Observatório Constitucional

Tribunal Constitucional alemão e o futuro da União Europeia

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

11 de agosto de 2012, 8h00

Spacca
Desde as propostas de Robert Schuman e Jean Monnet por um continente mais unido, a Europa ainda não passara por crise de legitimação semelhante a que enfrenta atualmente. O colapso dos mercados financeiros e o endividamento público tiveram início na Grécia e logo se estenderam aos demais países que adotam o Euro como moeda, em especial Portugal e Espanha. A reação conjunta da União Europeia às dificuldades financeiras de seus Estados-membros começou em 2010, com a criação de pacotes com medidas que procuram estabilizar as economias nacionais, e persiste até hoje.

De todos os integrantes da Zona do Euro, a Alemanha é o que mais contesta, em âmbito nacional, a política financeira comunitária. O Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF) já foi decisivo para a União Europeia em diversas oportunidades, como nos casos em que verificou a constitucionalidade do Tratado de Lisboa e das medidas de auxílio à Grécia. Agora, todo continente aguarda, com expectativa, o pronunciamento dos juízes de Karlsruhe sobre uma nova questãoque poderá ditar os rumos do Bloco.

Em 29 de junho, o Congresso alemão aprovou leis que ratificam e internalizam instrumentos para combate à crise da União Europeia. Trata-se, em especial, do Tratado para Estabelecimento do Mecanismo Europeu de Estabilidade(ESM) e do denominado Pacto Fiscal.

As medidas preveem a criação de um sistema permanente de auxílio, com instituição de fundo que disponibiliza 500 bilhões de euros a Estados-membros que enfrentem dificuldades financeiras — dos quais a Alemanha participa com 22 bilhões, mais 168 bilhões de euros em garantias. Os signatários precisam garantir que adotarão políticas nacionais para prevenção de crises.

Contra as leis foram interpostos diversos recursos constitucionais (Verfassungsbeschwerde)e um processo de conflito entre órgãos (Organstreit), além de medida cautelar para evitar que o presidente da Alemanha, Joachim Gauck, sancione as normas até o mérito da causa ser decidido. O problema é claro: caso os tratados sejam ratificados, a Alemanha poderia ver-se em um quadro em que estaria comprometida, sob o ponto de vista internacional, a um acordo que, internamente, poderá ser declarado inconstitucional.

Em poucas ocasiões o TCF sofreu tanta pressão política para julgar um caso como agora. As leis entrariam em vigor no dia 1º de julho, mas o presidente recusou-se a sancioná-las até receber o aval da Corte, contrariando solicitação da chanceler Angela Merkel. O presidente do TCF chegou a agradecer a conduta de Gauck, que, com esse ato, passou a ser um exemplo de respeito às instituições democráticas.

Em meio a tantos embates, a Corte realizou audiência para ouvir os principais argumentos para decidir se o presidente pode ou não ratificar os tratados. No dia 10 de julho, os oito juízes do Segundo Senado do TCF receberam representantes dos cinco demandantes, do Parlamento e do governo. Foi a primeira vez que o tribunal convocou esse tipo de oitiva para apreciar uma medida cautelar. O procedimento está previsto na Lei de Organização do Tribunal, mas nunca havia sido utilizado.

O que os juízes de Karlsruhe devem analisar agora é apenas um quadro de ponderação de consequências. O que aconteceria se eles negassem a cautelar e deixassem os tratados entrar em vigor? O que aconteceria caso os recursos constitucionais tivessem êxito?

Na audiência, o Senado bombardeou os representantes das partes com diversas perguntas, em especial para conferir se os parlamentares tinham consciência do que estavam votando quando aprovaram os instrumentos questionados. Os legisladores debruçaram-se sobre o assunto, verificaram os riscos? Ou apenas aprovaram a lei, para concordar com o governo? Quão fundo foram nessa análise? Agiram de acordo com o princípio democrático? E, caso negativo, quais seriam as consequências?

Um dos recursos constitucionais interposto foi o do movimento Mehr Demokratie (Mais Democracia), que recebeu adesão de cerca de 12.000 cidadãos, por meio de mobilização realizada pela internet. Representados pela ex-ministra da Justiça, Herta Däubler-Gmelin, e pelo conhecido professor Christoph Degenhart, esse grupo defende que os tratados acabam por transferir competências do Parlamento Federal a um novo órgão supraestatal, o que atenta contra a soberania alemã e contra a autonomia doBundestag para decidir sobre o orçamento do país.

Os demandantes entendem que competências essenciais do Estado estariam sendo “desparlamentarizadas” e, consequentemente, o ESM estaria esvaziando o princípio democrático alemão. Sustentam que essa situação não está prevista na Lei Fundamental, de modo que o povo deveria ser ouvido sobre esse mecanismo de auxílio à União Europeia, por meio de um referendo. Além disso, indicam que o tratado não tem cláusula resolutiva, isto é, a transferência da competência parlamentar não teria termo final.

Por outro lado, representantes do Parlamento e do governo afirmam que o quadro de instabilidade econômica é grave e a UE não tem estrutura adequada para enfrentá-lo. A política de combate à crise levada a cabo nos dois últimos anos teria sido apenas paliativa. Eles procuraram demonstrar que as medidas trariam segurança para momentos de crise, evitando possível aumento da inflação e um descontrole de dívidas. A instabilidade do Euro não geraria consequências apenas a determinados Estados-membros, mas a todos.

Dos debates ficou claro que o processo deve ser rápido suficiente para atender às demandas dos mercados financeiros, e, ao mesmo tempo, muito bem fundamentado, para tranquilizar a população alemã. Fora da Corte, são muitas as discussões sobre qual deverá ser o desfecho do caso. Sentimentos nacionalistas deveriam ser deixados de lado. Uma suposta transferência de competências nacionais ao bloco deveria ser encarada como uma atuação conjunta entre governos nacionais e a UE. O TCF, que em outros momentos já se manifestou sobre quais atribuições não são transferíveis à União Europeia, deveria agora pronunciar-se ativamente e indicar o que pode ser delegado.

É discutido, também, que os mecanismos de combate à crise não receberiam amparo constitucional. A Lei Fundamental já teria chegado ao seu limite. Alguns já chegaram a propor, inclusive, a convocação de uma Assembleia Constituinte, para que um novo texto constitucional, mais aberto à UE, fosse elaborado.

De qualquer forma, ao tribunal foi informado que as medidas efetivamente entrarão em vigor apenas em 2013 e que o dinheiro que há no fundo será suficiente para auxiliar, por ora, países em crise, como a Grécia. O TCF alemão declarou que dará resposta sobre a cautelar até 12 de setembro, tempo dentro do qual poderá analisar a questão com maior cautela. Recai sobre os juízes de Karlsruhe uma imensa responsabilidade. Estados-membros, Parlamento Federal, governo e, principalmente, a população alemã estão atentos à decisão do tribunal, que não tem apenas vital importância para o resgate da união monetária, mas para a legitimação de todo o processo integratório.

* O texto contou com contribuições do Prof. Dr. Martin Nettesheim, professor da Universidade de Tübingen, Alemanha, e representante do Parlamento alemão no caso analisado.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

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    é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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