Direito & Mídia

Lições do delegado Espinosa para o capitão Nascimento

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15 de agosto de 2012, 12h36

Spacca
A senhora Cì Rén Mǎ Bái, ou Lotus de Longa Vida, é uma tibetana de família tradicional, espécie de matriarca em sua aldeia de Gong Zhong. Poucas vezes saiu de sua ampla residência de muitas salas, sofás e tapetes, em que se destaca no andar de cima um pequeno oratório. Às vezes convida os vizinhos e chama um lama para conduzir as orações. É nos dias curtos de inverno que vai, alguma vez, orar num dos imponentes templos de Lhasa, onde vive a filha. No entanto ela sabe bastante sobre o Brasil, pois como milhões de outros chineses acompanhou as peripécias de Lucélia Santos na novela “Isôra”, a Escrava Isaura da Globo. 

A pele moreno-escura, quase negra, queimada pelo sol do altiplano do Tibet, a mais de 4 mil metros de altura, revela mais anos que os 50 vividos por essa senhora meiga, que se envergonha quando lhe dou um beijo na mão, ao presenteá-la com uma paçoquinha. O motorista Ping Cuo, do departamentno de turismo do Tibet, é apelidado de “André” por seus companheiros – justamente pelo tom escuro da pele, referência ao personagem negro da mesma novela, interpretado pelo ator Haroldo de Oliveira, falecido em 2003.

Passados tantos anos, “Isôra” é uma das maiores referências sobre o Brasil na China. E esse filão, como tantos outros, foi muito pouco explorado (consta que Lucélia Santos participou de uma produção chinesa). Hoje a TV estatal CCTV passa em seu canal 8 a versão dublada de Casa das Sete Mulheres, após estratégicos cortes de cenas mais sensuais. E Tropa de Elite 2, com cerca de 24 minutos de cenas violentas cortadas, alcança relativo sucesso nos cinemas e nas boas lojas de DVD da China.

Ter um “relativo sucesso” num país de 1,3 bilhão de habitantes não é pouca coisa. O maior sucesso brasileiro na China foi o filme A Estrada da Vida, de Nelson Pereira dos Santos, contando a saga da dupla caipira Milionário e José Rico. Lançado no Brasil em 1980, um homem de negócios chinês comprou os direitos e dublou a fita para o mercado chinês. O filme foi visto por mais de 300 milhões de espectadores. Dá para acreditar? Durante décadas Dona Flor foi a maior bilheteria do Brasil, com uma marca trinta vezes menor.

A jornalista Anamaria Boschi, residente em Pequim, onde trabalhou na Rádio China, promove anualmente, na altura do mês de outubro, uma mostra de cinema brasileiro, com exibições em salas de Xangai e de Pequim – e comenta que trará este ano Nelson Pereira dos Santos como uma das atrações da mostra.

Mas voltemos ao Capitão Nascimento do filme de José Padilha e seu possível sucesso na China, mesmo com 24 minutos cortados. Lembro do entusiasmo com que muitos alunos comentaram o filme quando estreou no Brasil – alguns garantiam que o público aplaudia ao final da fita. Demorei um pouco a ir conferir esse filme em que a narrativa era conduzida pela palavra, mais do que pela imagem – exatamente o oposto do que Pasolini propôs num texto que já nasceu clássico, sobre a poética da imagem, o filme sem o excesso da muleta do texto. E o capitão Nascimento nesta continuação da obra não parava de falar e de refletir sobre o “sistema”. Sempre me pareceu que o personagem vivido pelo excelente Wagner Moura demorou demais para entender que a corrupção não existe apenas na polícia, e que é no seio da política e dos jogos de interesses dos donos do poder que se cevam os grandes ataques à coisa pública. Ao se referir a uma entidade abstrata, no caso “o sistema”, Nascimento revela inacreditável ingenuidade – e a cena final mostrando Brasília e a Praça dos Três Poderes é quase constrangedora.

É hora de deixar Brasília e o desencantado capitão da Tropa de Elite e ir para o Bairro Peixoto, um enclave tranquilo de Copacabana, onde vive o delegado Espinosa.

Fui apresentado ao então jovem delegado Espinosa em 1996, pelo escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, professor universitário e psicanalista. Autor de obras acadêmicas na área de psicologia, ao se aposentar, aos 60 anos, Garcia-Roza decidiu dedicar-se à literatura. Escolheu escrever romance policial, um gênero praticamente inexistente em nossa ficção.

Foi com O Silêncio da Chuva, primeiro trabalho de Garcia-Roza em sua proposta de se tornar romancista, que conheci o Delegado Espinosa. O livro de estreia ganhou um dos principais prêmios literários do país, o Jabuti. E Garcia-Roza conquistou um fiel leitor, que acompanhou o trabalho desse delegado que trata bem seus suspeitos, tem paciência de Jó em dar tempo ao tempo, nunca usando de expedientes escusos para obrigar um menino de rua a contar o que sabe.

Naquele 1996 telefonei para Garcia-Roza na tentativa de agendar uma entrevista, pois achava que o frescor de sua narrativa e a criação de um delegado amante de livros – que fareja em sebos, empilhando-os um sobre o outro, de modo a formar improvisadas estantes – interessava à proposta editorial que tentava imprimir à revista Elle, última publicação que dirigi na Editora Abril. Mas a visão da secretaria editorial da empresa era outra, queriam a “Tiazinha” na capa – aquela instant celebrity que com um chicotinho castigava os garotos que erravam alguma das tarefas insólitas propostas pelo entreante Luciano Huck nas tardes da TV Bandeirantes. Nesse desencontro de visões, fui cuidar de nova carreira na academia, entrando no mestrado aos 50 anos. E a entrevista com Garcia-Roza continua pendente, passados dezesseis anos.

Ao longo desse período fui colecionando os títulos saídos da criativa urdidura de Garcia-Roza. Achados e perdidos, em 1998; Vento sudoeste, 1999; Uma Janela em Copacabana, 2001; Perseguido, 2004; Espinosa sem saída, 2006; Na multidão, 2007; Céu de origamis, 2009, todos pela Cia das Letras.

Agora, para ler nessa longa viagem para o Tibete comprei o mais recente episódio da construção consistente de Garcia-Roza, Fantasma, lançado há dois meses. Foi daquelas leituras que a gente sente pena por chegar logo ao final: poderia ter uns tantos capítulos mais.

Espinosa já não é o bacharel jovem mas segue usando a inteligência e não a prepotência para resolver os casos intrincados de extermínio de menores de rua, de assassinatos, roubos que envolvem e expõem as pequenas misérias humanas. Ele envelheceu, é agora um cinquentão, como envelhecemos Garcia-Roza e eu.

Espinosa deixa por uns dias o apartamento no Bairro do Peixoto e se transfere para um hotelzinho ali perto, para realizar finalmente a reforma do banheiro e da cozinha do pequeno apartamento onde sempre viveu. Jamais foi um supertira disposto a fazer a faxina dos “maus elementos” da corporação com palavras de ordem (“Pede pra sair!”), pois para ele a realidade não se resume a um jogo maniqueísta que divide ou separa os bons dos maus.

Em Fantasma, uma mulher beirando a casa dos 30 anos, com sério problema de obesidade mórbida, vive numa calçada da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, a duas quadras da delegacia comandada por Espinosa. Loura e de gestos delicados, fala mansa, é conhecida como Princesa. Numa madrugada, um estrangeiro chega de táxi e desce em frente a um prédio a poucos passos do local onde Princesa está estirada, talvez dormindo. O recém-chegado tenta se comunicar pelo celular, para poder entrar no prédio, mas é esfaqueado por dois meninos de rua, que arrastram o corpo para um canto, roubam os pertences da vítima e desaparecem na madrugada chuvosa. E o que foi feito da mala que trazia o estrangeiro?

Tudo indica que Princesa sabe mais do que admite. Mas ao viver num mundo criado por ela, confunde desejos e fantasias com a realidade. Garcia-Roza se vale do estoque interpretativo que trouxe da psicanálise para pintar com maestria alguns personagens. Além de Isaías, o namorado platônico da obesa Princesa, outra bela caracterização é a da falsa irmã do estrangeiro, que vem de São Paulo reclamar o corpo e, sobretudo, recuperar a mala.

A história termina, o autor respeita a inteligência do leitor e não se perde em explicações didáticas. Como se Garcia-Roza buscasse a meta proposta por Pasolini, de usar imagens e não a fala para “entregar” a narrativa.

Fechado o livro, vem a reflexão. A meiga senhora Cì Rén Mǎ Bái, Lotus de Longa Vida, jamais conhecerá o Delegado Espinosa. Mas ainda há uma boa chance de o Capitão Nascimento aprender com os ensinamentos desse agora maduro delegado. Com quase dez livros narrando suas histórias tão humanas, seria um bom material didático para as nossas academias de polícia. Os jovens aspirantes teriam um belo espelho para se formar como “guardadores da pólis”. Uma postura de serviço para o cidadão, sem a truculência que normalmente campeia quando esses avalistas da segurança do homem comum entram em cena. Pena que Garcia-Roza não teve ainda um público das dimensões que o filme de Nelson Pereira dos Santos conseguiu na China. Mas fica a deixa para os responsáveis pela formação de nossos policiais.

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