Direito Comparado

Corte portuguesa aceita prazo para ação de paternidade

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de agosto de 2012, 8h00

Otavio Luiz Rodrigues - 20/06/2012 [Spacca]O Tribunal Constitucional português divulgou um interessante julgado sobre a constitucionalidade do artigo 1.817 do Código Civil, que trata do prazo para o ajuizamento da ação de investigação de paternidade, assim redigido:[1]

ARTIGO 1817.º

(Prazo para a proposição da acção)

1 – A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

2 – Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815.º, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório.

3 – A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:

a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante;

b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe;

c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.

4 – No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção.

O Tribunal Constitucional conheceu de recurso interposto pelo Ministério Público em face de decisão do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar, que não aplicou, “por serem materialmente inconstitucionais, as normas constantes do n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil e da alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo, na redação dada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, nas quais se prevêem prazos de caducidade para o direito de investigar a paternidade”.

Ao apreciar o recurso, o TC invocou precedentes anteriores, nos quais se punha em causa os limites (ou não) do direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade, o que implicaria saber se “ele há de necessariamente traduzir-se, ao nível do sistema legal, no imperativo «absoluto» referido pelo autor, entendido o qualificativo nos estritos termos pressupostos na transcrição feita — ou seja, como excluindo toda e qualquer regulamentação que, não apenas restrinja, mas simplesmente condicione o exercício do direito em causa, e possa vir a traduzir-se, assim, num obstáculo concreto à sua completa fruição”.

O TC, baseando-se na doutrina de José Carlos Vieira de Andrade[2], fez a diferenciação entre condicionamento e restrição aos direitos fundamentais, embora reconheça a dificuldade prática desse processo.[3] Em seguida, apelou para o juízo de adequação e proporcionalidade, a fim de resolver o caso: “Tudo está em que, face ao direito do filho ao reconhecimento da paternidade, se perfilam outros direitos ou interesses, igualmente merecedores de tutela jurídica: em primeiro lugar, e antes de mais, o interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, e em não ter de contestar a respetiva ação quando a prova se haja tornado mais aleatória; depois, um interesse da mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à álea da prova e às eventuais dificuldades de contraprova com que podem vir a confrontar-se; além disso, porventura, o próprio interesse, sendo o caso, da paz e da harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai.”

Nessa ordem de ideias, o TC entendeu que “o legislador ordinário goza de liberdade para determinar, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, se pretende submeter as ações de investigação da paternidade a um prazo preclusivo ou não, cabendo-lhe ainda fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo”.

A margem de conformação do legislador ordinário teria sido respeitada pelo TC.

Analisando especificamente a norma atacada, os fundamentos do voto-condutor do conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira assim se resumem:

a) O número 1 do artigo 1.817 do Código Civil português prevê o prazo geral de dez anos, contados da maioridade, para ajuizamento da investigatória de paternidade. Enquanto que o número 3 do dispositivo estatui situações excepcionais, que permitem a ultrapassagem desse limite temporal.

b) Haverá hipóteses nas quais “a ação de investigação de paternidade pode ser instaurada depois de decorridos dez anos sobre a maioridade do investigante e mesmo após a morte do investigado, conquanto, neste último caso, a posse de estado se mantenha nessa data”.

c) “A caducidade das ações de investigação da filiação não constitui apenas uma sanção civilística pelo não exercício do direito durante um certo período de tempo”, porquanto, conforme a jurisprudência do TC, “as razões de fixação de prazos de caducidade para a instauração de ações de investigação de paternidade prendem-se com preocupações não só de segurança jurídica, mas também de abuso de direito, como a que terá estado na assunção originária de prazos de caducidade nesta matéria”.

d) O TC historicamente compreende que há “interesses gerais” ou “valores de organização social” ligados à instituição da família, que podem “justificar a consolidação definitiva na ordem jurídica de uma paternidade, porventura não correspondente à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo”.

e) Os prazos para ajuizamento das ações de investigação de paternidade ou maternidade serão proporcionais, desde que permitam aos titulares do direito à identidade pessoal uma margem efetiva para deduzir suas pretensões em juízo: “Pode considerar-se, aliás, ser esse o conteúdo essencial do direito em causa, e não um suposto direito a investigar ad aeternum as referidas relações de filiação”.

f) A posição do TC encontra amparo na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, segundo a qual é possível fixar pressupostos ao exercício da pretensão de investigar a paternidade, ao exemplo de prazos, desde que não se tornem impeditivos desse ato ou criem ônus exagerados para as partes.

g) Especificamente no que se refere ao artigo 1.817, o TC definiu que, “através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais de três anos, o atual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito”.

O TC português decidiu não julgar inconstitucional o artigo 1817º, número 1, do Código Civil, muito menos o número 3 do mesmo dispositivo.

É interessante comentar que houve fundamentado voto dissidente do conselheiro Gil Galvão, para quem “a norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, ao fixar um prazo de caducidade para a instauração de ação de investigação de paternidade, em vida do progenitor, constitui uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição”.

No Brasil, em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu o histórico caso da investigação de paternidade, que permitiu o julgamento de nova ação proposta pelo filho que, em uma primeira pretensão deduzida, não realizou a prova pericial do DNA, em face da deficiência dos meios oferecidos pelo Estado. O acórdão proferido no RE 363.889, que teve como relator o ministro Dias Toffoli, julgado pelo Pleno em 2 de junho de 2011, publicado no Diário da Justiça eletrônico em 15 de dezembro de 2011, teve conteúdo absolutamente diverso do quanto decidido pelo TC de Portugal.

Após rejeitar a argumentação fundada na dignidade humana, por considerá-la desnecessária e excessiva para o caso, o relator concedeu que houve evolução nos meios tecnológicos e que não mais se conservariam úteis as antigas presunções sobre a paternidade: “Em grande medida, esse problema da estabilidade das relações jurídicas, no subconjunto específico da paternidade, ligava-se a três fatores historicamente delimitados: a) o nível ainda elementar de desenvolvimento das Ciências Naturais, o que tornava os questionamentos em torno da paternidade absolutamente débeis no campo probatório; b) a facilidade com que se resolviam os casos levados aos tribunais pelo critério das presunções iuris; c) os níveis diferenciados de filiação, que se conectavam com a estrutura familiar binária (legítima-ilegítima), que perdurou nas sociedades ocidentais por séculos”.

Após expor a evolução de figuras e institutos jurídicos ligados à paternidade no Direito de Família e cuidar do problema da flexibilização da coisa julgada, o relator definiu que o direito fundamental à informação genética haveria de ser reconhecido pelo STF. Por esse efeito, “a verdade sobre a origem biológica” deveria ser “investigada e que uma resposta calcada em critérios técnicos de quase absoluta veracidade” mereceria preeminência sobre prazos e presunções.

Nos debates, por ocasião do julgamento, levantou-se o argumento da estabilidade das relações familiares, que se mostraria enfraquecida se surgisse, anos depois, um filho não reconhecido, a despeito do trânsito em julgado de ação anterior, e esse pretendesse reabrir a discussão sobre a paternidade de um homem que constituíra nova família. No voto do ministro Dias Toffoli, baseando-se na melhor doutrina, encontrava-se a resposta a essa objeção: “Reitero, ainda uma vez, que a denominada ‘verdade do sangue’ não deve ser dotada de um caráter absoluto, a ser utilizada como resposta pronta e acabada para todos os litígios acerca de assunto tão delicado como esse aqui em debate, transcrevendo, nesse particular, a advertência feita por Márcio Antonio Boscaro, em sua tese sobre o tema, ao asseverar que ‘[e]m matéria de direito de filiação, nem sempre a busca e a revelação da verdade podem representar o melhor caminho a seguir, pois não se pode deixar de levar em consideração, quando se trata desse ramo do direito, a advertência feita por Gérard Cornu, um dos principais doutrinadores franceses sobre o tema, no sentido de que o direito de filiação não é apenas um direito da verdade, mas, também, e principalmente, da vida, do interesse da criança, da paz das famílias, da ordem estabelecida e, ainda, do tempo que passa’ (Direito de Filiação. São Paulo: RT, 2002. p. 192)”.

A opção brasileira, como reconhecido no voto, também foi divergente da orientação do Tribunal Constitucional da Alemanha, porquanto o STF pôs em causa o direito fundamental à informação genética, sem maiores reservas quanto aos prazos para exercício das pretensões no campo da prova da filiação, muito menos à intimidade dos genitores.

A leitura comparada de soluções absolutamente diversas dos dois Tribunais Constitucionais é muito fecunda e se presta a diversas análises. Uma delas é a de demarcar a originalidade do pensamento jurídico desenvolvido no Brasil, muita vez marcado pela autocrítica excessiva. A outra está na contemporaneidade do debate em torno do direito fundamental à informação genética. As questões mais do que nunca ainda estão abertas. O STF, contudo, preferiu guardar fidelidade à História brasileira, tão bem representada em nossa literatura, como descreveu Machado de Assis, citado no acórdão, em seu romance “Helena”, com a abertura de um testamento, no qual um homem perfilhava sua descendente, trazendo-a para o mundo “legítimo”: “O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, havida com D. Ângela da Soledade. Esta menina estava sendo educada em um colégio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio fosse”.

Se o Direito não pode exigir que se dê carinho e que se trate com desvelo alguém, pois isso não é obrigação jurídica, mas moral, ao menos tem condições de lhe dar o acesso às prerrogativas que a condição de filho lhe assegura.[4]


[1] PORTUGAL. Tribunal Constitucional, Primeira Seção, Relator Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira, Acórdão N.º 247/2012, 22.5.2012. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120247.html . Acesso em 26-6-2012.

[2] Autor de obra clássica sobre direitos fundamentais em língua portuguesa: Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2007.

[3] Recomenda-se a leitura do artigo de Virgílio Afonso da Silva intitulado “O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais” (Revista de Direito do Estado, v. 4, p. 23-51, 2006), no qual se examinam as interessantes questões sobre restrição, regulação e condicionamento de direitos fundamentais.

[4] O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Caso do Abandono Afetivo, foi além e cunhou a expressão: “Amar é faculdade, cuidar é dever”, admitindo o dever de indenizar pelo pai que não cuidou de seu filho, a despeito de honrar as obrigações materiais. Essa é outra discussão e será objeto de outra coluna.

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  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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