Paradigmas e princípios

Código Civil Argentino ensina Direito da Tecnologia

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3 de agosto de 2012, 13h23

Tomei conhecimento, recentemente, do projeto de atualização do Código Civil e Comercial da Argentina. O projeto foi elaborado por uma comissão presidida pelo grande jurista Ricardo Luis Lorenzetti. O professor Lorenzetti é também ministro da Suprema Corte Argentina. Além do mais, é autor de diversas obras nas áreas contratual, do consumidor e de Direito da Tecnologia. Seu livro "Comércio Electrónico" — traduzido para o português por Fabiano Menke e com notas de Cláudia Lima Marques — é uma das obras de referência na área e bibliografia obrigatória para o estudo do Direito da Tecnologia.

O projeto do novo Código Civil e Comercial argentino traz uma série de inovações, entre elas: a positivação de paradigmas e princípios jurídicos importantes; o estabelecimento de normas de direito privado coletivo (derechos individuales y de incidencia colectiva — artigo 14); normas específicas de tutela da pessoa humana; novos paradigmas em matéria de bens; inovações no Direito de Família (incluindo as Reglas generales relativas a la filiación por técnicas de reproducción humana asistida), no Direito do Consumidor, obrigacional, contratual, de responsabilidade civil (sendo esta regulada como um sistema que admitiria, inclusive, funções preventiva e dissuasiva da responsabilidade civil), entre outros.

Segundo Lorenzetti, o novo código estaria focado nos problemas concretos das pessoas. Além do mais, ele é escrito em linguagem clara e compreensível, permitindo sua leitura mais facilitada por leigos. Tal circunstância retira o caráter hermético dos textos legais, acessível, até então, apenas aos "iniciados", permitindo que o homem médio consiga orientar-se mais facilmente pelo código. Essa clareza nas disposições do novo código argentino contrasta com alguns projetos brasileiros que pecam pelo excesso de complexidade (o que, por sua vez, pode ser necessário para a precisão técnica do texto).

Após uma leitura preliminar do projeto, gostaria de destacar alguns pontos importantes que julgo serem inspiradores na área do Direito da Tecnologia. Mesmo que tenhamos no Brasil um projeto de grande qualidade sobre o assunto — como o Marco Civil — creio ser também de grande importância a análise dos dispositivos abaixo destacados. O projeto completo pode ser baixado aqui:

Sobre a proteção à imagem, nota-se aqui a exigência de consentimento para a possibilidade de reproduções além de prever as exceções aplicáveis. Nada impede, no entanto, a possibilidade da ocorrência de abusos de direito, mesmo nestas condições, o que é tutelado conforme o artigo 10 do projeto.

“Artículo 53 — Derecho a la imagen. Para captar o reproducir la imagen o la voz de una persona, de cualquier modo que se haga, es necesario su consentimiento, excepto en los siguientes casos:

a) que la persona participe en actos públicos;

b) que exista un interés científico, cultural o educacional prioritario, y se tomen las precauciones suficientes para evitar un daño innecesario;

 

 

c) que se trate del ejercicio regular del derecho de informar sobre acontecimientos de interés general.”

Em relação à vida privada, em casos de condenação pela sua violação, a parte prejudicada pode solicitar a publicação da sentença condenatória em um jornal, o que é uma manifestação dos efeitos dissuasórios da responsabilidade civil, conforme o artigo abaixo:

“Artículo 1.770 — Protección de la vida privada. El que arbitrariamente se entromete en la vida ajena y publica retratos, difunde correspondencia, mortifica a otros en sus costumbres o sentimientos, o perturba de cualquier modo su intimidad, debe ser obligado a cesar en tales actividades, si antes no cesaron, y a pagar una indemnización que debe fijar el juez, de acuerdo con las circunstancias. Además, a pedido del agraviado, puede ordenarse la publicación de la sentencia en un diario o periódico del lugar, si esta medida es procedente para una adecuada reparación.”

Sobre a assinatura digital, o código faz a opção por não se referir a uma tecnologia específica, mas sim, ao fim pretendido. Isso permite que, em casos de evolução da tecnologia, não seja necessária a alteração da lei. De certa forma, há aqui uma equiparação de qualquer tecnologia (não apenas a assinatura eletrônica) para a composição de um meio seguro de assinatura digital.

“Artículo 288 — Firma. La firma prueba la autoría de la declaración de voluntad expresada en el texto al cual corresponde. Debe consistir en el nombre del firmante o en un signo. En los instrumentos generados por medios electrónicos, el requisito de la firma de una persona queda satisfecho si se utiliza un método que asegure razonablemente la autoría e inalterabilidad del instrumento.”

Na seção em que são tratados os contratos em geral, há diversas disposições importantes. A doutrina e jurisprudência brasileira reconhecem algumas delas, porém vê-las em um código, dispostas de maneira tão clara é bastante interessante. As disposições principais relacionadas com o direito da tecnologia são:

“Artículo 992 — Deber de confidencialidad. Si durante las negociaciones, una de las partes facilita a la otra una información con carácter confidencial, el que la recibió tiene el deber de no revelarla y de no usarla inapropiadamente en su propio interés. La parte que incumple este deber queda obligada a reparar el daño sufrido por la otra y, si ha obtenido una ventaja indebida de la información confidencial, queda obligada a indemnizar a la otra parte en la medida de su propio enriquecimiento.”

É muito comum, em contratos informáticos, o estabelecimento de NDA’s (non-disclosure agreement ou acordo de confidencialidade) mesmo na fase das tratativas iniciais. O dever de confidencialidade já podia ser extraído da própria análise do princípio da boa-fé objetiva; mesmo assim, é importante ver a extensão que o novo código dá a esse dever.

Um dos princípios basilares do Direito da Tecnologia da Informação é o "princípio da não discriminação do meio digital". De forma bastante clara, este princípio é trazido no artigo abaixo. Infelizmente o princípio está relacionado apenas com o direito contratual. Mesmo assim, não vejo óbice para, à partir dele, realizar uma interpretação extensiva, aplicando-o em outras situações também em função da própria visão sistemática do código.

Artículo 1.106 — Utilización de medios electrónicos. Siempre que en este Código o en leyes especiales se exija que el contrato conste por escrito, este requisito se debe entender satisfecho si el contrato con el consumidor o usuario contiene un soporte electrónico u otra tecnología similar.

Aqui fica bastante evidente a imposição de um forte dever dos fornecedores de informar adequadamente acerca dos riscos de TI. O artigo 1.107 ressalta, inclusive, que há a necessidade de informar acerca dos riscos relativos às "técnicas de comunicación electrónica". Igualmente, o fornecedor deve dar as informações necessárias para que o consumidor saiba claramente quem está assumindo os riscos. A doutrina entende que, no ambiente digital, há uma vulnerabilidade ampliada do consumidor sendo necessário, portanto, a ampliação do dever de informar por parte do fornecedor de serviços.

Artículo 1.107.- Información sobre los medios electrónicos. Si las partes se valen de técnicas de comunicación electrónica o similares para la celebración de un contrato de consumo a distancia, el proveedor debe informar al consumidor, además del contenido mínimo del contrato y la facultad de revocar, todos los datos necesarios para utilizar correctamente el medio elegido, para comprender los riesgos derivados de su empleo, y para tener absolutamente claro quién asume esos riesgos.”

O artigo abaixo posiciona-se sobre, o que creio ser, uma discussão fantástica: se o direito de arrependimento (no Brasil previsto no artigo 49 do CDC) aplica-se à produtos puramente digitais (como músicas digitais, softwares, e-books, etc). A maior parte da doutrina brasileira posiciona-se pela possibilidade, entendendo ser irrelevante o tipo de bem adquirido e que a faculdade do arrependimento é aplicável em todas as situações. São poucos os que entendem o contrário, entre eles, Fábio Ulhoa Coelho.

Particularmente, acompanho o entendimento de Fábio Ulhoa Coelho por um motivo simples: o arrependimento não é aplicável em tais situações em função da natureza dos bens eletrônicos. Em algumas situações, inclusive, o consumidor pode até ler ou ouvir parte dos arquivos, o que afasta — em princípio — a possibilidade dele arrepender-se. Festejo a escolha do código argentino nesse ponto e acredito, inclusive, que tal escolha influenciará a doutrina brasileira.

Artículo 1.116.- Excepciones al derecho de revocar. Excepto pacto en contrario, el derecho de revocar no es aplicable a los siguientes contratos:

b) los de suministro de grabaciones sonoras o de video, de discos y de programas informáticos que han sido decodificados por el consumidor, así como de ficheros informáticos, suministrados por vía electrónica, susceptibles de ser descargados o reproducidos con carácter inmediato para su uso permanente.”

Há um avanço aqui, no que diz respeito à previsão de indenizações com o caráter dissuasivo. É a famosa situação da responsabilidade civil utilizada com o fim punitivo. Em tais situações, o fim da indenização não é apenas compor um estado anterior da vítima, mas também dissuadir o autor do dano a comportar-se novamente de forma a causar novos danos.

Essa disposição é importante pois, em muitos casos, as empresas optam por descumprir um eventual dever de cuidado, causando assim danos, pois as indenizações pelo descumprimento do dever são baixas em relação ao lucro obtido pela sua não observância. É uma questão simplesmente econômica! Isso é bastante comum em relações envolvendo serviços informáticos e de comunicação (como operadoras de telefonia, televisão à cabo, Internet, etc).

“Artículo 1.714— Sanción pecuniaria disuasiva. El juez tiene atribuciones para aplicar, a petición de parte, con fines disuasivos, una sanción pecuniaria a quien actúa con grave menosprecio hacia los derechos de incidencia colectiva. Pueden peticionarla los legitimados para defender dichos derechos. Su monto se fija prudencialmente, tomando en consideración las circunstancias del caso, en especial la gravedad de la conducta del sancionado, su repercusión social, los beneficios que obtuvo o pudo obtener, los efectos disuasivos de la medida, el patrimonio del dañador, y la posible existencia de otras sanciones penales o administrativas.

La sanción tiene el destino que le asigne el juez por resolución fundada.”

O artigo 1.719 aplicar-se-ia às situações envolvendo a informática em que a vítima de um dano tem culpa exclusiva na sua ocorrência [do dano].  A questão do lesado ter assumido o risco deve ser lida em consonância com o artigo 1.720, que prevê a possibilidade de um consentimento em tais situações. A doutrina já entende que nos casos de culpa exclusiva da vítima há o afastamento do nexo causal, mesmo assim é um avanço do código.

“Artículo 1.719 — Asunción de riesgos. La exposición voluntaria por parte de la víctima a una situación de peligro no justifica el hecho dañoso ni exime de responsabilidad a menos que, por las circunstancias del caso, ella pueda calificarse como un hecho del damnificado que interrumpe total o parcialmente el nexo causal.

[…]

 

Artículo 1.720.- Consentimiento del damnificado. Sin perjuicio de disposiciones especiales, el consentimiento libre e informado del damnificado, en la medida en que no constituya una cláusula abusiva, libera de la responsabilidad por los daños derivados de la lesión de bienes disponibles.”

Sobre o fato de terceiro (que pode aplicar-se às situações de invasões de hackers, por exemplo) foi interessante a opção do código em compará-lo com o caso fortuito:

“Artículo 1.731— Hecho de un tercero. Para eximir de responsabilidad, total o parcialmente, el hecho de un tercero por quien no se debe responder debe reunir los caracteres del caso fortuito.”

Por fim, destaco ser esta uma análise inicial, sendo necessário um estudo mais aprofundado dos novos dispositivos até para uma compreensão geral do novo código.

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