Embargos Culturais

O conceito de justiça em John Stuart Mill

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

19 de agosto de 2012, 8h00

John Stuart Mill foi um pensador inglês do século XIX que provavelmente colheria em alguns de nossos debates atuais um farto material anedótico. Mill era um utilitarista, isto é, ideias valem por utilidade prática. Não perderia seu tempo exibindo uma cultura que certamente tinha (seu pai, James Mill, fora seu tutor); dedicava-se à vida real, ainda que esse sacerdócio que se resgatasse no plano das ideias. Não criticava por criticar. Mill construiu um sistema. Tratou de economia, lógica, política, Direito, entre tantos assuntos, que bem dominava. Procuro algum insumo em seu conceito de justiça.

O conceito de justiça em John Stuart Mill suscita percepção prática e utilitária. Para Mill, justiça seria um nome apropriado para certas utilidades sociais que são muito importantes. Utilidade e felicidade seriam os objetivos da justiça, pura e simplesmente. No entanto, queixava-se Mill, critérios de certo e de errado, em tempos de especulação, poderiam obstaculizar uma boa compreensão de um sentido adequado de justiça. A palavra justiça, para Mill, era poderosa. Parecia ser clara, desprovida de ambiguidades, alcançando miríade de instintos, inerente à qualidade das coisas. Existiria na natureza de modo absoluto.

A ideia de justiça também se aproximaria dos chamados conceitos morais, pelo que não teríamos conexões necessárias entre os problemas levantados pela identificação da origem da justiça, cotejados com sua força vinculante. No entanto, não seria o legado natural do conceito de justiça que legitimaria todas as razões que da justiça emergem. Mill vinculava a justiça a instinto peculiar que, a exemplo dos demais instintos deveria ser controlado e iluminado por uma razão mais alta.

Assim, para Mill, se possuímos instintos intelectuais, que nos levam a determinadas fórmulas e modos de julgamento, também conhecemos e vivemos instintos animais. Estes últimos nos levam a agirmos de modos determinados. Reconhecia Mill que nada comprovaria ou justificaria que o instinto intelectual fosse mais infalível em seu campo de ação, comparado com o instinto animal, também em sua esfera particular de incidência. Inferia Mill que poderia haver maus julgamentos, decorrentes da falibilidade do instinto intelectual, do mesmo modo que se falar em erros, que expressariam também a falibilidade dos instintos animais.

Mill observava que uma coisa seria acreditarmos que possuímos sentimentos naturais de justiça. Outra, absolutamente diferente, seria reconhecermos nesses sentimentos naturais um critério último, revelador de condutas mais adequadas. A crença na posse de sentimentos naturais de justiça e o reconhecimento de que tais sentimentos revelam as melhores condutas substancializariam duas opiniões. Estas não se separam ou divergem. De fato, segundo Mill, interligavam-se na vida fática.

Para Mill, “a humanidade estaria sempre predisposta a acreditar que qualquer sentimento subjetivo, que não seja reconhecido de outro modo, seja a revelação de uma realidade objetiva”. Deve-se buscar a realidade à qual o sentimento de justiça corresponda. Deve-se compreender se a justiça (ou a injustiça) de uma ação seja algo intrinsecamente peculiar e distinto de todas as demais qualidades. Ou ainda, Mill preocupava-se em identificar se o sentimento de justiça fosse a combinação de algumas qualidades, tomadas, apreendidas e apresentadas de modo que se apresentasse como algo realmente peculiar.

Mill indagava se o sentimento de justiça não seria potencialmente subjetivo, a exemplo das sensações indicativas de cor, ou de gosto ou, ainda, se não plasmaria um sentido derivado, resultante da combinação de várias sensações, ou de sentimentos. Queixava-se Mill que “(…) as pessoas se recusam a ver na justiça um mero ramo particular de utilidade geral, e pensam que sua força vinculante superior exige uma origem totalmente diferente”. O que distinguiria e caracterizaria a justiça, ou a injustiça, é questão recorrente nas reflexões de Mill.

A justiça, bem como outros atributos morais, seria definida pelo alcance de seus opostos. A justiça, pois, qualificaria a negação da injustiça. Buscam-se, então, atributos gerais da justiça na verificação do conteúdo fático decorrente da identificação da injustiça. O problema deixa de ser metafísico, dado que exige exame de casos concretos. Indaga-se, por isso, de circunstâncias universalmente associadas coma a excitação provocada pelo sentimento do justo, e indicativas da sensação do injusto. Como?

Em princípio, na expressão de Mill, injusta é a retirada da propriedade particular de alguém. Não necessariamente, obtempera o filósofo inglês; a perda da propriedade pode decorrer, entre outros da renúncia, ou mesmo da perda, do direito de propriedade. Além do que, continua Mill, os direitos de propriedade perdidos podem qualificar direitos que por alguma razão não pertenciam ao titular que os perdeu. Mill reconhece que a lei que outorgou a prerrogativa da propriedade, nesse caso concreto, possa ser uma lei de péssima qualidade. Não se poderia objetivamente saber se a perda de propriedade, nesse caso, fora justa ou injusta. No entanto, percepção que anunciava o positivismo suscitaria que a lei não poderia ser desobedecida, em nenhuma circunstância, fosse ela justa ou injusta, boa ou má. Defendendo a aplicação da lei, em qualquer caso, o positivismo de Mill indicava-nos que a proteção da humanidade justificaria que sentimentos de submissão ao direito determinassem que se entendesse a lei que retirou (ou que protegeu) a propriedade fosse justa.

É que, do contrário, ter-se-ia como axiomático que lei má não precisaria ser obedecida. Assim, para Mill, não basta que uma lei seja justa, ou injusta, basta que seja útil. Por isso, a injustiça de uma lei poderia ser aferida pela inutilidade que sua obediência pudesse indicar. Segundo Mill, a lei apenas acena com um benefício, ou com um mal. Mill observava também que seria universal a concordância com o axioma de que toda pessoa deve ter o que merece (bem ou mal). A justiça, assim, seria matéria de merecimento, porque merece o bem quem pratica o bem.

A quebra de confiança é indicativo de injustiça, e Mill exemplifica a ideia com a violação de um compromisso, expressa ou implicitamente. De igual modo, seria indicativo de injustiça que se frustrem expectativas, que foram criadas pela própria conduta. O que, no entanto, segundo Mill, não seria absoluto, porquanto condutas podem ser violadas por imperativo de justiça, também muito fortes.

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