tem um valor econômico para o meu país. Se introduzirmos a lógica do mercado é um convite ao desastre, e obviamente por trás disso está o capital financeiro em busca de novas áreas de especulação fora do sistema produtivo, é, portanto, outra lógica que não pode ser… Deve ser a lógica da preservação comunitária do mundo. Quer dizer, o mundo pode continuar, o problema é os humanos continuarem neste mundo. O planeta talvez tem muito para andar mesmo sem nós. O problema é termos um planeta onde nós e os nossos filhos e os nossos netos possam viver. Essa que é a questão.

Marcelo Lins — Com cada país procurando resolver os seus problemas internos focados agora, como falamos, na crise, na falta de emprego e outras carências, como fortalecer opções de cooperação, organismos multilaterais e, em última instância, as Nações Unidas? Há espaço para isso ainda?
Boaventura de Sousa Santos —
Há espaço, embora realmente o que nós estamos a assistir é que cada país está mais a pensar em si. As lideranças estão absolutamente convencidas que o problema é só nacional. Não temos lideranças hoje que tenham uma visão um bocadinho mais continental, como já tivemos na Europa ou a nível do continente ou a nível mundial, como tivemos também no passado. Há alguns líderes democráticos que olhavam para o mundo como um problema a resolver no seu conjunto. A questão ambiental é uma dessas. Eu penso que o G77 tem vindo a fazer algumas propostas, quer para a reforma das Nações Unidas, o Conselho de Segurança não reflete a realidade do mundo e também alterações na própria direção do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Precisamos de outras agências multilaterais e precisamos de outra forma de governo que não pode ser dominada por estes países cujo grande poder, cuja grande capacidade de dominar o mundo já não é o capital produtivo, que está cada vez mais nos emergentes, mas é o capital financeiro, que é predador, que não tem nenhuma sensibilidade social e não atende, naturalmente, às necessidades da maioria da população e é isso que nos tem levado a essa crise em que estamos.

Marcelo Lins — E qual é o papel, se é que o senhor vê um papel para os emergentes e, especificamente o Brasil, na construção de novos paradigmas tanto no trato político quanto no trato econômico, levando em conta também a questão ambiental? Qual é o papel dos emergentes?
Boaventura de Sousa Santos —
Os emergentes têm um papel absolutamente decisivo, sobretudo daqueles países com grande população, como é o caso do Brasil, desde que eles assumam realmente alguma consciência ambiental. Eu penso que o Brasil neste momento passa por ação de photoshop nas agências das Nações Unidas. Parece numa cor muito mais bonita do que aquilo que se realiza, que se vê na prática. Nós assistimos ao que se passa com o Código Florestal, que, a meu entender, é um grande retrocesso a todas as lutas ambientais pelo que o país tinha. Há realmente uma potencialidade porque estes países agora podem paralisar uma discussão como paralisaram na Organização Mundial do Comércio. Agora, se é para fazer o mesmo tipo de desenvolvimento neoliberal predador da natureza, fazer explodir montanhas como se está agora a fazer neste continente na mineração a céu aberto para tirar da montanha, um conteúdo de cobre ou de ouro, que é 0,01%, contamina a água, destrói as populações, desloca as populações como vamos assistir na barragem de Belo Monte. Isto não é alternativa nenhuma. É fazer o que os outros fizeram e que infelizmente neste momento continua a ser dominado pelas grandes empresas do norte. As grandes empresas concessionárias da mineração, muitas delas canadenses estão a trabalhar em todo o continente. Portanto, não vejo aqui uma alternativa. Vejo um potencial, mas não vejo neste momento… Eu acho que a presidente Dilma devia dar sinais muito mais fortes do que os que têm dado. Basta ver por onde é que vai o dinheiro da pesquisa no Brasil. 95% vai para o agronegócio, 5% para a economia familiar, a economia camponesa etc. Eu penso que isto significa alguma colonização. Temos neste momento uma campanha no Brasil que é uma campanha notável a meu entender, mas que vem da sociedade civil, que é a campanha contra os agrotóxicos e pela vida, uma vez que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Há três anos que o é e isso é extremamente perigoso. Este é um sinal péssimo de que um país emergente com o potencial que tem o Brasil está a dar ao mundo. Devia obviamente reduzir rapidamente os agrotóxicos porque estão proibidos em muitos dos países que os produzem e que estão a ser consumidos aqui neste país. Isto não é de fato a alternativa.

Marcelo Lins — Conceitos como democracia participativa, democracia direta, controle social em vários setores, ainda parece gerar muito mais polêmicas do que consenso propriamente dito. Na sua opinião, qual é a forma, se é que existe, de aprofundar a experiência democrática.
Boaventura de Sousa Santos —
A democracia só se aprofunda com mais democracia. E eu penso que nós temos que atuar a dois níveis. E no Brasil isso é muito nítido em meu entender. Ao nível da democracia representativa nós precisamos de fazer uma reforma profunda do sistema político brasileiro onde o Congresso não representa a realidade social e política do país neste momento, nem sequer demográfica. Portanto há injustiças neste momento, temos que alterar o sistema de financiamento dos partidos, temos que eliminar esta corrupção endêmica, que vejo por aqui como vejo na Europa com as parcerias público-privadas sendo realmente uma grande fonte de parceria. Mas também penso que ao nível de democracia participativa precisamos de organizações sociais, de movimentos sociais que mantenham a sua autonomia com um pé fora do poder e um pé dentro também. Aliás, o Brasil fez coisas muito interessantes. Uma que eu acompanho muito de perto neste momento, acompanhei o orçamento participativo, são os conselhos nacionais de saúde. Nós não podemos esquecer que houve um avanço depois das conferências neste domínio para criar o SUS, que foi uma demanda, digamos assim, dos movimentos sociais. Ela hoje até está em perigo. Os movimentos sociais têm que manter essa pressão para que o refinanciamento do sistema se mantenha e para que os brasileiros continuem a ter um sistema unificado de saúde. E eu penso que é um campo de luta, um campo de disputa, O Estado é hoje um campo de disputa. A democracia participativa pode ter um papel importante. Qual é o problema que ela tem? É que a democracia representativa atua a nível nacional, a democracia participativa normalmente a nível municipal. Nós vimos que podemos por vezes reduzir as injustiças numa cidade, mas o Brasil no seu todo continua tão injusto ou mais do que antes.

Marcelo Lins — No seu trabalho de pesquisador décadas atrás tem uma relação muito direta com o Brasil. Queria que o senhor falasse um pouquinho disso e das grandes diferenças que viu daquele Brasil que o senhor estudou pra esse de hoje.
Boaventura de Sousa Santos —
Bem, eu cheguei ao Brasil no princípio da década de 1970 para fazer a minha dissertação que estava a ser feita numa universidade norte-americana, na Universidade de Yale, e que era um estudo nas favelas, e depois de algumas peripécias acabei por ir viver mesmo durante quatro meses no Jacarezinho, que era uma população da Zona Norte, uma favela da Zona Norte, uma das mais importantes do Rio. Então, e vivi essa realidade duma favela, duma sociedade extremamente injusta, mas onde havia gente muito digna a tentar sobreviver e a tentar ter uma vida digna nas condições piores que se pode imaginar. Não eram as que hoje o Jacarezinho tem. Era outro tempo. Estávamos em plena ditadura, todo trabalho que era político se fazia na comissão de moradores, era todo clandestino. Hoje temos um país democrático onde já nada disso ocorre. Mas infelizmente as favelas continuam a aumentar, e, portanto, não diminuíram. Ou seja, a desigualdade social do Brasil não diminuiu. Houve inovações democráticas interessantes, houve obviamente um desenvolvimento extraordinário neste modelo econômico em que nós estamos, não podemos esquecer. O país nessa altura não era considerado um país emergente, aliás, não é um conceito que eu gosto muito porque a China em 1750 era responsável por metade do comércio mundial. Não se pode dizer que a China é emergente. A China já dominou o mundo, e, portanto, esteve ausente durante um século e meio e está a regressar. Estas foram as grandes transformações deste país, e, em grande medida, para melhor. Onde não se avançou muito foi na desigualdade social que está por aí e que mostra que o padrão de urbanização neste lugar onde nós estamos mostra que é realmente insustentável, porque não é assim que a gente deve construir sociedades no futuro tão dependentes no transporte individual e na desigualdade social a que retira a maioria para os subúrbios, para as favelas, cada vez mais longes e muitas vezes também degradadas do ponto de vista social, político e também de perigo, com muita violência urbana, porque naquela altura o único negócio que havia na favela era a maconha. Agora não estamos nisso, estamos no narcotráfico de outro domínio e portanto o Brasil mudou muito desde então como era de se prever.

Marcelo Lins — Muito obrigado, professor.
Boaventura de Sousa Santos —
A todo gosto.

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