AP 470

Falta de vivência em audiências prejudica altas cortes

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13 de agosto de 2012, 13h40

É de conhecimento geral a filosofia socrática do “só sei que nada sei”. Antes do que (ou até mesmo como) sinal de sabedoria, o grego sabia que as várias nuances da vida e a limitação do conhecimento e da percepção humana frequentemente nos levam a rever conceitos e certezas, insistindo em afrontar a falsa segurança que a pretensa experiência nos traz. A descoberta de novas verdades e a revisitação do que antes tínhamos como correto conduzem-nos ao crescimento pessoal e profissional.

O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, a quem cabe a última palavra nos diversos conflitos de interesse sob o aspecto constitucional (artigo 102 da Constituição Federal). Se se trata de dilemas infraconstitucionais, toca ao Superior Tribunal de Justiça dizer o direito em última ratio (artigo 105 da CF). Em matéria penal e processual penal, mesmo que não se trate de ofensa direta à Constituição Federal, mas dada a amplitude conferida ao Habeas Corpus (artigo 5º, inciso LXVIII; c.c artigo 102, inciso I, alínea “i”; inciso II, alínea “a”; e inciso III, todos da CF), também o que julga o STF assume ares paradigmáticos para a sociedade brasileira.

O STF é formado por onze notáveis, indicados pelo presidente da República dentre brasileiros com reputação ilibada e notório saber jurídico (artigo 101 da CF). Na composição atual, dois dos ministros (Cesar Peluso e Luiz Fux) são magistrados de carreira, concursados, com atuação criminal desde o primeiro grau — a mais árdua — inclusive, e principalmente, presidindo audiências nessa matéria. Os demais são oriundos da advocacia (pública e privada), do Ministério Público e de outros tribunais (com acesso direto, a partir das carreiras da advocacia ou do Ministério Público). A ministra Rosa Weber é de carreira, oriunda da magistratura trabalhista.

Nem sempre o STF (ou os demais tribunais superiores) tem a exata dimensão das pequenas nuances que ocorrem no processo penal, notadamente em primeiro grau. Não por falta de conhecimento jurídico, mas por carência da vivência cotidiana em audiências, como as realizadas pelos juízes criminais de todo o país. Isso gera alguns argumentos de defesa por vezes acolhidos nos colegiados, um tanto distantes das vicissitudes do primeiro grau.

Como regra, os grandes advogados criminalistas especializam-se essencialmente nas alegações de ordem processual (ou de forma): cerceamento de defesa, ofensa a devido processo legal, nulidades e quejandos. Um bom advogado há de provocar tudo isso ao longo de todo o processo criminal; ora em maior, ora em menor intensidade. A preocupação do advogado com a verdade não pode ser tão relevante ao ponto de abrir mão da possibilidade de livrar seu cliente da lei penal desde logo por uma questão processual.

Isso é normal, diga-se de passagem. É o papel de um bom advogado, essencial à justiça (artigo 133 da CF). Mostrar-se imparcial, independente e comprometido com a verdade é algo que toca ao juiz e não às partes. Ultimamente (e infelizmente), também passou à cartilha de alguns causídicos o jogo de pressão sobre os magistrados que atuam nas varas criminais, seja pela tentativa de provocar nulidades a partir de requerimentos diversos (a serem inacolhidos e levados à superior instância com fins de ali serem reconhecidos), seja por meio de campanhas difamatórias, intimidações e dúvidas incutidas na mídia acerca da isenção e até mesmo do caráter dos juízes. Por vezes, ataca-se a figura do magistrado (e disfarçadamente invoca-se a importantíssima imunidade do advogado — muitas vezes em zona lindeira dos delitos contra a honra) ao invés da conclusão do seu trabalho, a saber, a sentença. Em situações-limite, já houve casos de assassinatos de magistrados por iniciativa de réus/investigados criminalmente, como parece ter sido o caso da juíza de Direito do Rio de Janeiro, Patrícia Acioli. Felizmente, os causídicos que assim agem são uma ilha num mar de corretos profissionais que atuam na nossa pátria.

Essa falta de atuação direta no grande teatro criminal que são as audiências e a judicatura de primeiro grau dá ensejo a uma grande liberalidade de alguns julgadores de altos colegiados com temas de ordem processual, a significar o acatamento de conteúdos que não necessariamente deveriam dar azo a nulidades. A experiência em sede de audiências, infelizmente, não vem da elevada cultura jurídica ou da reputação ilibada. Vem do número de vezes em que já se presidiu instruções penais. Quando menos, assim como há de se respeitar médicos pela vivência da medicina, há de se levar fortemente em conta as decisões dos juízes criminais, pelo dia-a-dia no trato e enfrentamento de questões processuais criminais. E por estarem imediatamente em contato com os acusados nos feitos penais. A sedimentação de determinados entendimentos em sede de nulidades, pondo a perder, por vezes, instruções inteiras, é algo desanimador para o julgador, contraproducente e até mesmo caro ao Judiciário.

O julgamento do chamado mensalão foi, é e continuará a ser um marco na história do STF. Para muito além do processamento do ex-presidente e ora senador Fernando Collor, igualmente caso único na história brasileira, a Ação Penal 470, que tramita no STF, possui 38 réus a serem julgados esses dias, defendidos pela fina flor dos advogados criminalistas brasileiros — um dos réus está sendo representado por um defensor público. Não é inadequado dizer que o mais alto “PIB” de honorários advocatícios da área penal está ali representado.

Jamais o STF tomou conhecimento — tão intensamente — do quão difícil é a posição de julgador e do processamento criminal em grau de contato direto com os réus e seus advogados — ainda que a instrução do mensalão tenha sido delegada, via carta de ordem, a Juízes de primeira instância. De fato, durante décadas, seja pela falta de estrutura, seja pela falta de oportunidade, seja mesmo pela falta de vontade, o Colegiado Maior não enfrentou ou condenou originariamente, na seara penal, autoridades sob sua competência. De grande reflexo na sociedade tal omissão histórica, abasteceu (legitimamente) no povo a notória idéia da impunidade das grandes autoridades da República. Felizmente, isso tem mudado, já constando condenações originárias. O mensalão é mais um passo nesse processo de aprimoramento.

Os notáveis defensores que estão atuando no caso do mensalão são conhecidos nos tribunais, na imprensa e, agora, até mesmo entre leigos, dada a grande visibilidade. Sempre foram ouvidos pelos integrantes das Cortes. Têm sobre si a expectativa da mídia, do público em geral (acentuadamente a partir da transmissão pela TV). O histórico de eficiência de suas defesas concede-lhes esse patamar desde tempos. Junto ao STF, relacionam-se sempre com absoluto respeito aos eminentes ministros. Pelo menos vinha sendo assim até o mensalão.

Segundo o folclore forense, um ex-ministro do STF afirmava que somente Deus estaria acima daquela Casa. As coisas mudaram um pouco. A distância para com o STF, a quem tocava dizer o direito em última instância, longe do julgamento mais ácido dos fatos, finalmente diminuiu e tornou-se mais humana. A invocativa de questões de ordem (algumas já decididas anteriormente), a utilização dos meios de comunicação para (des)construir teses, as referências menos respeitosas por parte de alguns aos ministros, tudo isso trouxe ao STF algo incomum: o retrato frio da realidade forense, sem a fina retórica e a relativização de versões que podem ocorrer nas folhas de recursos e habeas corpus da vida, onde o alvo das críticas é sempre o magistrado de instâncias inferiores e nunca os membros do próprio STF.

Agora, a força desse batalhão de advogados criminalistas (com a junção de estratégias comuns ou não de defesa), a pressão do partido político que preside o Brasil há quase dez anos — e até mesmo de um ex-presidente muito popular, segundo noticiaram alguns jornais, preocupado com uma votação antes das eleições de outubro de 2012 — estão nas costas dos eminentes ministros e ministras do STF. A isso se soma a força da tese acusatória (exposta de forma elegante pelo procurador-geral da República em sua sustentação oral) e a expectativa da mídia e do povo brasileiro[1].

Só o tempo fará ver as conseqüências desse notável julgamento na jurisprudência futura do STF, notadamente sobre as nulidades habitualmente acolhidas junto aos tribunais pátrios e muitas vezes menos compreendidas, a partir da perspectiva do processo criminal de primeira instância. De toda forma, senhoras ministras, senhores ministros, cremos que todos os juízes criminais do Brasil lhes são solidários por tudo o que estão passando. O Ministério Público fez sua parte; os advogados de defesa estão trilhando a deles. Não se tem notícia de um julgamento desse jaez em outros países, principalmente envolvendo figuras tão proeminentes. Força, sabedoria e Justiça é o que se espera desse julgamento, nada menos do que as elevadas capacidades que os onze que integram o STF dispõem. Boa sorte!


[1] Segundo pesquisa Datafolha divulgada no jornal Folha de São Paulo de 11 de agosto de 2012, 73% da população acha que os acusados de participar do escândalo devem ser mandados para a cadeia. No entanto, só 11% dizem acreditar que isso acontecerá – um em cada dez brasileiros. Apenas 5% querem a absolvição, conquanto 43% estejam convictos de que este será o resultado do julgamento.

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