Mereça a moça

“O que menos importava era o importante: as crianças”

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21 de agosto de 2012, 12h28

— A senhora, então, chama as crianças e elas vão contar tudo.

— O senhor acha mesmo que eu vou ter coragem de pedir para seus dois filhos de 6 e 8 anos entrarem aqui, olharem para mim, uma desconhecida, e pedir que eles me contem se a mãe deles se embriaga e fica roçando – não foi isso que o senhor falou? – em tudo quanto é homem que passa?! No dia que eu fizer isso, o senhor fica autorizado a procurar o promotor e pedir pra interditar a juíza que ficou maluca!

O tom veemente com que eu me dirigia a Welington era absolutamente inadequado para a situação. No entanto, há quase duas horas eu tentava fazer o casal compreender que, mesmo separados, os filhos eram definitivos e não se podia, a cada final de semana, expor as crianças ao comparecimento em delegacias, ao fórum e ao conselho tutelar da cidade. Eles até pareciam entender, mas, logo, recomeçavam as provocações intermináveis.

Viveram juntos por 12 anos, com seis interrupções pelo caminho. Todas essas vezes entraram na Justiça com processos de guarda, alimentos e visitação dos filhos que foram arquivados a cada reconciliação dos dois.

Morando em casas separadas há apenas dois meses, Silmara foi impedida de buscar os filhos de volta, no domingo à noite, porque Welington achou que ela chegou muito tarde. Se quisesse as crianças, procurasse a Justiça.

Recebi, na segunda-feira, um pedido de busca e apreensão. Um procedimento que tenha esse nome não pode ser boa coisa, principalmente se você é a parte mais fraca que vai ser buscada e apreendida.

Consigo contar nos dedos de uma mão o número de vezes em que autorizei a medida sem ouvir a outra parte. Só quando alguma criança corre riscos, caso permaneça na situação que se encontra. Caso contrário, faço como neste processo: marco uma audiência especial para o dia seguinte, com a presença do casal.

Para Welington e Silmara, o que menos importava, ali, era o mais importante: as crianças. Como em quase todos os casos envolvendo guarda e visitação, o que os dois queriam era a possibilidade de um reencontro para o acerto de contas, na única área que os unia para sempre: a prole.

Passaram um longo tempo da audiência ocupados em se acusarem mutuamente. “Vagabunda” e “frouxo” foram os adjetivos mais carinhosos que trocaram na ocasião. Imaginei, de todo modo, que se os deixasse falar das mágoas e ressentimentos, poderíamos chegar a um bom termo para facilitar a vida dos meninos.

Quando tudo se encaminhava para a compreensão, ela o provocava e, mascando chicletes, o encarava, testando sua capacidade de sedução. Welington caía em todas as armadilhas que ela espalhava pelo caminho, até perder a razão e, desesperado, apelar para a interferência dos filhos, como seus patronos de angústia, coisa que eu não podia permitir.

Respirei fundo, mais uma vez, e, serenamente, elogiei o papel que ambos representavam como pais. Afinal, as crianças, apesar de tudo, estavam bem cuidadas, tinham bom desempenho na escola e eram dóceis e afetuosas com ambos.

Foi a deixa para que ele se desarmasse. No começo, Silmara era boa em tudo. Boa mãe, boa mulher. Sempre com aquele jeito debochado e provocante, que ele acreditava que podia, com o tempo, consertar. Welington gostava dela e não tinha lugar onde fossem que alguém não o invejasse pelo temperamento bem humorado da mulher. Ela só precisava entender que era uma mulher casada, tinha filhos. Não era possível viver em bares, bebendo e vivendo uma vida de solteira.

— Da outra vez, doutora, ela me traiu com o vizinho da frente, um frangote de 24 anos e eu perdoei.

Olhei para Silmara que, disfarçadamente, piscou o olho para mim, buscando cumplicidade. Segurei o riso.

Silmara não era uma mulher bonita. Nem interessante. Se havia alguma ponta de beleza ou de charme, ela cuidou de esconder direitinho por baixo dos cabelos alisados e quase brancos pelo uso excessivo de tinta. Uma blusa muito apertada deixava a mostra um pedaço de tatuagem borrada. A alça encardida e puída do sutiã completava a moldura daquela moça, que pouco mais de 30 anos tinha vivido, tempo suficiente para estorricar a pele no sol e experimentar todos os produtos contraindicados para qualquer pele sensível. Ainda assim se sentia poderosa, sedutora e tinha o controle total de Welington, encolhido no uniforme dos Correios e pronto para mais outra tentativa.

— Olha pra mim se tu é homem! Diz que não tá louco pra voltar pra casa.

Welington estava. Sem nenhum pudor, pediram mais um arquivamento do processo. Ainda há quem reclame da lentidão da Justiça.

Há fetiches mais duradouros e mais lentos…

Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, se transformará no livro “A vida não é justa”, que será lançado em novembro pela Editora Nova Fronteira.

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