Do mensalão à cracolândia

Crise de credibilidade da Justiça se deve à crise do Estado

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2 de agosto de 2012, 16h30

A relação simbiótica da política em torno dos delitos e das penas continua um desafio em face do contexto de aprofundamento tanto da desconfiança que aniquila a compreensão, bem como da indiferença, que inviabiliza a solidariedade.[1]

Em época de julgamento de mensalão, muito se tem questionado sobre a confiança que a população tem no Poder Judiciário, embora tais questionamentos se façam no plano estrito da vinculação com o caso. Em suma, como se essa confiança dependesse de meia dúzia de grandes julgamentos que colocam no banco dos réus algumas figuras importantes. Condenadas, essas pessoas podem satisfazer o desejo de vingança contido no íntimo de cada um. Desde que o Estado tomou para si o monopólio da violência, o cidadão ficou privado da prática da desforra, talvez venha daí o desejo inconsciente pela punição e a sensação de indignação quando da eventual absolvição de tais réus.

Longe de Brasília e, com muito menos ênfase, ainda se discute a ação da polícia paulistana no combate aos traficantes e usuários de crack do centro de São Paulo, na região da cidade conhecida como cracolândia. Isso porque essa semana um juiz concedeu liminar para proibir a Polícia Militar de promover “ações que ensejam situação vexatória, degradante ou desrespeitosa”. Sim, pasmem, em julho de 2012, em plena vigência da Constituição Federal, um juiz teve de conceder uma liminar para exigir da Polícia Militar que não agisse contra os cidadãos[2] mediante ações que violem seus direitos fundamentais garantidos pelo texto constitucional!!

Num primeiro momento causaria espanto que um representante do Poder Judiciário tivesse dispensado seu tempo para exigir que o governo paulista ordenasse que sua Polícia não violasse, sob qualquer pretexto, o direito de um cidadão. Num primeiro momento.

Concedida tal liminar, os representantes da Polícia e do governo passaram a se manifestar. A Secretaria Estadual de Justiça se pronunciou: “A PM precisa realizar seu trabalho. Se forem necessárias abordagens policiais diante de atitudes suspeitas, a Polícia não tem como deixar de agir. Então, nada muda na atitude da PM”. E o comandante geral da PM completou “A PM continuará com seu padrão de operações”.

Certamente não foi a intenção do Ministério Público, autor do pedido de liminar, nem do juiz concessor da medida, que a Polícia de São Paulo parasse de trabalhar. Não foi também intenção tolher a Polícia do exercício regular de abordagem de um cidadão, quando em situação de fundada suspeita. Ao que parece, a medida objetiva, claramente, impedir que essas abordagens sejam “vexatórias, degradantes e desrespeitosas”. Poder-se-ia, portanto, depreender, diante do posicionamento do governo, que para a Polícia paulistana não há outra opção de ação na cracolândia senão a “vexatória, degradante e desrespeitosa”?

É triste que o Judiciário tenha que se pronunciar sobre a não violação, por órgãos oficiais, dos direitos dos cidadãos. Mais triste que, após tal pronunciamento, as respostas oficiais venham não no sentido de que obviamente não se cometeriam tais atrocidades, mas de que a ação tem que continuar, a qualquer custo.

Isso faz pensar que talvez a crise de credibilidade da Justiça brasileira esteja mais associada a uma crise de credibilidade do próprio Estado, nos seus três poderes, do que a apenas um deles. Talvez a condenação de todos os réus do mensalão, como “medida de justiça” — e assim proclamou o representante do Ministério Público na capa de um jornal de grande circulação[3] — possa reestabelecer na população a “sensação de justiça e crença no Judiciário”, mas ela, com certeza, não durará para sempre. O buraco é muito mais embaixo. Não há justiça com violação de direitos, nem no mensalão, nem na cracolândia.

O comandante geral da PM, diante das críticas, questiona: “que fosse uma pessoa, uma vida salva, já não seria um ganho para a sociedade?” Claro que não. Salvar uma vida não pode servir de justificativa para ações que desrespeitam os direitos dos indivíduos. Legitimar esse tipo de violação é, ao contrário, uma perda irreparável para a sociedade.

Mais do que a falta de credibilidade no próprio Estado, a falta de credibilidade no Judiciário pode estar associada ao fato de que talvez não se saiba mais o que é justiça. Talvez tenha se esvaziado a ideia de que o fim só será justo se assim for todo o processo para sua obtenção.


[1] OLIVEIRA, Edmundo; ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia e Política Criminal. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 4.

[2] Importante, nesse ponto, ressaltar que o termo contra foi utilizado vez que a ação na cracolândia é comumente associada a ideia de guerra, combate, contrariando a adoção de terminologia não estigmatizante. De outro lado, o termo cidadãos, que pode causar certo espanto quando empregado a usuários de crack, comumente associados a extratos populacionais alheios à cidadania, foi utilizado por que ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à igualdade perante a lei. O não exercício desse direito, por uma impossibilidade ou equívoco do Estado em assegurá-lo, não faz desses indivíduos menos cidadãos, nem os retira da sociedade que integram.

[3] O mesmo jornal O Estado de São Paulo que, no dia de hoje, duas páginas depois, não confere tanto o crédito aos representantes do Ministério Público críticos da ação que se discute nesse artigo.

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