Juiz onipotente

Relatório sobre novo CPC na Câmara é autoritário

Autor

  • Antônio Cláudio da Costa Machado

    é advogado e professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP professor de pós-graduação da Faculdade de Direito de Osasco coordenador de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito mestre e doutor em Direito pela USP.

29 de agosto de 2012, 15h34

Desconsiderando muitas das críticas dos especialistas e dezenas de boas sugestões apresentadas pelos relatores parciais da Reforma do CPC,o relatório do Deputado Sérgio Barradas (PT-BA) mantém e amplia a concentração de poderes nas mãos dos juízes de primeira instância, ao arrepio dos direitos das partes e dos advogados, revelando inequivocamente o autoritarismo que cerca o projeto em tramitação na Câmara. As razões são múltiplas e passamos a enumerá-las:

1. O relatório mantém a eliminação de quase todos os procedimentos cautelares específicos que representam limitações importantes ao poder jurisdicional, tais como: o arresto; o sequestro; a busca e a apreensão; o arrolamento; a caução. A falta dessas disciplinas dará poderes enormes aos juízes em matéria cautelar, colocando em perigo nosso patrimônio e nossa liberdade;

2. O relatório Sérgio Barradas mantém a possibilidade de o juiz conceder medidas cautelares de ofício fora dos casos expressamente previstos em lei (artigo 284);

3. O relatório também mantém expressamente o poder concedido aos magistrados para determinar “a intervenção judicial em atividade empresarial ou similar” (artigo 548), o que significa enorme perigo para a atividade econômica brasileira;

4. Desconsiderando tanto a proposta original do Senado quanto as variadas críticas apresentadas nas audiências públicas e em publicações dos especialistas, as figuras do processo cautelar e das medidas cautelares, tão conhecidas e tão estudadas no Brasil desde os anos 1930 quando veio à luz a doutrina insuperável de Piero Calamandrei, são reduzidas ao instituto da tutela antecipada, o que também contribui para a criação de super juízes e para a mitigação do direito de defesa (artigos 277 a 293);

5. O relatório mantém o exagero e o absurdo de conferir aos juízes de primeiro grau o poder para “dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova” (artigo 121, inciso IV), em franca oposição à garantia constitucional do devido processo legal;

6. O relatório Sérgio Barradas preserva a perigossíma autorização dada aos magistrados para, ao “aplicar o ordenamento jurídico”, promover “a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência” (artigo 6º), princípios constitucionais abstratos que se dirigem aos Poderes Legislativo e Executivo e ao Supremo Tribunal Federal — no âmbito do controle de constitucionalidade —, mas não aos juízes de primeira instância;

7. O relatório mantém a eliminação de vários procedimentos especiais — como a ação de depósito, anunciação de obra nova, a reserva de domínio e a prestação de contas pelo devedor —, o que significa que o nosso processo civil ficará mais pobre, já que os procedimentos especiais permitem a adaptação do processo às peculiaridades dos direitos materiais, e mais autoritário, já que os juízes ficarão livres de requisitos e condições para a concessão da tutela jurisdicional. Além disso, o sistema ficará privado dos valores fundamentais representados pela segurança e pela previsibilidade;

8. Ainda no plano dos procedimentos especiais, agora focalizados os de jurisdição voluntária, o relatório Sérgio Barradas equivocadamente se posiciona pela eliminação da “separação consensual”, como se essa fosse a única interpretação possível da Emenda Constitucional 66/2010 (Seção IV, artigos 750 e 751);

9. A eliminação das “medidas provisionais” do CPC de 1973 (artigo 888, incisos de II a VII) e sua pura e simples substituição pelo novo procedimento especial denominado “Das Ações de Família” (artigos 719 a 725) — que não reconhece a figura da “separação”, que submete as causas envolvendo criança e adolescente aos procedimentos do ECA e que exclui a intervenção do Ministério Público, salvo no caso de interesse de incapaz — demanda apreciação cuidadosa em sede legislativa para que não se criem mais problemas do que soluções quando da sua utilização prática pelo Poder Judiciário;

10. O relatório Sérgio Barradas se mostra profundamente autoritário ao não admitir o recurso do agravo de instrumento contra decisões interlocutórias que indefiram a produção de provas (artigo 1.029). É sabido que uma causa é vencida ou perdida em juízo em função das provas que se podem ou não produzir. A ausência do agravo neste âmbito significa ferir de morte as garantias do contraditório e da ampla defesa e, por conseguinte, ferir de morte a própria advocacia;

11. Identicamente autoritário se mostra o relatório ao não admitir o agravo de instrumento contra decisões que apreciem a inversão do ônus da prova, a inadmissibilidade da prova ilícita e a prova emprestada. Submeter a reapreciação de tais matérias apenas ao recurso de apelação é praticar injustiça qualificada contra a advocacia e contra a cidadania;

12. Na esteira das críticas constantes dos dois tópicos anteriores, parece também de todo antidemocrática a eliminação pura e simples do recurso de agravo retido que permite hoje o ataque imediato e oral a decisões ilegais que o juiz toma nas audiências de instrução e julgamento. Sem o agravo retido, estaremos submetidos ao silêncio e a decisões incontrastáveis dos magistrados de primeira instância. O relatório Barradas presta seu integral consentimento a mais essa amputação dos direitos da advocacia;

13. A restrição enorme imposta ao agravo de instrumento e a eliminação do agravo retido são apenas dois lados do mesmo caminho que sedimenta o desaparecimento do instituto da preclusão (artigo 1.023, parágrafo único), para as decisões judiciais de caráter probatório. Trata-se de uma justificativa aparentemente legítima, mas que esconde o mais puro arbítrio contra a liberdade de provar;

14. Outro aspecto que revela o inescondível caráter autoritário do relatório Sérgio Barradas é a manutenção da proposta cruel de eliminação do efeito suspensivo da apelação (artigos 1.009 e 1.028). Num país onde 40% das sentenças são reformadas pelos tribunais, não é possível retirar o efeito suspensivo ex lege do apelo sem provocar uma avalanche de injustiças. No Brasil, a maior garantia de um julgamento justo repousa na expectativa de cumprimento do duplo grau de jurisdição. Permitir a execução provisória da sentença, como regra, significará, além de tudo, um enorme retrocesso na nossa cultura jurídica. A eliminação do efeito suspensivo não é necessária, mas sim um choque de gestão que torne o nosso Poder Judiciário uma máquina que trabalhe melhor para a solução dos conflitos — como vem fazendo o Rio de Janeiro, que julga uma apelação em oito meses. Eis a saída democrática para o problema;

15. A arbitrariedade representada pela proposta de desaparecimento do efeito suspensivo da apelação não é compensada pela atribuição de poder ao relator para impedir a execução, (artigo 1.028). A questão é que será imposto um enorme trabalho ao relator para atribuir o efeito suspensivo, já que terá de dar razão ao apelante, e tirá-la do juiz, o que vai significar a necessidade de proferimento de uma decisão bem fundamentada. Pelo contrário, para negar o efeito suspensivo, bastará ao relator sustentar a sentença do juiz por “seus próprios e jurídicos fundamentos”, o que será infinitamente mais fácil. Conclusão: haverá de fato uma avalanche de execuções provisórias se a proposta for aprovada e um risco de muita injustiça ser perpetrada em nome da celeridade processual;

16. Na linha de pensamento de apressar as execuções, segue outra proposição profundamente autoritária sugerida pelo relatório Sérgio Barradas. Trata-se da disposição que institui o que se pode chamar de “apelação de instrumento”, o que vai equiparar, em termos de processamento, a apelação ao agravo (artigo 1.024 e parágrafos). Autoritária a proposta porque, a pretexto de agilizar a execução provisória nos autos que repousam na primeira instância, vai impor ao advogado do apelante a exigência de reprodução completa de todas as peças dos autos para a instrução da petição de interposição do apelo que deverá ser dirigida diretamente ao tribunal. Tornar-se-á muito mais difícil o ato de apelar, o que, somado à facilidade de executar provisoriamente as sentenças, vai criar entre nós uma Justiça de instância única de poderes concentrados e absolutos nas mãos dos juízes de primeiro grau;

17. Se não bastassem os poderes instrutórios, antecipatórios e cautelares quase sem limites concedidos aos magistrados, além dos poderes para executar imediatamente suas próprias sentenças, o relatório Sérgio Barradas também mantém a autoritária forma de punição representada pela sucumbência recursal a ser imposta a quem ousar desafiar a sentença por meio de apelação (artigo 86, parágrafo 1º). O enfraquecimento do duplo grau de jurisdição e, por consequência, do direito ao contraditório e à ampla defesa, estará definitivamente estabelecido entre nós;

18. De todo o exposto e tendo em vista como se encontra projetado o Código de Processo Civil mais autoritário de que já se teve notícia em nossa história, fica também a certeza de que o prevalecimento do relatório Sérgio Barradas poderá representar uma grande porta aberta à incontrolabilidade das decisões, insegurança jurídica e à própria corrupção no seio do Poder Judiciário.

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    é advogado e professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP, professor de pós-graduação da Faculdade de Direito de Osasco, coordenador de Direito Processual Civil da Escola Paulista de Direito, mestre e doutor em Direito pela USP.

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